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Crítica | Nerve: Um Jogo Sem Regras

Por mais que seja um fenômeno mais fácil de ser observado em seriados televisivos, o cinema, de tempos em tempos, busca retratar manias e obsessões da sociedade contemporânea a seu lançamento. Entre distopias, utopias e filmes pautados na realidade, o forte teor crítico sempre esteve presente e a juventude geralmente é o alvo predileto. Não é preciso buscar muito longe para pegarmos exemplares de grandes filmes que retratam certa parcela problemática de jovens: Aos Treze, KIDS e até mesmo Spring Breakers.

Nerve: Um Jogo sem Regras é o mais recente deles, porém, com uma diferença primordial: não se trata de um filme depressivo. O roteiro de Jessica Sharzer adapta o livro homônimo de Jeanne Ryan no qual acompanhamos a desventura de Vee, uma típica adolescente tímida encarando as dificuldades rotineiras do colegial envolvendo fama, namoro e dúvidas acerca do futuro.

Tudo muda quando ela é encorajada por suas amigas a jogar Nerve, um game da vertente do clássico “verdade ou desafio”, só que sem a parte da verdade. Sendo um jogo proibido, toda sua comunidade se baseia no anonimato – menos aqueles que decidem ser os ‘Jogadores’ que devem cumprir os desafios perigosos que os ‘Observadores’ enviam através do app de smartphone. Após alguns desafios bobos, Vee une forças com outro jogador, Ian. Juntos, tentarão chegar à grande final onde o vencedor recebe toda a quantia de dinheiro que os observadores oferecem como incentivo para realizarem os desafios.

Como já tinha observado anteriormente, a onda do roteiro de Nerve é justamente capturar o fenômeno da internet e das tantas idiotices propagadas através dela como a realização de desafios mortais aliada à de mortes causadas por vaidade – como as muitas geradas pelo uso indevido de paus de selfie ou até mesmo pela distração causada com a realidade conectada dos smartphones.

Romantizando esse elemento, sua crítica social é subjetiva, algo a se louvar, já que não se trata de obra panfletária. O que realmente importa aqui é a jornada de Vee durante suas 24 horas jogando Nerve. Então, nisso, o filme cumpre bem seu papel ordinário, afinal trata-se de uma aventura típica de mudança abrupta de rotina – uma adaptada “jornada do herói” de Joseph Campbell aliada à diversos clichês de filmes survival game e de obras inspiradas na adolescência.

Graças ao texto ágil, as coisas se desenrolam bem contando com diversas reviravoltas para manter seu interesse aceso durante a projeção. Aliás, a própria protagonista, apesar de cliché, é uma personagem crível e interessante graças à atuação de Emma Roberts e de sua interação com Dave Franco que interpreta Ian. Nesse núcleo, se desenvolve o romance obrigatório destas produções que dá margem para o desenvolvimento dos conflitos que visam engrandecer ambos.

No limite da proposta de Nerve, o trabalho com os personagens principais é satisfatório, apesar de previsível, além de certamente você ter visto algo similar com filmes que nem mesmo saíram dos cinemas. Os coadjuvantes basicamente não têm outra função senão estender o filme ou servirem como muletas para resolverem os conflitos máximos do roteiro. É justamente nisso que Nerve pode se perder dependendo da sua expectativa, o enredo.

A narrativa estabelece bem as regras do jogo de modo didático e expositivo – aliás, exposição é o que não falta nos diálogos fáceis. A partir disso, a narrativa inteira fica telegrafada já que é fácil sacar qual será o conflito que desencadeia o clímax. Os conflitos de personagens secundários também não são tratados com qualquer importância, principalmente o de Liv com Vee que toca diversos temas pertinentes: o da pseudo popularidade, da inveja, das amizades superficiais, da histeria, entre outros. A resolução vem apenas com um diálogo digno de Meninas Malvadas. Uma pena. O mesmo se repete com os outros.

Até mesmo as soluções que o roteiro busca são fáceis e pouco embasadas jogando no artifício da benevolência de hackers conhecidos pelo amigo de Vee. Já com o antagonista da trama, também há uma inesperada mudança de índole nada justificada dentro da trama, apenas para trazer algum choque para o espectador. O festival de absurdos do clímax não para por aí. Resolve o filme, mas certamente não é crível de forma alguma. Aliás, é bem similar com a proposta de Vidas em Jogo, clássico de David Fincher que também aposta em resoluções absurdas e fantásticas no clímax. Ao menos, o trabalho é bem feito em unir motivações e backstory entre o casal protagonista com o antagonista principal.

A dupla de diretores Henry Joost e Ariel Schulman surpreendem positivamente com Nerve visto que ambos saíram de filmes anteriores de Atividade Paranormal. Sendo verdadeiramente o primeiro trabalho com câmera de narrativa clássica, era bastante óbvio presumir erros de decupagem e enquadramento. Surpreendentemente, nada disso acontece. Eles só impressionam com escolhas muito interessantes de planos com pontos de vista inusitados.

Espere ver muita coisa através do ponto de vista de câmeras de smartphones e de telas de outros dispositivos eletrônicos. Aliás, o filme já começa com todo o enquadramento fixado no desktop do computador de Vee enquanto observamos ela interagir com diversas redes. Nisso, diversas características pertinentes à personagem são mostradas em tela – ótima técnica de narrativa. É algo que vem diretamente do pioneiro Amizade Desfeita que se passa inteiramente através do desktop dos personagens.  Também é recorrente o uso de algumas inserções animadas nos enquadramentos que remetem as redes sociais.

Logo, toda essa relação eletrônica e interação de redes sociais com transmissões ao vivo estabelecem um excelente jogo de voyeurismo que é relativamente explorado. Nisso, também o longa se destaca pela mobilidade da câmera que praticamente nunca fica estável dialogando diretamente com a noite intensa vivida por Vee. Os estímulos visuais não ficam restritos ao bom trabalho de câmera. A excelente fotografia cheia de neons de diversas cores confere vida noturna extraordinária para o visual do filme – certamente um de seus pontos mais altos.

Enfim, os diretores pensaram bastante para guiar o longa com leveza e diversos estímulos visuais certeiros que não são distrativos, mas que agregam a todo momento na narrativa e na mensagem que tentam transmitir com Nerve. Outra herança vinda da experiência de Atividade Paranormal é a excelente construção de atmosfera e tensão através do jogo inteligente de planos na decupagem – ordinários na técnica, mas sempre muito eficientes. Destaque para o clímax do núcleo com Liv.

Nerve é uma pequena pérola do cinema desse ano, apesar de se pautar em tantos clichês fáceis para resolver sua trama intrigante. Traz excelente visual acompanhado de uma trilha musical ótima quase constituída exclusivamente com músicas licenciadas. É uma experiência bastante divertida, de espírito leve e com uma mensagem social muito pertinente ao nosso tempo que deveria levar muita gente a pensar nas besteiras cotidianas cometidas por alguns seguidores a mais. Afinal, a fama vale tudo?

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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