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Crítica | Mãe! – O Novo Testamento de Darren Aronofsky

A expectativa é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que pode gerar resultados exorbitantes para produtos muito aguardados, também pode trazer a mais profunda das decepções. Obras de “terror” geralmente sofrem nas mãos do marketing dos grandes estúdios. Mãe! é mais um desses casos trágicos de marketing profundamente desonesto.

Portanto, estejam avisados: mãe! não é um filme de terror profundo como tanta gente espera. Na verdade, está longe disso. A história que traz o esforço da personagem de Jennifer Lawrence lidando com convidados indesejados em sua casa vai muito além do que podíamos esperar.

Para quem é estranho às obras de Darren Aronofsky, então o choque será ainda mais duro e cruel. Acima de tudo, seu novo filme é uma grande experiência cinematográfica acompanhado de um comentário crítico relevante enquanto tece leituras existenciais e niilistas sobre a humanidade, religião e o futuro. Logo, é um dos filmes mais relevantes do ano por conseguir trazer um nível de reflexão pós-sessão tão pertinente e profundo.

A História da Vida e de Tudo

Darren Aronofsky faz um filme de fé. A narrativa de mãe! se sustenta em uma enorme alegoria – por enquanto, não falarei qual. Basicamente, a história é essa alegoria. A personagem de Jennifer Lawrence é a nossa única guia e ponto de vista no cotidiano interrompido de sua casa quando um homem misterioso surge, pedindo ajuda ao seu bom marido, um poeta famoso e renomado.

O roteiro de Aronofsky é bastante peculiar em si, apesar de se valer de uma estrutura bastante clássica de histórias de horror sobre vulnerabilidade e corrupção sobrenatural. Enquanto a paz da casa é perturbada pelos outros novos residentes, vemos nossa protagonista investigar e descobrir características perturbadoras. O curioso é que os primeiros dois atos se comportam de modo bastante clássico, porém, assim que chegamos ao terceiro e último ato, tudo se desenvolve de modo extramente acelerado englobando tantos eventos que é impossível entender tudo o que acontece em uma só visita ao cinema. Particularmente, é o ponto mais alto da obra e da direção de Aronofsky que, em seu trabalho de câmera, cria uma sequência tão bem amarrada na montagem que praticamente temos a ilusão de ver um plano-sequência elaborado diante de nossos olhos.

Nela, uma sucessão de acontecimentos caóticos acontece a cada cômodo da casa enquanto acompanhamos Lawrence caminhando completamente perdida em uma residência já totalmente alterada. Para ter uma noção do quão bem realizado é esse momento, é digno comparar com as transições mais felizes e fantásticas de Arca Russa, filme de Sokurov gravado totalmente em um plano-sequência real. Mas novamente repito, em Mãe!, não há o uso dessa técnica. A montagem apenas confere essa ilusão perturbadora chocante de tão eficiente que é.

Aliás, perturbação é a palavra-chave de mãe! Toda a atmosfera criada pela estética rígida do diretor é sufocante, completamente incômoda enquanto a história se aprofunda cada vez mais em um surrealismo crescente e caótico. Nunca abandonamos a casa e logo viramos tão reféns quanto Lawrence conforme as coisas desandam e desabam. Não existe controle narrativo da protagonista completamente perdida em meio aos acontecimentos. Tudo é realmente caótico com acontecimentos que se atropelam a todo momento.

Basicamente mãe! é isso. Uma experiência cinematográfica desagradável na qual sentimos toda a angústia da protagonista transmitida com muita competência por Jennifer Lawrence em sua interpretação que carrega o filme nas costas.

A estética visual de Aronofsky delimita completamente as possibilidades do longa também. A câmera está sempre agarrada à personagem mostrando o que ela é e o que ela vê – tudo sempre com planos próximos e closes enormes para mostrar a personagem, enquanto os outros planos seguem o ponto de vista afastado da personagem (seu desconforto a afasta do marido e dos visitantes).

O mesmo se dá nos termos sonoros de mãe! Aronofsky busca o hiper-realismo no áudio tanto que a edição e mixagem sonora deste longa certamente se destacarão na época das principais premiações da temporada. Não ouvimos o que Lawrence não escuta – principalmente os diálogos dos estranhos com seu marido, mas todos os barulhos decrépitos e bizarros da casa são transmitidos com extrema clareza. O som nos conta o quão estranho é o marido para a mulher, enquanto a casa está intimamente ligada com ela. Essa relação entre casa e protagonista é a principal alma do filme, residindo uma das maiores forças da alegoria.

Mas como perceberam, comentar sobre mãe! sem falar objetivamente sobre que ele é, se torna um desafio completo. Isso, na verdade, é uma das fraquezas do filme. Se tirarmos complemente a graça de sua alegoria, o longa não funciona como uma típica história de entretenimento como outros grandes filmes que conseguem conciliar os dois planos em um só: ter uma boa história e funcionar metaforicamente tão bem quanto.

De certa forma, até mesmo o próprio filme reconhece isso, mas não assume sua verdadeira identidade até a sua última cena, afinal, não seria mercadologicamente interessante entregar o ouro para o espectador logo em seus primeiros atos. Isso, porém, não torna o longa desonesto. As pistas são fornecidas a todo o momento pelo visual, por frases soltas importantes em diálogos e, principalmente, pelo som.

O espectador mais ligeiro irá abandonar imediatamente o filme em sua importante função narrativa e embarcar na imersão alegórica que o diretor propõe. Porém, caso não o faça a tempo, no momento da revelação final, somente vazio e ira existirá nessa experiência. Você pode se sentir enganado e frustrado por ter vivenciado apenas uma boa experiência de angustia, mas não uma grande história por si.

Por essa condição, mãe! será o filme mais divisivo da carreira inteira de Aronofsky, além de ser um dos mais polêmicos do ano. Nessa história de invasão e caos, resta apenas amor e ódio em seu final.

Perturbação da Fé

A partir desse ponto, não há mais motivo de ficarmos em meias palavras com mãe! Spoilers permearão o resto da análise.

Darren Aronofsky é um dos realizadores contemporâneos mais felizes em sua assinatura cinematográfica. Acredito que aqui, temos finalmente o ápice dessa culminação autoral que vinha desenhando ao longo de todos os outros filmes.

Mãe! é um filme de proposta experimental e totalmente pessoal. De modo claro, é um exorcismo dos próprios demônios pessoais do diretor. Não é de hoje que Aronofsky aborda a fé e o cristianismo em suas obras. Aqui, temos o fim de uma trilogia sobre essa questão divina – os outros são Noé e A Fonte da Vida.

O longa é uma grande alegoria sobre o Antigo e o Novo Testamento segundo a Sagrada Bíblia, tendo um foco narrativo muito enfático na parte do Antigo Testamento. Logo, a personagem de Jennifer Lawrence é a Mãe Natureza em contato íntimo com seu lar, a Terra, o planeta. Seu marido, Javier Bardem, é Deus, o grande poeta e criador de tudo e todas as coisas. Juntos, vivem neste paraíso rústico e idílico, isolado de tudo.

O cinismo já é notado na abertura do longa com o estabelecimento de conflitos primordiais. A Mãe é bastante solitária (repare em todas as vezes que acorda sozinha no quarto) tentando inspirar Deus a criar novas obras, porém Ele sofre com um bloqueio criativo. A trata friamente, quase nunca dorme ao seu lado. Sua musa inspiradora não arranca um suspiro de graça e inspiração.

Pura, imaculada, angelical e inocente, a Mãe deixa Deus com seus problemas enquanto trabalha firmemente para restaurar e fortalecer a Casa que outrora foi destruída por um grande incêndio. Das cinzas, apenas restou um precioso Cristal guardado no escritório de Deus (Paraíso, Jardim do Éden).

A normalidade cotidiana quase perfeita aos olhos da Mãe é interrompida de súbito. Um visitante indesejado surge sem aviso prévio. É o primeiro homem, é Adão. Vivido por Ed Harris, o homem é completamente moribundo, doente e cheio de vícios (álcool e cigarro), mas consegue despertar uma grande paixão em Deus que se fascina pelas histórias contada pelo homem. Nós, presos à Mãe, nunca escutamos essas histórias. Deus é mais interessado em sua grande criação, criada à Sua semelhança, feita também para completar um vazio existencial – embora ele saiba, no fundo, que o homem é imperfeito.

Adão fica na casa por um dia e entra no escritório de Deus que apresenta o cristal sagrado – a maça proibida no Jardim do Éden. Quando Adão tenta tocá-la, Deus o proíbe. Adão obedece, pois ama e teme Deus e a Palavra. Enquanto isso, a Mãe provê a casa, arrumando já a desordem crescente causada pela sujeira e falta de cuidado do homem, além de servir Adão como pode.

Da Costela, vem o pecado

Em um dos melhores momentos da obra, vemos Mãe acordar de súbito a noite (novamente sozinha no quarto). Ela escuta as tosses incessantes de Adão e vai investigar o que acontece. Ao chegar no banheiro, se depara com Deus confortando o homem e sua angústia, pois Deus ama sua criação.

Na encenação, se o espectador piscar, vai perder um detalhe importantíssimo. Assim que Mãe vê o que acontece, percebemos que há um ferimento nas costas de Adão que logo é encoberto pelas mãos do Poeta/Deus. Ali, Aronofsky já dá o indício que Eva logo surgirá, pois falta uma costela em Adão.

Dito e feito. No alvorecer, Eva chega. E na interpretação de Aronofsky, Eva e o Diabo já são um só. Por mais que Adão seja um incomodo, nada supera a malícia de Eva, interpretada por Michelle Pfeiffer. A personagem tenta cumprir o papel da Mãe como anfitriã, mas é desastrada é mais prejudica do que ajuda. Não demora nada para também abusar da paciência da Mãe.

Como também representa o Diabo, Eva passa a incutir duvidas na cabeça da Mãe, ridicularizando a falta de desejo de Deus por ela e pelo sexo. Enquanto tenta agradar a dona da casa, Eva também só prejudica o ambiente e intoxica o lugar até entrar no Paraíso com Adão e cometer o pecado original: quebrar o cristal sagrado. Deus, furioso, os expulsam do escritório, segura os cacos daquele totem, sangra em seus restos e decide isolar seu lugar de trabalho. Nunca mais o homem pisará ali. Enquanto isso, Mãe procura o estranho casal que já está ocupado transando em outro cômodo.

Como perceberam, Aranofsky faz “pulos” narrativos de uma situação para outra. A lógica estabelecida na narrativa clássica geralmente exige a ação e então uma reação. Tivemos a ira divina e o enxotar do casal de primeiros homens, mas de modo nenhum vemos eles com seu próprio drama. Adão e Eva não lamentam ter decepcionado seu criador que tanto adoram. Eles agem com completa indiferença e já se ocupam com uma nova atividade pecaminosa.

Paralelamente a isso, Aronofsky busca construir a relação melhor desenvolvida do personagem: da Mãe com a casa. Desde o começo da alegoria, vemos o contato íntimo da Natureza com a Terra. Uma ligação realmente única. Ela sente a saúde cardíaca da casa minguar conforme o tempo de permanência do homem ali aumenta.

Nós, as pragas da Criação

O segundo ato da obra ainda pode funcionar bem para o espectador que não sacou diretamente a alegoria do filme. Basicamente, Aronofsky escalona o mesmo raciocínio empregado até então, levando a história para novo limites de estranhamento e desconforto.

Aqui, os diálogos já tornam a alegoria mais evidente com as discussões da Mãe com Deus, contestando o motivo pelo qual Ele não toma qualquer postura diante dos abusos dos visitantes. Fora isso, a própria narrativa já fica menos ambígua, frisando mais que a história se trata mesmo de uma alegoria. Isso é evidenciado pela presença de Caim e Abel, que invadem a casa reclamando sobre a herança que seria deixada por Adão.

Obviamente, Caim acaba matando Abel no meio da confusão. Deus, Adão e Eva socorrem Abel e o levam para o hospital deixando a Mãe sozinha na casa. Se fossemos focar sobre o tal do “terror” da obra, essa seria a parte mais assustadora, pois o assassinato “corrompe” ou acelera a degradação da casa, afinal um dos maiores pecadas foi cometido na Casa de Deus, já enfraquecida.

Aqui, nitidamente podemos sentir os sacrifícios que Aronofsky faz para preservar o experimento cinematográfico de modo puro. Nessa altura, já estamos na metade do filme e praticamente nada foi devidamente desenvolvido do modo que estamos habituados a ver.

Por conta dos personagens serem parte dessa enorme alegoria, também se tornam completamente restritos a ela. Aronofsky preserva a todo momento essa pureza casta e trabalhadora da Mãe, dona de casa e esposa companheira. É através das nuances da excelente atuação de Jennifer Lawrence que sentimos a frustração da personagem em não conseguir provocar o fascínio em Deus do modo que os homens causam.

Até o final do filme, a Mãe não tem ciência que faz parte da alegoria, que ela própria também é uma criação de Deus. Infelizmente, a virada desse reconhecimento não é tão potente como poderia ser. A personagem ainda cumpre, benevolamente, sua função primordial de alegoria até mesmo em seus instantes finais, já ciente da divindade do marido. Seu amor pelo Criador é o mais puro possível, indo até as últimas consequências para comprovar isso.

Voltando ao miolo do segundo ato, ele se comporta bastante como um filme de terror sobrenatural ou de casa mal-assombrada. São momentos curtos que encaixam bem na cronologia do Antigo Testamento, mas envolvem o lado mais comercial da obra: a apresentação de algumas pragas do Egito enquanto Deus está ausente na casa. Novamente, ela apenas sente que tudo está errado e deseja que as coisas voltem ao normal, quando não haviam homens na casa, apenas ela e o marido.

A interpretação de Aronofsky é bastante niilista acerca da humanidade. De todos os homens e mulheres que passam na casa, apenas um se importa em cuidar e tratar a Mãe com respeito. Quando enfim o surrealismo realmente acontece, durante o velório de Abel com a chegada de milhares de visitantes bizarros, vemos apenas a pior face da humanidade, ainda que um pouco comportada se comparada ao clímax do filme.

Diversos pecados surgem na cena, ferindo todos os dez mandamentos. A humanidade é perversa, caótica e parece esquecer completamente do propósito original daquela reunião. Diversos povos, etnias e idiomas surgem, mas todos os homens ignoram e desdenham dos comandos e ordens da Mãe, tentando proteger a casa a todo custo.

O pretexto da justificativa é repetido diversas vezes: Deus nos ama, Deus abriu sua casa e coração para conosco, Deus mandou dividir. Todas essas frases belas soam totalmente hipócritas diante de sorrisos debochados, depravação e lixo que surgem daquela situação. O homem deixa Mãe ainda mais impotente com esse pretexto.

Para interromper esse enorme atropelamento narrativo e não jogar a história do seu em completo caos, o diretor-roteirista se vale do episódio do Dilúvio para reestabelecer a ordem – isso ocorre quando um casal quebra uma pia ainda não cimentada, após Mãe avisar diversas vezes para não sentarem sobre o lugar. Nesse ponto, Adão e Eva já se foram e nunca mais retornam na história.

Então, convenientemente, o diretor-roteirista finalmente desenvolve o conflito latente entre Mãe e Deus com um confronto direto em diálogo que também torna a alegoria mais óbvia. Depois da briga, Deus finalmente intercede ao desejo da Mãe: se tornar realmente mãe. Aqui, vale mencionar que temos o primeiro fade out do longa, mas ao contrário do que estamos acostumados, Aronofsky dissolve a tela para o branco pacífico e sereno, já anunciando a gravidez da protagonista e uma breve paz.

Quando Deus se dá conta que será pai e não mais o Pai, a inspiração volta e o bloqueio narrativo some. Finalmente começa a escrever um novíssimo poema: o Novo Testamento. Mas não interessa a paz a Aronofsky. A crítica do diretor sempre visa o caos e mesmo nessas cenas que antecedem a loucura do clímax, temos Mãe interagindo com a casa que, mesmo restaurada, já está corrompida em suas fundações – pelo sangue maldito do assassinato de Abel e também pelo isqueiro perdido de Adão. Ou seja, as marcas do homem se tornaram uma só com a casa, apesar dos esforços da Mãe em preservá-la.

Logo, algumas experiências sobrenaturais voltam a ocorrer, exatamente com as assombrações que ela testemunha quando fica sozinha na casa. Mesmo explodindo de grávida, Mãe permanece solitária. Deus está empenhado em sua nova escrita, na sua nova criação. Para Aronofsky, a Palavra vale mais que o menino Cristo ainda não nascido. Portanto, a alegoria sofre algumas alterações: a Mãe continua representando a Natureza, mas agora também faz a parte de Maria na narrativa bíblica.

Apesar deste abandono, Mãe parece estar em verdadeira paz e completamente realizada. No dia que Deus finalmente termina sua obra “perfeita”, a protagonista decide fazer um farto jantar em comemoração. Entramos enfim no terceiro ato e tudo vira uma montanha-russa ascendente insana.

Enfim, o Fim

Nunca antes na escrita de Aranofsky tínhamos visto algo tão intenso e provocador durando tantos bons e terríveis minutos. Enquanto os dois atos inteiros conseguem dar conta de metaforizar o Antigo Testamento e suas diversas passagens, o diretor decide colocar todo o Novo Testamento em questão de minutos para encerrar a obra de modo extremamente chocante.

A decisão é bastante acertada, pois nos pega totalmente despreparados, criando uma extensão de sentidos e sentimentos raríssimas vezes antes vista nos cinemas. Nessa enorme loucura estabelecida com o clímax, o espectador torna-se um com Mãe e Aronofsky finalmente torna seu cinema pura experiência.

Para justificar os acontecimentos, Deus recebe uma ligação de sua editora (Espírito Santo) – interpretada por Kristen Wiig, avisando que seu novo escrito é o seu maior sucesso. Mãe fica surpresa e decepcionada em descobrir que Deus já tinha mostrado seu novo trabalho para outros e que as pessoas já estavam consumindo essa novidade.

Como tinha mencionado acima, todos os personagens sofrem da natureza imperdoável da alegoria dessa interpretação religiosa de Aronofsky. Já sabemos que a Mãe é boa e pura e que a humanidade é desprezível. Mas e Deus? Para o diretor, Deus é um narcisista completo, hipócrita, inconsequente e despreparado por ceder o livre-arbítrio. Sua história é caótica justamente porque a história da Criação segue sempre sendo escrita por mãos diferentes, com tintas diferentes.

No filme, Deus não intercede no destino dos acontecimentos. Ele gosta de observar e conhecer as histórias novas criadas pelos homens. Deus aprecia o caos. Deus também é o Diabo – vemos a imagem do Criador rabiscada com chifres depois da morte de Abel (uma crítica de que até mesmo sob seu próprio teto, Ele é permissivo com homem a ponto de cometer o maior dos crimes sagrados).

Ou seja, ter ou não a presença de Deus é um grande tanto faz como tanto fez nessa leitura proposta pelo diretor, pois Ele se porta de modo indiferente, apesar de não se sentir desse modo. É um Deus solitário, imperfeito, egocêntrico que cria apenas para angariar mais e mais adoração. Aronofsky vê que o amor da divindade nada mais é do que a causa da própria miséria humana, da miséria de tudo e da frivolidade da vida.

E para debatermos Deus e o paradoxo lógico da Criação nunca poder ser de fato perfeita, entraremos em um nível de discussão filosófico que não cabe aqui, mas em outro artigo. É esse o nível da reflexão que o diretor propões com Mãe! Algo realmente fantástico e fascinante somente por trazer a tona um debate tão interligado com essência da nossa humanidade. Nos levar a pensar no Divino e no nosso papel no Cosmos e aqui na própria Terra.

Tudo isso por conta desse derradeiro terceiro ato nada menos que perfeito. Na noite do jantar, ocorre uma nova invasão na casa da Mãe. Deus novamente não se preocupa com a esposa – essa característica é plenamente compreensível por conta da Natureza ser uma Criação primordial e, logo, obsoleta com o alvorecer da humanidade, de propósito que já infere subjugação da anterior, afinal é assim como Ele diz: Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra! (Gênesis 1:28)

Nesse cenário, Mãe já está derrotada mesmo que ainda carregue Cristo dentro de si. A casa é novamente povoada por uma turba ainda maior que a anterior. Novamente, tudo é vilipendiado, consumido e destruído enquanto Deus festeja o sucesso de sua Palavra com os homens.

A partir do momento que um personagem diz a seguinte frase para a Mãe: A obra dele é única! Ela se comunica com todos, mas cada um a sente de modo diferente, Aronofsky elabora o resumo de toda a história da humanidade – de um modo bastante semelhante a A História da Humanidade como retratada por Milo Manara em icônica arte. A história começa com a fundação da fé judaico-cristã – só na vertente cristã, existem mais de 34 mil igrejas que interpretam a Bíblia de modos distintos.

O que antes não havia, agora existe: diferentes líderes surgem para pregar a palavra do Senhor. Ao finalmente encontrar Deus no meio de toda a movuca, Mãe dá o ultimato: ou tira todos dali agora, ou lidará com o Apocalipse. Deus continua passivo como sempre e o Apocalipse se inicia. Através de imagens perturbadoras de Fome, Pestilência, Guerra e Morte a cada cômodo da casa tomada enquanto Mãe perambula desesperada salvando os cacos, Aronofsky cria seu melhor momento na direção da obra.

A montagem é assustadoramente eficiente e invisível tornando toda a sequência visual realmente única. É ver para crer, pois se trata do indizível cinematográfico. Me estender em palavras para descrever o que ocorre é totalmente redundante. A sequência apenas respira quando a Editora, o Espírito Santo, encontra Mãe no meio dos destroços dos aposentos arruinados da casa.

Ao contrário do que muitos devem pensar, creio que este seja o momento mais importante do filme, pois traz à luz a crueza da mensagem do filme. Subentende-se que nessa sequência, a humanidade avança por eras até o Apocalipse. Na ausência de Deus – repare que quando ele ressurge, alguns homens bradam: Ele voltou! Ele não nos abandonou! –, é o Espírito Santo, o viabilizador da Palavra divina, quem comanda as coisas na casa – o diretor então, finalmente, admite algum senso de ordem e hierarquia diante da anarquia que se instalava na casa.

A Editora assume um tom com Mãe até então antes nunca visto. Finalmente encontramos a Inspiração! Agora é hora de dar fim nessa loucura toda! A Editora decide dar fim à vida da protagonista, pois vivenciou toda a consequência da loucura originada pela Criação – lembrando que como a Natureza vem antes do homem, ela acaba inspirando a criação do mesmo. Na lógica do filme e dessa interpretação, a Editora sabe que se dar fim ao primórdio da Criação, não haverá homem e, portanto, haverá paz.

Para Aronofsky, a Palavra é perfeita, pois se mantém integra e decide sujar as próprias mãos quando se faz necessário. Ela é mais perfeita que Deus, pois Ele é conivente com o desmando das próprias Leis. Ele é um hipócrita.

Porém, obviamente, Mãe é salva. Primeiramente pelo único homem gentil que logo depois é morto. Só então Deus surge, camuflado entre outros, e a leva novamente para o Paraíso cujas portas são arrombadas pelo próprio Divino. Lá, enfim, Cristo nasce.

O Fim do Começo de Tudo e Todas as Coisas

Assim como em Noé, Aronofsky visa trabalhar a tensão de um suspense incerto. Nós já conhecemos a natureza de Deus nesse ponto e sabemos que ele pegará Cristo assim que a Mãe vacilar. Ele oferecerá para a turba de fanáticos que aguarda silenciosamente do lado de fora. Uma nova Criação, a mais perfeita de todas, trazendo assim ainda mais adoração.

Após agonizantes minutos sempre pautados pelo barulhinho incômodo de uma sineta escondida no quarto, dias se passam no quarto e Mãe, pela primeira vez, sente a necessidade humana do descanso – repare que antes, sempre ao menor indício de barulho, a protagonista já levanta da cama muito disposta a investigar o que ocorre.

Ela perde a guerra contra o sono. Ela perde seu único filho. E acorda sozinha.

Deus entrega a criança para os zelotes e fieis que a envolvem até matá-la – assim como na Bíblia, Cristo é enviado à humanidade para morrer e transformar. Em desespero, a protagonista avança contra os homens para encontrar o corpo do filho já parcialmente devorado, literalmente, pelos fiéis – alusão clara ao fundamento da Igreja Católica e do ato de comungar o “Corpo de Cristo”.

É o primeiro momento de pura revolta e ódio na personagem pura até então. A casa finalmente está morta, assim como o espírito de Mãe. Porém, antes de irromper ao assassinato de alguns homens e depois ser brutalmente espancada em resposta – a imagem é poderosa e bastante perturbadora, há um ponto crucial que desenvolve o personagem de Deus. E é justamente por conta disso que vejo o comentário de Aronofsky sobre a divindade menos cruel do que ele aparenta ser.

Para entendermos o desenvolvimento desse personagem, é preciso sacar que o mesmo se encontra no contraste entre as duas passagens mais importantes para Ele: a destruição do cristal e da morte de Cristo. Quando o cristal é destruído, Deus é tomado por uma fúria restritiva. Aqui, com a morte do filho, acontece o oposto. O personagem lamenta o fato e chora, mas clama para que Mãe compreenda a necessidade do perdão.

É preciso perdoar para evoluir. E Deus parece aprender isso ao longo da jornada. Ele frisa que Jesus vive, mas agora nas lamúrias da humanidade que tenta redimir seus pecados. Nesse momento, é curioso notar como a obra se torna realmente redonda. Em diálogos anteriores com Eva, Mãe reconhece que só “dá e dá e dá…”, nunca recebendo nada em troca, apenas angústia e sofrimento – esse diálogo se dá no porão da casa.

Ali, naquele ponto crucial, Mãe já não aguenta mais dar. A hora do fim realmente chega. Reencontrando o isqueiro perdido de Adão, a protagonista corre para o porão, no qual anteriormente encontrara um tonel gigantesco de combustível em uma parte incendiada da casa. Mesmo com Deus implorando para que ela não exploda toda a Criação, Mãe o ignora e encerra tudo que havia ali, se sacrificando em conjunto.

Porém, se ainda restava alguma dúvida anterior ao espectador sobre a natureza bíblica da alegoria, ela se encerra com a conclusão do filme que se trata da mesma sequência da abertura. Deus carrega a protagonista incendiada que admite ainda amá-lo. Ela se sacrifica e entrega o coração ainda pulsante para Ele. O órgão se desfaz em cinzas e dá origem ao cristal que inspira Deus a retomar toda a Criação novamente. A Casa é restaurada e uma nova Mãe acorda no quarto.

Logo, com a conclusão que encerra um ciclo, é possível interpretar mais coisas dessa visão do diretor. A primeira é que testemunhamos apenas a Criação que conversa com nossa História. Não sabemos nada da anterior que chegou no mesmo fim fracassado que a nossa e nem sabemos se a próxima será tão abominável quanto a que acabamos de ver. Por isso, interpreto que o Deus de Aronofsky é um ser também de constante evolução. Ele aprende com os erros do passado, por mais imperfeito que seja. Pode ser que nessa nova iteração, as coisas tenham um final mais otimista, pois Deus foi transformado pela jornada anterior.

Também é interessante que o Criador não tenha controle algum sobre suas criações, incluindo Mãe. Mesmo diante da completa destruição, o Todo Poderoso nada pode fazer para impedir a força destruidora da Natureza – o lado emocional da personagem é sempre contrastado contra a racionalidade e defeitos humanos do marido.

Outro elemento curiosíssimo que muita gente irá se perguntar é, se existe o Paraíso e a Terra, onde raios está o Inferno? Evidentemente que o Inferno é o porão da casa, sendo o demônio representado muito pela humanidade diversas vezes. Mãe sempre tem os piores encontros com atividades sobrenaturais e diálogos impuros quando está no porão. O instrumento de destruição também fica no subsolo da casa, além dele ser o único cômodo realmente intocado quando todo o resto já está em ruínas.

Obsessão Autoral

Mas limitar Mãe! apenas nessa evidente interpretação é um erro. Mesmo que o filme talvez não funcione sem essa alegoria, Aronosfky é competente o suficiente para fazer a obra dialogar de modo, provavelmente, único com cada espectador.

É possível tirar desse filme uma mensagem ambientalista importante, uma crítica ao culto à personalidade, na criação de falsas celebridades, no vazio existencial humano, na nossa incapacidade empática, na defesa da propriedade privada, na importância da originalidade, do mercado artístico em si, entre tantas outras.

O filme de Aronofsky é vivo e cheio de reverberações únicas que trarão conversas por anos a fio. Por suscitar algo que mexa tanto com o espectador, o diretor já merece diversos louros.

Em termos estéticos, Mãe! também sofre da obsessão do diretor em ser fidelíssimo a proposta original da obra. A estética visual do filme é limitada pela escolha de fixar a câmera na protagonista, nunca se afastando demais, sempre a orbitando. O suspense acaba viciado na encenação que encomenda jumpscares óbvios, além do diretor não dar chance do espectador ver tudo o que se passa nas situações mais estressantes da obra por conta da rigidez da decupagem restritiva.

É uma escolha plenamente consciente e, como sabemos, Aronofsky deve pouco se lixar se achamos ruim ou não. O elemento cinematográfico é vívido e isso é o que mais importa, mesmo que desejássemos que a abordagem fosse mais criativa visualmente. Por causa disso, a metáfora do texto muitas vezes supera a metáfora visual. Tirando os momentos de silêncio, nos quais a narrativa é toda guiada pela imagem, podemos ver poesia na paleta de cores do filme.

Ao contrário de muitas outras obras, aqui temos boas escolhas que complementam a alegoria. Mãe sempre traja tons esbranquiçados e pacíficos enquanto a Adão e Eva e outros homens estão sempre vestindo cores escuras. Até mesmo as paredes brancas da casa evidenciam uma serenidade que a protagonista deseja incrementar com a escolha da tinta levemente dourada e próspera na continuação da reforma do lugar.

O diretor também busca mimetizar passagens que claramente homenageiam o clássico O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski. A sinopse dos dois filmes pode ser praticamente a mesma, inclusive: um casal é visitado por vizinhos misteriosos que provocam o afastamento de um ao outro, enquanto a esposa acredita que sua vida está em perigo.

Em termos sonoros, também faz muito sentido Aronofsky ter escolhido não incluir nenhuma trilha musical na obra. Além do desafio da encenação ser maior e ele provar se capaz de guiar a emoção do espectador sem nenhum recurso musical didático, o diretor cria em conjunto com os designers de som uma das melhores experiências acústicas do ano. Fora isso, a música é uma criação humana e não divina – e a música só surge na casa quando a humanidade está presente.

A Tragédia de um Poeta

Assim como o Deus de sua história, Aronofsky deve sofrer um amargo fracasso com Mãe!. Os motivos são mais do que evidentes: não é uma obra fácil e sua proposta pode desagradar perfeitamente até mesmo os mais capazes dos espectadores em compreendê-la.

Alguns podem achar ofensiva, enquanto outros a taxam de genial. Para mim, se trata da culminação autoral de Aronofsky. É obviamente pretensioso, com uma história que pode ser só alegoria, além da estética ser extremamente dura e nada habitual. Ao contrário de Dunkirk, único filme semelhante em sua audácia neste ano, Mãe! não se preocupa em oferecer um entretenimento universal.

Mãe! acaba então sendo uma peça brilhante de experiência cinematográfica, mas tão imperfeita quanto o nosso trágico Poeta narcisista trazido por Aronofsy.

mãe! (mother!, EUA – 2017)

Direção e roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer
Gênero: Drama, Thriller Psicológico
Duração: 121 minutos.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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