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Crítica | A Mulher que se foi

Uma mulher está a trinta anos na prisão. O assassinato que a condenou, porém, quem cometeu foi outra detenta, uma das suas melhores amigas. Agora ciente dos acontecimentos, essa mulher é libertada. Ninguém pode saber da sua soltura, avisa ela à diretora da prisão. A prisioneira, professora de escrita e leitura, é solta dessas obrigações para conseguir olhar para a sua vida pessoal. Entre numa jornada para reencontrar seus filhos e concretizar a vingança contra o ex-namorado que armou sua prisão. A Mulher que se foi, mesmo com as diversas referências e elementos de cunho religioso, é um filme que parte de onde Tolstói parou em seu conto Deus vê, mas custa a revelar, inspiração do roteiro.

O texto de 1872 não é da “fase cristã radical” do russo, é anterior à Anna Karenina, mas dá papel relevante à fé, sendo uma parábola sobre o perdão. A premissa é semelhante, mas vemos os antecedentes, o momento da prisão, a vida na Sibéria, do estabelecimento de sua fé cristã e do seu comportamento “justo”, e o encontro, depois de 26 anos, o culpado do crime original. Esse confessa a autoria, mas o protagonista morre antes de sair da prisão, já sem qualquer ilusão de reencontrar a esposa e os filhos. Lav Diaz mostra uma personagem que tenta escapar das conformidades, mais humana, em dúvida – ainda sim apresentando traços de religiosidade.

Horacia (Charo Santos), a protagonista do filme, livre, encontra sua filha Minerva (Marjorie Lorico) com facilidade. Mas a busca que vai mover o resto da trama será pelo seu filho, Redentor. Seguindo uma pista, Horacia disfarça-se e passa a participar da vida noturna de uma cidade. É lá que encontra o tal ex-namorado, Rodrigo Trinidad. Agora com o nome de Renata, a protagonista se integra com uma população marginal, vira amiga de um corcunda (Nonie Buencamino) vendedor da iguaria balut (ovo de pato fertilizado, com embrião parcialmente desenvolvido, e cozido), e da travesti Hollanda (John Lloyd Cruz), que sofre de epilepsia.

Lav Diaz constrói seu filme com rédea curta. Além de diretor e roteirista, é o montador e diretor de fotografia. Sente-se uma unidade muito clara entre todas as partes, mesmo com algumas falhas que outro par de olhos poderia ter evitado. A filmagem em um belíssimo preto e branco com bastante contraste, funciona nos planos abertos que dominam o filme. A visão de Diaz impregna a tela, mas ele exige também que o espectador passeie pela tela, atente para a disposição dos objetos e das pessoas – justificando a longa extensão das cenas. Destaque para as tomadas externas noturnas, tão misteriosas e surpreendentes como a própria Horacia.

Importante destacar essa ligação entre a forma e o desenvolvimento da personagem: ao mesmo tempo em que sabemos das intenções de Horacia, pelo que ela fala, também deixamos de ver outras ações, que acontecem fora da tela. Os ícones sagrados e igrejas contrastam com o ambiente da pobreza, da desocupação forçada da terra pela polícia filipina (momentos pontuais, quando os tableaux parecem misturar a visão de Apichatpong Weerasethakul e Goya). A ausência de trilha sonora faz que cada anúncio do rádio, as notícias sobre a política nacional, a morte de Madre Teresa de Calcutá (a morte da piedade) repercuta seu significado no filme. O contexto sócio-político se soma às ações, à própria mistura de línguas (filipino, inglês e espanhol) e à própria natureza dos personagens para apresentar um cenário de indefinição.

Da saída da prisão para a reconstrução da identidade, A Mulher que se foi pretende misturar a noção de compaixão, que foca mais no aspecto moral do que bem no religioso, mais estetizante, com a da transmissão dos desejos. Quer dizer, Horácia está definitivamente afastada da sociedade, ela é uma marginal em sua própria vida. Ela acaba não conseguindo concretizar sua vingança pelas próprias mãos. Seu arroubo de violência com Hollanda, personagem de quem mais se aproxima, no intuito de reaver psicologicamente um filho, é a chave humana que concretiza a morte de Trindad.

É uma história com muito potencial e com momentos marcantes, mas Diaz parece perder a mão na decupagem do seu filme. As longas tomadas cumprem seu papel de conectar o espectador às personagens enquanto estas ligam-se entre si, uma dramaturgia movida pelo tempo cronológico, mais do que em momentos de estabelecimento psicológico. Essa incapacidade de Horacia encontrar a seu filho Redentor após o extermínio de Trinidad (a Trindade, isto é, de Deus), e, portanto, do encontro com seu Eu passado (de mãe, esposa, sem antecedentes criminais) não consegue se concretizar senão artificialmente na bondade para com os marginais, como ela. Tão artificialmente quanto Diaz divide e termina seu filme.

Tendo uma visão distanciada, a mesma visão que ele trabalha em seu filme, os defeitos narrativos de A Mulher que se foi ficam muito evidentes. A extensão de três horas e quarenta, infelizmente, não é totalmente justificada em comparação com seu efeito final, que poderia ter sido obtido mesmo com uma duração menor. E afirmo isso tendo em vista que não há nenhum problema idealmente em fazer um filme que não se encaixa no espaço dos 90 a 150 minutos usuais. Prova disso, são as filmografia de nomes importantes como Béla Tarr, Sion Sono, Syberberg, Raúl Ruiz, e de boa parte dos filmes do próprio Lav Diaz.

A Mulher que se foi (Ang Babaeng Humayo, 2016)
Direção: Lav Diaz
Roteiro: Lav Diaz
Elenco: Charo Santos-Concio, John Lloyd Cruz, Michael De Mesa, Nonie Buencamino, Marjorie Lorico
Gênero: Drama
Duração: 226 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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