Quando olhamos a carreira de David Fincher, não é difícil encontrar um padrão: o cara gosta de suspenses, especialmente aqueles envolvendo serial killers e personagens calculistas, sempre envoltos em algum tipo de atmosfera palpável e opressora. Mesmo A Rede Social, seu filme mais pé no chão e sem qualquer pingo de violência, é uma obra movida por um protagonista frio e que segue uma narrativa típica de seu pedigree característico, e há quem diga – e eu concordo – que a mão de Fincher tornou a criação de um site de internet algo tão intrigante quanto uma investigação criminal.
Porém, há um ponto fora da curva de toda sua filmografia, considerado por muitos o seu pior trabalho justamente por fugir desse padrão: O Curioso Caso de Benjamin Button, que é, em seu núcleo, uma história profundamente emocional e melancólica. E, de fato, ao vermos o resultado final da obra, fica claro que o olho mais racional de Fincher não era o ideal para esse tipo de filme, mas nem por isso temos um resultado menos do que formidável nesta fábula.
Inspirada por um conto de F. Scott Fitzgerald, a trama nos apresenta a Benjamin Button (Brad Pitt), um bebê que nasce com uma estranha condição que o faz parecer velho. Diagnosticado com pouco tempo de vida, seu quadro subverte as expectativas dos médicos e da família adotiva ao seu redor (principalmente, Taraji P. Henson) quando começa a rejuvenescer ao longo dos anos; em um ciclo de crescimento, literalmente, ao contrário. Com essa condição incomum, Benjamin aprende a viver, passa pela Segunda Guerra Mundial, conhece diferentes figuras e se apaixona pela bailarina Daisy (Cate Blanchett).
O Contador de Histórias
Roteirizado por Eric Roth, é impossível passar o olho pela premissa de Benjamin Button e não notar diversas semelhanças como outro trabalho do roteirista: Forrest Gump – O Contador de Histórias, que também narrava a história de um indivíduo especial ao longo de uma trajetória repleta de acontecimentos marcantes e histórias de amor imperfeitas. Os beats são diferentes, claro, com o filme de Fincher preocupando-se mais com a questão da mortalidade e a natureza do envelhecimento, uma questão que o texto de Roth discute com eficiência em sua boa parte. A relação familiar de Benjamin com sua mãe adotiva é um aspecto fortíssimo, e que gera belos momentos graças à doçura do texto e as ótimas performances de Pitt e Henson. Tudo bem, “a vida é como uma caixa de chocolates” é praticamente a mesmíssima coisa que “você nunca sabe o que a vida te reserva”, mas Roth consegue contar histórias distintas à sua forma.
Ao invés de atravessar eventos históricos (com exceção de uma batalha na Segunda Guerra Mundial), tal como Gump, Benjamin acaba mais ligado a eventos triviais e pessoas comuns, e Roth se diverte ao elaborar diferentes subtramas e backgrounds para cada um deles. Por exemplo, em certo momento estamos vivendo uma história de pseudo-espionagem quando a misteriosa personagem de Tilda Swinton entra para ter um romance com o protagonista, e logo depois estamos em uma história de pescador com Benjamin trabalhando no navio comandado pelo divertido capitão Mike (Jared Harris, excelente). E, claro, a história de amor com Daisy, que ganha uma performance realmente apaixonante de Cate Blanchett, e Roth é inteligente em separar blocos de história específicos para cada ponto em que os dois personagens se encontram – com uma passagem longa da vida junta dos dois, e o terceiro ato que garante algumas supresas ousadas. Tudo isso enquanto uma envelhecida Daisy conta a história para sua filha, Carolyn (Julia Ormond).
É um material desafiador para Fincher, que encontra certa dificuldade em transpô-lo. A obsessão do diretor pelo perfeccionismo acaba tornando algumas dessas relações um tanto artificiais, especialmente na entrega de algumas falas e a forma como Fincher opta por filmá-las. Por exemplo, quando Carolyn pergunta à sua mãe se “percebeu que Benjamin a amava desde o primeiro momento em que a viu”, temos um plano plongée que nem mesmo nos mostra o rosto de Ormond. Fincher compensa esses deslizes com movimentos de câmera elegantes, como a espetacular apresentação do primeiro momento em que vemos Brad Pitt inteiramente presente em cena, e também com o visual mais belo que sua filmografia já viu, onde diversos frames parecem ter saído de pinturas. E mesmo que seja uma sequência um tanto irrelevante para o longa, o momento no qual Benjamin discorre sobre os diferentes acontecimentos que culminaram no atropelamento de Daisy em certo momento da história é inspiradíssimo, por nos levar a diferentes cotidianos e pontos de vista que se encontram no que o protagonista define como “rota de colisão”.
Uma obra-prima visual
Em níveis técnicos, Benjamin Button recebe o mesmo tratamento de ponta que todas as demais produções de Fincher. A começar pelo excelente design de produção que recria diferentes porções de Nova Orleans por toda o século XX, até o interior de uma navio pesqueiro e outros ambientes que parecem verossímeis e quase palpáveis de tão detalhados. Fascinado pelos tons esverdeados e alaranjados, a fotografia de Claudio Miranda é de uma beleza ímpar, sempre aproveitando as fontes de luz de cada ambiente (desde velas, abajures e luminárias) e criando uma atmosfera aconchegante nesse processo; além de imagens simplesmente belíssimas no sentido plástico, como a dança sob uma penumbra azulada que Daisy executa para Benjamin em um gazebo. Por fim, é preciso aplaudir de pé o trabalho excepcional de Kirk Baxter e Angus Wall na montagem do filme, que equilibram muito bem as duas narrativas e garantem um ótimo ritmo pelas quase 3 horas, com transições criativas, cortes precisos e sequências de montagem dinâmicas (em especial, na leitura das cartas e a sequência da rota de colisão) que mantém o espectador inserido na trama, além de fazer uso precioso do tempo; sentimos sua passagem, mas de forma que contribui ao peso da história.
Mas, claro, os aspectos que mais se destacam nesse processo são os recursos utilizados para transformar Brad Pitt na figura de Benjamin em suas diferentes etapas. A maquiagem de envelhecimento é perfeita nesse quesito, mas a tecnologia de substituição de cabeça digital era algo praticamente em teste naquela época – não por acaso, o efeito visual desgastou um pouco -, e garante que Pitt surja de uma forma bizarra e diferente de tudo o que já vimos: uma criança velha com sua cara. Vale destacar também o trabalho de maquiagem que envelhece Cate Blanchett, deixando-a praticamente irreconhecível, ao mesmo tempo em que mantém a fisionomia da atriz. Fascinante.
No fim, O Curioso Caso de Benjamin Button talvez não seja o projeto mais adequado para David Fincher, mas o diretor certamente fez o melhor proveito do material e garantiu uma história bonita; tanto tematicamente quanto nas imagens espetaculares que esta verdadeira obra-prima visual tem a oferecer. Um belo filme.
O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, EUA – 2008)
Direção: David Fincher
Roteiro: Eric Roth, baseado na obra de F. Scott Fitzgerald
Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Taraji P. Henson, Julia Ormond, Elias Koteas, Tilda Swinton, Jared Harris, Mahershala Ali, Jason Flemyng
Gênero: Drama
Duração: 166 min