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Crítica | O Círculo

Parece faltar para Dave Eggers, além de uma boa noção do que é criatividade, uma boa dose de bom senso, principalmente, quando percebemos já no começo qual a proposta do livro e nos deparamos com sua extensão de 500 páginas. O otimismo do leitor pode apontar para um livro com construções vastas e interessantes. Porém, não é o que acontece. Os únicos aspectos que abundam são o descritivismo descontrolado e a explícita falta de uma edição, no mínimo, atenta. Teria Eggers lido o seu livro mesmo, de cabo a rabo, percebendo as curvas de sua narrativa? Quando um capítulo totalmente descritivo é seguido de um outro que inicia com a repetição das mesmas explicações do trecho anterior, fica mais provável que não.

O Círculo trata de uma sociedade com traços bem parecidos com a nossa, em que uma grande empresa de tecnologia – a do título – começa a aliar a conectividade quase em tempo integral dos usuários em todo o mundo com ferramentas que “facilitam” suas vidas. Câmeras de vigilância, chips inseridos nos ossos, escaneamento de ambiente e aparelhos espalhados pelo corpo são alguns dos dispositivos que auxiliam no controle do cotidiano das pessoas. Isto é, controle do usuário que se confunde com o controle monopolístico da empresa.

A protagonista, Mae Holland, começa com a mesma mentalidade da maioria impressionável que não se incomoda com as consequências veladas do uso da tecnologia e da obsessão pelas redes sociais. Por indicação de uma amiga, que ocupa um cargo de prestígio na empresa, ela adentra o Círculo no setor de atendimento ao cliente. No seu escritório, começa administrando informações de apenas uma tela. À medida que avança, Mae vai ganhando novas responsabilidades (chega ao nível de controle de seis telas, mais uma função apenas por voz) e crescendo na empresa até tornar-se uma figura quase heroica, um modelo para os outros funcionários da empresa e para usuários de todo o mundo. A certa altura, Mae passa a carregar uma câmera no peito, transmitindo todo seu cotidiano ao vivo, 24 horas. Na base dessas atitudes hiperbólicas – ainda assim, muito feijão com arroz quando pensamos em termos de ficções científicas, até mesmo modernas como a série Black Mirror –, resumidas nas máximas “segredos são mentiras, compartilhar é cuidar e privacidade é roubo”, o livro se desenrola.

Mas, retomo o argumento: até as últimas páginas, Eggers preenche as páginas com explicações e mais explicações, verborrágicas, como se delegasse a si mesmo a função de um escrivão, uma máquina registradora, que se disfarça de escritor pingando sentimentos falsos, incolores e inodoros no seu mar sem nutrientes. E não tem função nenhuma, senão tentar sanar as conjecturas básicas do leitor que se depara com as premissas dos programas inventados. O que é ridículo, pois sempre vão restar dezenas de dúvidas. Quer dizer, a ideia de O Círculo não é de todo ruim em termos de romances distópicos: acompanhar a construção de uma utopia e mostrar como sistemas estatais são subvertidos por um monopólio empresarial e como transformar “justiça com as próprias mãos”, isto é, “com as mãos do povo”, legitimada pela “aprovação” da maioria. Enfim, uma amostra de como a sociedade confunde ética e popularidade.

Mas os problemas só ficam ainda mais evidentes quando pensamos nos elementos humanos do livro. Não há um arco de desenvolvimento dos personagens, somente uma gradação da grandeza do Círculo na sociedade. Mae e a grande maioria dos personagens acreditam piamente nas decisões da empresa, são seduzidos pelo marketing barato, como utopistas natos, feitos sob medida para o totalitarismo. A virada só se dá nas últimas cinquenta páginas (haja paciência), quando uma cutucada, que vem como uma agulhada forte no ego de Mae, faz com que ela perceba a gravidade do “Círculo se completar”, e consiga contornar a situação.

Eggers tenta fazer aqui uma crítica à juventude que vê tudo na base do preto e do branco. Não à toa, Kalden, personagem que a desperta para a situação (e com quem transa esporadicamente em cenas de sexo tão risíveis e dispensáveis, dignas de romances melosos de banca) possui cabelos grisalhos. Ele representa um misto do jovem (seu corpo rijo, forte, a camiseta apertada delineando seus traços apolíneos, sem falar da cabeça do pênis intumescida que Mae afirma sentir “em algum lugar perto do coração”) e velho (o cinza dos cabelos como símbolo de mistura, a sua presença misteriosa na empresa, como algum tipo de consciência humanística pré-digital).

De um lado da moeda temos os jovens empregados do Círculo, cujas descrições mostram diversidade étnica, trajes despojados, linguajar coloquial e poucos volteios. Do outro, os pais de Mae (seres incertos, tratados como ignorantes e grotescos) e seu ex-namorado, um artesão gordo e expansivo, que não possui um pingo de tecnologia no seu cotidiano.

Enfim, seguindo essa fácil lógica de espelhos, O Círculo mostrar-se a cada página, cada vez mais vazio de novidade ou criatividade. A cada vírgula entre uma palestra e outra, alguma interrupção forçada, juvenil, de algum palavrão, alguma descrição imprecisa. É o máximo que Eggers consegue. Nem para ser uma montanha-russa, divertida e passageira. O livro está mais para uma dessas torres em queda livre, só que o leitor desce lentamente. A ideia da construção dessa utopia segue da pior maneira possível. Falta, justamente, sair mais desse círculo em que se retro-alimentam os escritores desses tipos de história.

Redação Bastidores

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