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Crítica | No Intenso Agora

Nem sempre sabemos o que falamos, escrevemos, pintamos ou desenhamos. “Nem sempre sabemos o que filmamos”, narra João Moreira Salles no início de No Intenso Agora. Isso porque uma das coisas mais difíceis de serem feitas em qualquer época é um indivíduo conseguir separar quanto do seu discurso é a voz, o pensamento, a ideologia comum de sua cultura, ao invés de um discurso autenticamente original, próprio, subjetivo – isso é material de reflexão, afinal, porque os indivíduos são parte da cultura. Realizar essa separação é exercício dos mais árduos, requer, em primeiro lugar, humildade, singeleza, distância. O sujeito pode, e deve, refletir sobre as suas crenças, remodelá-las. Mas a atividade humana é sempre falível: por vezes, é muito mais fácil que o discurso remodele o sujeito.

A filmagem sobre a qual o diretor faz a afirmação citada mostra como uma babá sai de quadro e transforma-se em figurante no registro dos primeiros passos de uma criança. “Ora, mas não é justamente porque a criança é o que importa no momento?” No caso, não é nem culpa da câmera, do enquadramento, mas a encenação do real, digamos, deixa bem clara a ideia de que “cada um sabe o seu lugar”. O diretor afirma que ao mesmo tempo que se filma os primeiros passos de uma criança, também mostra-se a relação de classes no Brasil.

O filme com “Agora” no título não possui, porém, sequer um fotograma do século XXI, nem nenhum da autoria do próprio João Moreira Salles. Todo o filme é uma narrativa baseada em imagens de arquivo, que são tiradas de quatro eixos: uma viagem feita pela ‘mamãe’ de Salles para China em 1966, a Primavera de Praga, o período da Ditadura militar no Brasil e, a fatia principal, as revoltas estudantis de maio de 1968 na França. Interessa fazer um filme político que traga, em primeiro plano, um ensaio sócio-histórico e sobretudo poético que interligue os diversos cenários.

Começa-se analisando imagens de pessoas desconhecidas para em seguida partir para a visão mais particular, as imagens produzidas pela mãe do diretor. Percebemos o maravilhamento que as imagens tendem a provocar, num curioso conflito entre a pobreza reinante mas orgulhosa da China no auge da efervescência maoísta vista pelos olhos de uma burguesia  Foi com o Golpe de 1964 que Walther Moreira Salles, então Ministro da Fazenda do governo João Goulart, fugiu com sua família para Paris. Quatro anos depois, fugiram da cidade luz devido às manifestações estudantis.

Ultrapassando esses laços autobiográficos, o diretor se debruça sobre as imagens feitas sobre Maio de 1968 numa progressão explicativa, até um tanto didática, para mostrar a visão dos sujeitos daquela época (explícitos nas filmagens apropriadas) e a visão feita a partir dos nossos dias, fora do calor daquele momento. O que não significa que despreze nosso tempo. No Intenso Agora sabe quando está tratando de um ponto que encontra reflexos em acontecimentos dos últimos anos no Brasil. Destaque para o avanço conservador após um período longo de manifestações estudantis que foram perdendo força gradativamente.

Em entrevistas, Salles contou que parte do público francês, ainda com Maio na cabeça, ficou muito incomodada com a “ousadia” da narrativa do diretor. Seguindo a velha divisão de Norte e Sul, No Intenso Agora traz um exercício pouco usual no cinema: o olhar dos pobres para os ricos – ainda que seja de um sujeito que conviveu na fronteira desses dois mundos. A experiência do diretor e o imenso trabalho de pesquisa, latente no filme pela quantidade da filmografia utilizada e comentada, garante um documentário rico em visões. Daniel Cohn-Bendit é tanto figura pioneira como símbolo da contradição do discurso e da ação social das manifestações de Maio. Protestavam a favor do proletariado, contra as injustiças sociais instauradas, tinham argumentos à altura, mas não conseguiram aderência concreta dos trabalhadores, dos negros, das mulheres. Quando não havia recusa, muitas vezes por medo, simplesmente não havia um espaço seguro para entrar, relegando esses indivíduos à posição de figurantes nas filmagens. No caso das mulheres, ou ficavam passivas frente à tomada de posição masculina, ou eram relegadas a atividades secundárias – a cena da manifestante que fala com a mãe de um colega pelo telefone.

A montagem de Eduardo Escorel e Laís Lifschitz fortalece os elos estabelecidos pelo filme e garante um fio narrativo que sabe elevar o ensaio poético de Salles, mas também suprimi-lo quando começa a soar excessivo. No Intenso Agora talvez tenha muito de verborrágico e por essa razão sua univocidade narrativa pode incomodar. Em comparação com o longa anterior do diretor, No Intenso Agora é muito mais sincero desde o começo e segue uma linha analítica da política conjugada à imagem dos acontecimentos. Um dos momentos mais marcantes é quando são mostradas as reações, no contexto da época, perante três mortes marcantes no Brasil, na França e na Tchecoslováquia.

No meio de tantos posicionamentos político, onde a emoção deve ficar? E o exercício político, é mais racional ou irracional? Há como separar uma identidade política da sua atividade artística e sentimental? São questões que João Moreira Salles propõe em seu filme e que esmiúça, seja só através de imagem-memória-questionamento, mas principalmente pelo comentário da imagem. Uma colagem de filmes não atuais, mas sem dúvidas contemporâneos.

No Intenso Agora (Brasil – 2016)

Direção: João Moreira Salles
Roteiro: João Moreira Salles
Gênero: Documentário
Duração: 127 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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