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Crítica | Napalm – Uma tarde de amor em Pyongyang

*Este filme foi visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

É difícil negar a importância da obra de Claude Lanzmann para o documentário. Seu monumental Shoah, com mais de 9 horas de duração, revela a magnitude dos relatos orais, até mais que os documentais, para a História. Afinal, o cineasta trabalha com temas tão seminais para o mundo pós-guerra, como o antissemitismo na Europa, o holocausto, o estado de Israel, de maneira a reorganizar e reconstruir a memória pelo vigor da palavra, reacendendo o passado inacessível em imagens através de um presente, mesmo que em ruínas.

É natural que Lanzmann tenha optado por escrever um livro de memórias, A Lebre da Patagônia. Fugindo dos grandes temas tratados em seu cinema, Napalm surge de um dos capítulos do volume, no qual é relatada a sua primeira estada na Coreia do Norte, em 1958, como membro da primeira delegação Europeia convidada pelo próprio Grande Líder, Kim Il-Sung, para visitar o país.

Lanzmann permaneceu lá por semanas e, no entanto, mesmo com toda a pompa revolucionária e espetaculosa, os anfitriões não foram capazes de oferecer dietas muito ricas para as necessidades do narrador. Foi necessário que tomasse algumas injeções vitamínicas. Em uma jocosa série de acontecimentos, Claude expõe sua faceta de Don Juan para narrar um episódio corriqueiro que teve com a enfermeira que “picava” seu traseiro.

Em 2015, Lanzmann faz sua terceira visita à Coreia do Norte (foi como turista em 2004), agora com permissão para filmar. Mas o Estado totalitário não dará quaisquer benefícios para o francês. Por isso, o filme se divide em dois momentos. Um primeiro em que acompanhamos uma câmera na mão, muito instável, solta, capturando viagens de carro e os monumentos gigantescos do país. Vê-se as imagens mais comuns do país, o culto ao líder, indivíduos habilidosos em taekwondo, lutas cenográficas, museus históricos com itens da Guerra das Coreias, além de algumas sequências com imagens de arquivo. Enfim, aspectos que surgem em qualquer documentário sobre o país. Mas o fator Lanzmann dá um tom de desequilíbrio: com quase noventa anos, o diretor é uma narrador onipresente que aparece sempre na tela, com seu andar manco, pesado, e um olhar ora decidido, ora perdido. O velho homem mistura um pouco de loucura e fascinação ao observar, comentar e relembrar o que vê, evocando uma atmosfera um pouco ridícula aos passeios.

A voz de Lanzmann permanece na segunda parte. Não só sua voz, como a sua face preenche a tela. Em longuíssimos planos, sem corte, a câmera fixa na cara do diretor, ficaremos sabendo de toda a história, em detalhes, dele com a enfermeira. Nesse momento, Napalm recupera a forma de Sobibór, 14 octobre 1943, 16 heures (2001), em que a personagem do documentário narra os acontecimentos em uma longa entrevista. No caso, Lanzmann conta um momento de sua intimidade em que, aos poucos, busca construir um comentário de também toque na esfera política – a exemplo da dolorosa passagem que explica a escolha do título. É uma pena que o próprio narrador não parece estar consciente de como, em vários momentos, sabota a própria gravidade de sua memórias, quando não passa vergonha.

O nonagenário traz suas lembranças libidinosas, descrições “poéticas” dos lábios e dos pés da enfermeira, descreve com detalhes as ações e as conversas, suas sensações etc., e o que na primeira passagem era um alívio cômico – ainda que deslocado –, aqui a subjetividade incomoda e traz a languidez de uma conversa de bar. O pior é quando, relembrando o encontro dos dois em uma ponte, Lanzmann relembra uma frase de Simon Srebnik em Shoah: “Sim, este é o lugar”. A personagem, no entanto, não se referia a qualquer lugar, mas onde ficavam os fornos de um campo de concentração. Esta frase dita em um momento de excitação parece revelar para o cinema de Lanzmann uma decadência e uma banalização da memória e interferindo eticamente na estrutura de seu filme.

Se não desaba é porque a narrativa, como o diretor já conseguiu mostrar em vários dos seus longas, é mais forte pelos detalhes, atravessada pela subjetividade, mais até do que a imagem. Tanto, que o diretor nem vai tentar reencontrar sua amante de um dia. Ainda assim, notável o anacronismo e a falta de empatia, especialmente em um cinema tão político quanto o de Lanzmann, em que o destaque personalista não consegue abraçar tanto o universal quanto poderia.

Napalm (idem, França – 2017)

Direção: Claude Lanzmann
Roteiro: Claude Lanzmann
Gênero: Documentário
Duração: 100 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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