Não se enganem pelo teor meio cômico que o título nacional traduzido possa invocar sobre essa esquecida pérola de Steven Spielberg, pois o que vemos se desenrolar na projeção de Louca Escapada (Sugarland Express – Expresso Sugarland em tradução livre), é por honesta definição uma jornada dramática, carregada sim de um tom aventuresco em sua essência despretensiosa, mas com um forte e pesado freio na crua realidade que envolve seus jovens personagens. Sendo esta a estreia de Spielberg no cinema, creio que o resultado não poderia ter sido diferente do que encontra-se aqui.
Se outros de seus colegas de ramo, na época, vinham no percurso de se desventurar no alvorecer da Nova Hollywood americana com obras cada vez mais baseadas em um cinema mais realista e pessimista em suas temática retratais de sua época, alguns dos mais famosos e icônicos usaram do famoso filme de estrada ‘road-movie’ como palco perfeito para isso, e Spielberg também estava prestes em vir a fazer o mesmo a qualquer momento. Saindo de anos na produção e direção de séries e filmes televisivos, o jovem diretor empregado, logo após o sucesso de seu fantástico Encurralado, estava faminto por finalmente fazer cinema e prestes a fazer sua estreia nos telões americanos.
Mas se diretores como Monte Hellman em Corrida Sem Fim, Bob Rafaelson em Cada Um Vive Como Quer, Dennis Hopper em Sem Destino ou Hal Ashby em A Última Missão vinham a mostrar uma juventude rebelde por natureza em uma época pós-Vietnã, revoltados e decepcionados com o sistema e estilos de vida monótonos que dominavam sua vazia existência, encontrando um aglomerado de sentidos, razão e prazeres no vazio infinito da estrada; Spielberg por outro lado mostra em seu Louca Escapada, optar por um percurso próximo ao do que Peter Bogdanovich realizara em seu fantástico Lua de Papel, uma visão pura, nostálgica, clássica ‘old school’ e em partes otimista da relação de dois seres em busca de sua aparentemente impossível felicidade. No filme de Bogdanovich a relação pai e filha entre Moses e Addie (Ryan O’Neal e Tatum O’Neal), e aqui em Louca Escapada o casal Lou Jean (Goldie Hawn) e Clovis (William Atherton), a versão anti Bonnie & Clyde do diretor.
A história de ambos começa no Texas setentista, com a jovem Lou Jean Poplin indo visitar seu marido, Clovis Michael Poplin no centro de reabilitação para presidiários. E o que parecia uma visita de uma jovem inocente apaixonada ao amor de sua vida, se torna uma situação de tensão e fuga quando Lou revela que o filho do casal foi levado pelas autoridades estatais, e agora convence Clovis a resgatá-lo dos seus novos pais adotivos, em Surgarland. Depois de uma série de mal-entendidos e perseguições de carro frenéticas, eles transformam o policial novato Maxwell Slide (Michael Sacks) em refém, o que faz com que as autoridades rodoviárias iniciem uma perseguição aos dois criminosos. No comando das ações está o Capitão Harlin Tanner (Ben Johnson), que, receoso de colocar a vida de Slide em perigo, se limita a seguir Lou Jean e Colin pelas estradas do Texas. Não demora muito para que ambos tenham uma procissão de uns 200 carros no seu encalço até chegarem no seu destino em Sugarland.
O Velho Spielberg de sempre
Imagino a reação de confusão e surpresa quando, até os mais tenazes fãs do diretor, descobrem que sua estreia no cinema não fora com o estrondoso e revolucionário sucesso de Tubarão e sim com esse pequeno road-movie infelizmente esquecido, mas que conseguiu conquistar um “cult following” em sua época, sendo até galardoado com um prêmio de melhor roteiro em Cannes. Um destino que até pode ser assemelhado com o que acontecera com seu confrade George Lucas na mesma época, que só depois de um fracasso exorbitante com seu subestimado THX 1138 e seu despretensioso Loucuras de Verão (ou American Graffiti), foi que ele finalmente alcançara um sucesso também estrondoso e revolucionário com Star Wars.
Mas que, antes de alavancarem esse sucesso e de receberem a fama de supostos destruidores da Nova Hollywood, já mostravam em seus filmes anteriores suas essências como verdadeiros cineastas praticando sua arte. Não é à toa que até alguns vem a comparar semelhanças à ambos os filmes denominados ‘Loucos’ na nossa tradução nacional. E até que não é equívoco nenhum ao encarar ambos os filmes lado a lado. O protagonismo e a óbvia ótica juvenil que ambos os diretores impõe ao filme e sua diretriz narrativa, tendem a mostrar duas diferentes gerações de jovens, puros em sua essência, vivendo perdidos e atrasados em suas épocas, em busca de uma fuga da inevitável vida adulta em seu encalço. Se em Loucuras de Verão eram estudantes nos anos 1960 aproveitando uma última noite fugindo da futura responsabilidade da Universidade, em Louca Escapada temos um casal de jovens literalmente fugindo dos adultos integrados ao sistema opressor.
Não seria exatamente essa ótica juvenil uma marca que repercutiu pelo cinema de Spielberg até hoje? Pois não há forma mais simples de dizer que Louca Escapada já ditava em todos os seus aspectos o estilo de Spielberg como cineasta que apenas estava em seu alvorecer, mas tão afiado quanto hoje. Suas referências clássicas, as temáticas familiares, o humor e drama com inevitáveis conotações piegas aqui e ali, a própria presença de um jovem John Williams compondo a trilha sonora, já estava tudo aqui.
Ainda mais tendo em conta o fato de que a história é inspirada em fatos verídicos que aconteceram naquela época, outro fascínio que Spielberg sempre teve desde cedo, em recontar histórias reais por sua ótica como cineasta. Mas aí você acaba notando um pouco da parte ainda até então “amadora” do diretor em querer adaptar uma história com certa complexidade moral ambígua na situação dos personagens, mas nunca conseguir trabalhar isso de forma precisa ao longo do texto, que dá maior espaço para o tom ameno e de diversão escapista que a desventura daqueles jovens inspira. Afinal eles apenas roubaram um carro e estão mantendo um policial refém enquanto atravessam o país armados e sendo escoltados pela polícia, nada demais. Deixando parte das consequências reais e tristes da história para o seu repentino final, mas que não falha na hora de entregar as emoções a que se propõe.
Mas quando se percebe a proposta que o diretor quer explorar se usando da jornada dos jovens que se constrói até aí, Spielberg demonstra sua aptidão, assim como a de Bogdanovich antes mencionado, em trazer elementos da velha Hollywood para o seu filme, outra marca pelo qual lhe é bem conhecido até hoje. Tomando proveito da longa viagem pela estrada, e se usa da história de Lou e Clovis quase como uma perfeita desculpa para apenas focar e explorar a relação entre os seus personagens, recriando assim o sentimento de estarmos assistindo a um “hang-out movie” à la os clássicos filmes de Howard Hawks como Onde Começa o Inferno ou Hatari!, onde a trama serve nada menos que um mero palco para o diretor esmiuçar a interação entre os seus personagens que, assim como Hawks, consegue ser aqui de forma tão íntima e divertida com os três protagonistas dentro do carro durante todo o filme.
Aí sim você nota como o roteiro de Hall Barwood e Matthew Robbins é muito eficiente na construção e desenvolvimento dos componentes da história quando mostra exatamente querer atingir o cerne dramático e emocional dos personagens através da revelação de sua inocência e pureza. Por isso que Lou e Clovis passam longe de serem o típico casal Bonnie e Clyde modernos, ladrões fora da lei com sede de violência contra a justiça como Sam Peckinpah faria em seu brutal Os Implacáveis, ao invés disso os mostra como sendo meras “crianças” em corpos de adultos. Desengonçados, birrentos, atropelados em suas palavras, que sequer sabem segurar uma arma direito, mas puros em seus sentimentos um para com o outro. Capazes de até tratarem o jovem policial Maxwell mais como um amigo íntimo do que como um refém, e ele próprio mostra ser alguém tão humilde, inocente e ‘perdido” em seu mundinho pessoal quanto o casal de sequestradores.
Cria-se assim entre o grupo essa dinâmica de uma família quebrada, porém carregada de sentimentos, esse sendo outro óbvio tema recorrente de Spielberg – a valorização do cerne familiar vindo de sua cisão provocada pela separação dos pais. Mesmo que, aqui, o casal de protagonistas não esteja propriamente separado, mas os erros que eles cometeram no passado provocaram seu afastamento e o da criança. E ao invés das consequências psicológicas e emocionais disso afetarem a criança propriamente dita da história, afeta à ambos Lou e Clovis, eles próprios jovens crianças imaturas em corpos de adulto.
Tema esse que voltaria a assolar outros filmes de Spielberg em suas entrelinhas, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Prenda-Me Se for Capaz, Guerra dos Mundos, etc.; e que é empregado aqui de forma também sutil mas tão verdadeira. Mesmo tendo em conta do fato de que Clovis e Lou estejam sempre apontando uma arma para Maxwell, ao mesmo tempo em que trocam lanches e conversas fora sobre assuntos variados. Mas não é uma situação completamente amenizada já que Spielberg não esconde o fato de Clovis não ser nenhum burro inocente já que é sempre ele que prevê ao longo do filme as possíveis armadilhas que a polícia arruma para pará-los, o que intensifica sua fúria e nervosismo e que já incita uma boa criação de tensão de que o inesperado pode acontecer à qualquer instante com eles.
Essas explosões de sombriedade, que tomam controle da cena repentinamente e que quase podem aparecer como sendo incoerentes ou descaracterizados em seu tom ameno, que o filme toma para si. Ora tendo espécies de “stand-offs” com um gostinho de Faroeste, carregados com um bom nível de suspense (como um bom filme de Spielberg) quando Clovis desvenda ou pressente as constantes armadilhas e emboscadas da polícia; ora tendo um tiroteio hilário em um estacionamento de carros usados que mais parece um número de circo, com uso de gags e pintadas de humor físico parecido tirado de um filme de Abbott e Costello. Porém nada que realmente venha estragar ou prejudicar o resultado final da obra.
Apenas deve-se levar em conta o fato de que o filme se trata de estarmos assistindo à Spielberg mexendo em uma história real tão intrigante em sua essência quando a se ouve por alto, e está a contando com a sua própria marca e estilo. O que já significa que o filme não se isenta do fato de ter aqui uma boa história sendo bem contada, o lema recorrente do diretor.
Juventude Transviada
À primeira vista, pode se encarar o tanto óbvio sobre o que a história de Lou e Clovis aborda ao longo do filme. Não muito diferente do que os filmes já citados dos outros cineastas conterrâneos de Spielberg, com toda a situação podendo ser vista como o retrato de uma América desiludida com seus jovens morrendo no Vietnã, e via nos renegados, nos iconoclastas e nos rebeldes inconformados um modo de contestar o establishment, lutar contra a opressão de uma sociedade rebaixada pelas falsas promessas de seu governo, o básico do básico. Ou apenas encará-lo como uma simples história “coming of age” envolvendo crimes. Mas nada disso impediu Spielberg em querer construir e contar essa história com um caráter quase épico e sentimento universal. E ele o sempre fez isso apenas usando sua câmera.
Não é a “simplicidade” da narrativa que impediria Spielberg em mostrar suas capacidades visuais inventivas e variadas. Ele claramente mostra desde o início que não está dirigindo um thriller frenético e guiado por tensão e suspense como o seu anterior Encurralado, embora mostre ainda elementos resquícios do mesmo aqui e ali (a primeira perseguição de carros do filme é particularmente um exemplar fantástico de ação e ritmo cronometrados com perfeição).
Ao invés disso deixa o formato widescreen da tela dominar os enquadramentos em toda sua glória, quase dando à viagem do casal de criminosos um ar de Western messiânico no estilo Caravana de Bravos de John Ford, com a fuga dos “heróis” se tornando seu êxodo pessoal até sua terra prometida, ou nesse caso indo em direção da razão de toda a sua felicidade do mundo, seu filho. E no caminho, também conquistam sua legião de seguidores e apoiadores de sua causa paternal, uma cena em particular perto do fim quando o trio chega em uma cidade sendo recepcionados em um festejo alvoroçado, quase parecendo a chegada dos heróis em Roma, com a câmera de Spielberg capturando quase 300 figurantes em cena com uma sagacidade incrível dignas de um épico em pequena escala.
Talvez até a falta de costume com os planos mais abertos do cinema e desde sempre estivera preso pelas limitações da televisão, faz com que Spielberg opte aqui pelo modo 2:35 de tela, o que lhe permite aproveitar todo o espaço cênico e criar alguns belíssimos enquadramentos. Meu favorito pessoal e talvez o mais “famoso” do filme é a rápida cena em que o diretor divide a tela em duas metades horizontais, colocando na parte de cima os olhos do Capitão Tanner de Ben Johnson refletidos no espelho retrovisor, e na parte de baixo, Goldie Hawn, no banco de trás do carro da frente, olhando o seu perseguidor, ambos trocando sorrisos. E em poucos segundos estabelece o drama pessoal do capitão que se recusa sempre a atirar no carro fuga, parecendo desenvolver uma relação de instinto paternal com os fugitivos.
Graças à um pequeno momento de beleza tão pura e inocência emitida apenas nos olhares e gestos de ambos os personagens que a câmera captura, ajudados ainda pela bela melodia country vindo da serenata de gaita criada aqui por Williams, que já conseguia desde cedo mexer com as emoções do público, e que ajudava revelar a grande e também recorrente sensibilidade e ternura de Spielberg para com a sua história e personagens.
Uma prova da riqueza visual do diretor, e que como os seus planos de câmera sempre possuem uma variedade de elementos visuais bem maiores do que até os seus críticos mais ferrenhos costumam enxergar ou dar valor. Muito difícil e até injusto negar o enorme talento que Spielberg tem para filmar, seu senso de espetáculo e sua habilidade de guiar o olhar e as emoções do espectador já mostravam sua fome e aptidão para o grande cinemão com uma verdadeira rebeldia cineasta.
Esse sentimento de rebeldia que ele até meio que homenageia em seu filme, fazendo assim como Arthur Penn fazia na mesma época com o seu Bonnie e Clyde ou Mickey One, brincando com estilos e referências à Nouvelle Vague francesa. Não só a fuga do trio principal aqui quase se assemelha às desventuras do grupo de amantes crianções de Bando à Parte de Jean-Luc Godard, como a própria perseguição final reflete muito a forma com que Spielberg parece brincar com a montagem de Verna Fields e Edward M. Abroms em certos momentos, com recortes e transições rápidas com picotes certeiros em ritmo frenético que lembram quase a perseguição inicial de Acossado. Só que aqui carregada de um sentimento de tragédia pelo destino dos personagens, onde Spielberg mostra não ter medo em estilhaçar as emoções do público em pedaços pela grande empatia criada por Lou, Clovis e Maxwell.
Agradeça isso também à forma com que Spielberg já fazia bem o trabalho de casa e extrai excelentes performances do seu elenco. Michael Sacks e William Atherton estão particularmente ótimos como os dois meninos presos em corpo adulto, principalmente Atherton que insere uma energia de urgência, tensão, mas foco em cumprir sua missão ao longo de tudo, e compartilha de uma ótima química ‘marido e esposa’ com Goldie Hawn que rouba todas as atenções do filme para si quando está em cena.
Completamente se ausentando da sua faceta de comédia que lhe fora sempre familiar sendo a loirinha inocente e assanhada, embora ainda carregue consigo aqui uma boa veia cômica e arranque risos constantemente, mas consegue completamente convencer no papel de mãe preocupada e tão enérgica quanto focada como o seu marido para conseguirem recuperar o seu filho. Mas que ainda carrega consigo uma personalidade ingênua e um olhar com um semblante de inocência, que a tornam a personagem Spielbergiana da vez.
Sua ótica infantil que revela sua forma pura de encarar o mundo e seus atos sem ver maldade nenhuma, e que é apenas movida em suas ações pelo amor ao seu marido e ao seu filho, e a ingênua esperança de que pode haver um futuro em paz onde ela poderá viver feliz com sua pequena família. Mas que a fria crueldade da suposta justiça representada na força policial que os persegue os impede de chegar nesse destino e, literalmente, atropela os resquícios de seus sonhos.
Um início mais do que promissor
Pode ser discutível a certa pieguice dos temas que findam a história aqui contada, mas Spielberg a conta tão bem onde é impossível não enxergar a riqueza de seus queridos personagens, e poder notar além disso o nascimento do grande Steven Spielberg aqui em A Louca Escapada.
A forma como ele já lidava com os gêneros que ele ainda recorrentemente trabalha – aventura, ação, comédia – é apresentada de forma ainda um tanto tímida embora cheia de potencial, e pronta para se aprimorar como o diretor fez desde então. Pode estar mesmo longe dos grandes espetáculos que ele realizaria no futuro mas, ainda assim é um entretenimento digno e honesto cheio de um grande coração.
Sua revisão hoje e sua descoberta para quem ainda não conheceu os primórdios do diretor no cinema, serve para nos mostrar que o Spielberg que conhecemos hoje já estava todo aqui. Tanto suas virtudes e defeitos, quanto os temas com que ele exploraria, suas características e estilos visuais.
Um belíssimo exemplar de tudo que ele é hoje!
Louca Escapada (The Sugarland Express, EUA – 1974)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Hal Barwood, Matthew Robbins
Elenco: Goldie Hawn, William Atherton, Michael Sacks, Ben Johson, Gregory Walcott, Steve Kanaly, Louise Latham, Jessie Lee Fulton, Dean Smith, Bill Thurman
Gênero: Crime, Drama
Duração: 110 minutos
https://youtu.be/aYAhR034rHQ