Ao passear pela carreira do cineasta americano Darren Aronofsky, nem poderíamos imaginar que futuramente encontraríamos Noé entre as produções, geralmente centradas em personagens problemáticos que enfrentam grandes dilemas morais e surtos psicológicos. Mas terminada a sessão, é bem claro que o personagem-título deste novo filme é uma figura que se encaixa perfeitamente na carreira do diretor e que, fiel ou não ao material bíblico, oferece um estudo complexo e fascinante.
A trama adapta o icônico conto bíblico da Arca de Noé, quando Deus (ou o Criador, a como é se referido aqui) estava insatisfeito com a maldade do Homem e resolveu enviar um dilúvio para extinguir a humanidade e recomeçar do zero. A fim de garantir a sobrevivência dos animais, o Criador recorre ao ser humano que este julga como mais puro e digno da tarefa: Noé (vivido por Russell Crowe).
Eu realmente temia pelo futuro de Aronofsky quando este anunciou Noé como seu próximo projeto. Não só os grandes épicos bíblicos parecem esquecidos por Hollywood (curiosamente, agora mais produções do gênero estão para chegar nos próximos anos), mas também pelo inevitável embate cineasta autoral vs. grande estúdio americano. Felizmente, o diretor – que assina o roteiro ao lado de Ari Handel – faz uso de todas as ferramentas megalomaníacas de uma produção blockbuster para compor uma história esperta e permeada por discussões filosóficas mais complexas do que o esperado. A fotografia de Matthew Libatique é eficaz ao capturar lindíssimas imagens de ambientes primordiais (a razão de aspecto expandida da tela ajuda), o design de produção de Mark Friedberg impressiona pelo escopo e realismo da robusta arca e o figurinista Michael Wilkinson merece aplausos pela releitura radical no visual de seus personagens: desde um Noé barbudo e careca até o antagonista Tubal Cain (Ray Winstone), cujas vestes de couro se sobressaem diante de seus colegas de cena.
Tecnicamente impecável (com exceção daquelas horrorosas pombas digitais, que garantem uma premonição do que um remake de Os Pássaros nos aguardaria), Noé realmente chama a atenção por seus significados. Classificá-lo como uma produção apelativa à religião seria um equívoco, até porque o filme traz diversos elementos da teoria evolucionista (que inclui uma das montagens aceleradas mais lindas já feitas, e que certamente deu dor de cabeça ao talentoso montador Andrew Weisblum). Nas mãos de Aronofsky (que, mera curiosidade, é ateu), Noé é um sujeito complexo e cuja devoção cega ao Criador o testa a refletir e contrariar sobre as mais delicadas questões: seriam todos os humanos mortos pelo dilúvio dignos de tal aniquilação? Definitivamente não. O momento em que Noé e sua família tentam se confortar no interior da arca, com os desesperados gritos abafados ecoando pelas paredes é um dos pontos altos da produção, já que quebra qualquer maniqueísmo em relação às motivações de seus personagens – incluindo as do próprio Criador.
O jogo fica ainda mais intrigante quando o roteiro nos revela até onde a devoção do protagonista a seu superior pode levá-lo, revelando facetas assustadoras – que Russell Crowe é excepcional ao exibí-las e contrastá-las com o retrato bondoso e amigável de Noé que vira traçando na primeira metade do longa. Sem entrar muito em detalhes, mas as decisões tomadas pelo protagonista no desfecho de tal evento são sutilmente refletidas nas figuras dos Guardiões – gigantes de pedra que parecem ter saído de uma escultura rupestre – que representam os anjos caídos; expulsos do Paraíso pelo Criador por sua compaixão à Adão. Quando se analisa a decisão final de Noé no longa, é um paralelo muito viável.
Embalado também pela belíssima trilha sonora do mestre Clint Mansell, Noé é um épico cuja preocupação com os dilemas de seus personagens impressiona tanto quanto o espetáculo visual. Nas mãos de um cineasta do calibre de Darren Aronofksy, é uma obra rica e capaz de iniciar as mais diferentes discussões. Não importando qual religião ou crença.
Noé (Noah, EUA – 2014)
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel
Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Emma Watson, Logan Lerman, Douglas Booth, Anthony Hopkins
Gênero: Aventura, Drama
Duração: 138 min