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Crítica | Negócio das Arábias


Você já viu algum americano no deserto ouvindo a banda Chicago no som do carro. Você já viu Tom Hanks envolvido com negociatas entre emissários muçulmanos. Você já viu um ocidental típico render-se ao fascínio que a desolação ensolarada no norte africano exerce sobre os “povos civilizados”. Você já viu tudo isso antes, mas poderá ver mais uma vez, se decidir assistir a “Negócio das Arábias”, que não é – nem de longe – “Três Reis” (1999), “Jogos do Poder” (2007) ou “Lawrence da Arábia” (1962).

Filmes como este servem para nos lembrar de como a indústria cinematográfica precisa de um giro rápido que mantenha toda a cadeia produtiva em atividade: artistas, técnicos, publicistas, agentes, estúdios e exibidores, sucedendo projetos um atrás do outro para que a rede seja abastecida com títulos frescos a cada semana. Essa é, ao mesmo tempo, a beleza e a fraqueza do modelo como um todo. É resultado, pois, que celebra de maneira trôpega o gênio do sistema a que já aludiu o estudioso Thomas Schatz, aqui em momento de inspiração duvidosa.

Qual a finalidade de uma produção como esta, exceto manter tal roda girando? O que temos aqui é uma repetição banalizada de temas, personagens e cenários, com o agravante da agenda política hollywoodiana que permite (ou exige, melhor dizendo) reduzir situações complexas ao mínimo múltiplo comum aceitável pela indústria. Há muito em jogo: no caso, investidores do Oriente Médio, um alvo reconhecido dos produtores que precisam capitalizar suas produções caríssimas para – vejam só! – manter aquela estrutura lá de cima em movimento.

Um filme de origem norte-americana, mas dirigido por um alemão, passado na Arábia Saudita, como este, permite dotar o enredo daquela vaga atmosfera globalizada e multiculturalista – não sem, contudo, continuar desagradando à crítica que responde por reflexo a qualquer ruído em sua cartilha de leitura dos filmes, através da qual seguem determinados requisitos que guiam a análise (ainda que o preço seja achar no filme algo que não está lá, mas apenas na cartilha).

Em “Negócio das Arábias”, o executivo de vendas bostoniano Alan (Tom Hanks) viaja à Arábia Saudita tentando ao mesmo tempo salvar a grana para a faculdade de sua filha e o destino de sua empresa, que sofre com a perda de negócios para a concorrência chinesa. Inseguro e vítima de ataques de ansiedade, Alan tem dificuldade em encontrar seus contatos e adaptar-se à rotina de uma sociedade que não esconde ter regras muito particulares (e em grande parte do tempo desconhecidas) para fazer negócios e amigos (ou, eventualmente, amantes). Em sua vulgarizada jornada de autodescoberta, ele conta com o auxílio de alguns nativos, entre eles especialmente a doutora Zahra (papel de Sarita Choudhury).  

Alan é um norte-americano típico, fruto direto do capitalismo ocidental baseado em consumo e produtividade, que aos poucos é convertido por força das circunstâncias a uma perspectiva muçulmana (ou, ao menos, “árabe”) e idealizada da realidade que o cerca. O filme não reserva refinadas sutilezas para atingir tal objetivo e, mesmo assim, revela-se um desafio intransponível para aquela crítica agendada citada há pouco. Não, o filme não é “preconceituoso” com a Arábia Saudita: isto está na cabeça dos críticos, mas não na tela. Sem relevar detalhes fundamentais do roteiro, é preciso ressaltar que, momentaneamente dividido entre o mundo ocidentalizado e liberal representado pelo “núcleo dinamarquês” da trama (e sintetizado na personagem Hanne, vivida por Sidse Babett Knudsen), e o apelo quase primal, natural e inofensivo do mundo islâmico high tech (sintetizado por sua vez nos personagens do motorista pândego e da nada atraente médica nativa), ele opta seguramente pelo segundo. Onde está o preconceito, então?

A visão do filme é ácida com os ocidentais, reduzidos a adolescentes tardios, viciados e depravados – ou, na melhor das hipóteses, num Alan/Tom Hanks assexuado, hipocondríaco e ridicularizado, por exemplo, ao se esborrachar no chão ao menos três vezes durante a história, e em público – e bastante condescendente com os árabes. Qualquer visão mais crítica a respeito do sectarismo ou da violência institucionalizada é convertida numa espécie de segredo religioso, ao qual a trama não ousa tentar desvendar. Tykwer (também roteirista) não passa de um tolo reverente diante de uma sociedade imperscrutável que ele toca apenas na superfície (embora não se furte de enfiar até o cotovelo no pastelão ocidental), enquanto chuta o balde ao, por exemplo, ridicularizar a ameaça terrorista (no filme, substituída por um banzé de adultério) e obrigar o americano bobalhão a trocar a “boa e velha música da América” pela árabe, em outra cena na qual a sutileza é a verdadeira estrangeira.

O enredo gira em falso, é fato, mas tal característica apenas reforça o caráter do protagonista, verdadeiro objeto da piada que se repete, assim como o capitalismo, o casamento burguês ocidental, o comércio – todos valores e instituições das quais o filme não teme tirar sarro. Reverência que falta porque é, mais tarde, reservada à Meca, por exemplo. Dúvidas? Preste atenção ao símbolo que fecha o filme (uma porta, na verdade).

No final das contas, esta comédia dramática aparece como holograma de um cinema que já foi mais relevante, mais corajoso e certamente mais “cinematográfico”. Uma projeção diluída e desprovida de substância, que peca não pelo que tem de “preconceituosa” (preconceito que tem como alvo, como se viu, o ocidente, e não a Arábia, conforme muitos críticos vão querer fazer crer), mas pela forma como se sujeita a convenções político-ideológicas cada vez mais determinantes no cinema de Hollywood (muitas vezes por motivações efetivamente econômicas) distribuídas por um punhado de personagens, situações e cenários que você já viu outras vezes – não como hologramas, mas como material filmado de qualidade bem superior.

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Publicado por Daniel Moreno

Realizador audiovisual independente: diretor, roteirista e produtor. Ao ouvir o que eu tenho a dizer, você estará dando ouvidos a um discurso completamente diferente daquele de outros cineastas brasileiros. Aqui, não há espaço para estatismo e bajulação a governos.

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