Não é de hoje que sempre se ouve vários dos mesmos tipos comentários envolvendo este filme em específico, do extremamente subestimado diretor Michael Cimino, classificando O Franco Atirador como sendo talvez o melhor filme que o Oscar já premiou em sua principal categoria, entre outros grandes valores artísticos da obra, claro. Mas tal questão sempre circunda sobre ser um fato discutível ou não. Afinal, o que pode haver de tão grande e especial para tornar esse filme como tal obra-prima clássica do cinema se vários mal sequer ouviram sua citação no meio público e poucas vezes entre meus vários conhecidos do meio cinéfilo.
E para muitos com certeza pode ser o tipo de filme que resulta em uma primeira sessão não muito benéfica para a visão do valor da obra, pois o mesmo não pode se dizer que tem a mais confortável ou acessível linguagem para um grande público. Que facilmente entra na lista de “clássico superestimado, ritmicamente datado, altamente pretensioso” que muitos facilmente tendem em fazer sem sequer refletirem dez segundos sobre o filme. E acusá-lo de se perder em banalidades, cenas esticadas mais do que o necessário, etc. Vide que após uma hora de filme ainda estamos no casamento de Steve, personagem de John Savage antes de sequer vermos algo relativo ao Vietnã ou ao próprio significado do título. E sabe o que é isso? Simplesmente maravilhoso! Poucos não serão os elogios por aqui, e tão merecidamente.
A história começa em uma pequena comunidade de Pennsylvania onde seguimos um grupo inseparáveis de amigos, onde três deles, Michael (Robert De Niro), Nick (Christopher Walken) e Steven se alistaram no exército para serem mandados para o Vietnã. Depois de algum tempo, os três caem nas mãos dos vietcongues e são levados para um campo de prisioneiros no qual são forçados a jogar roleta russa uns contra os outros, e começam a presenciar os verdadeiros horrores da guerra que os seguirão para sempre.
Épico de proporções íntimas
Cimino não é o típico diretor americano que surgira em sua época. Ele era uma cria sim dos moldes rebeldes e autorais da Nova Hollywood, mas mostrou desde seus primeiros filmes, e por toda sua carreira, ser um herdeiro digno e possuir características de alguns dos mais ricos moldes clássicos do cinema de alguns mestres em particular, cuja influências ecoam presença na construção de O Franco Atirador.
Possuí em seu cerne, um forte afeto cultural e social ao buscar construir muito do universo e da comunidade dos personagens. Um sentimento bem afetuoso sobre “a gente”, que muito lembra o cinema de John Ford ao mostrar saber capturar a essência cultural da pequena comunidade cristã ortodoxa onde seu grupo de personagens protagonistas inicialmente convivem em tamanha e palpável harmonia, onde rapidamente o público é imerso e se acostuma com esse universo como se fosse um lar confortável.
Também busca e sabe retratar o sentimento tanto cômico quanto trágico de seu ambiente e do convívio dos personagens de forma tão realista e palpável que quase lembra os clássicos de Vittorio De Sica na sua abordagem quase tão naturalista de apresentar e construir as relações dos personagens da história, e sem mostrar um pingo de pressa em sua construção rítmica. Possuindo essa ótica quase contemplativa digna dos dramas de época de Luchino Visconti (O Leopardo), com uma de suas cenas introdutórias na refinaria parecido retirada diretamente de “Deuses Malditos” do mesmo diretor).
E por esse mesmo percurso, consegue tornar toda a triste trajetória da história de seus personagens, tão íntima e pessoal em seu drama, mas com uma escala verdadeiramente épica, grande e imersível em seu palco, quase tão bem como Sergio Leone (Era uma vez no Oeste) saberia fazer tão bem. Com aquela incrível habilidade de fazer cada pequeno ou que pode se considerar simplório dentro da história, em um momento grande, especial, elevar os sentimentos dos personagens em todos esses instantes, diretamente para o público, tanto os bons quanto os maus.
Aliás, esse com certeza será o mais próximo que veremos uma espécie de direção ala Sergio Leone versão guerra do Vietnã, ou vocês achavam que a tortuosa e tensa cena de roleta russa na confinada prisão Vietcong serviu apenas como uma fiel e brutal retratação histórica? Bom, sim também, mas só a criação de tensão pela constante troca de olhares suados e com emoções explodindo só pela força dos olhares cabulosos de medo e raiva, e a bela carnificina habilmente montada que se sucede, remetem lindamente aos gloriosos dias de Era uma vez no Oeste com um realismo em sua violência bem palpável, e brutal.
Mas as comparações com suas ricas inspirações de Leone ou Visconti não param por aí. Tanto na forma com que Cimino propositalmente e naturalmente estica a história de Michael e seu grupos de amigos no pré, durante e pós Vietnã, se usando dessa estrutura de três longos atos para construir uma retratação do progredir da vida desses indivíduos quase como um documentário dramático, e fazer o espectador sentir cada impacto dos acontecimentos e desenrolares na vida de cada um.
Um Retrato de uma guerra
Enquanto por detrás da história progredindo, vemos a mise-en-scène de Cimino mostrando a América como um palco vivo e que se molda e evoluí assim como seus personagens, ressoando sutis semelhanças com o outro Era uma vez de Leone…na América. Uma América aqui que se de início, parte de um meio de pluralidade étnica e cultural cheia de alegria e esperança, no final vemos se desenvolver em um local cada vez mais frio e vazio de fé ou esperança no pós-guerra. Querem algo mais a cara de Luchino Visconti do que o palco histórico de seus personagens afetaram brutalmente todas as suas vidas?!
E Cimino realiza isso com uma maestria e domínio narrativo raros de até mesmo outros diretores de sua época. Onde dentro de toda essa sua grandeza visual e em escala histórica, no qual Cimino não poupa em querer denotar e elevar em seu filme, usando e abusando da fotografia operística de Vilmos Zsigmond em talvez no trabalho mais deslumbrante de sua carreira. Partindo do caloroso ambiente de conforto natural do início, indo para o calor fétido e sarnento das brutalidades do conflito, e depois o retorno frio e distante de um lar agora não mais familiar no final. E por vezes, adora um visual quase documentarista de puro caos social causados pelo conflito, que a câmera captura com inúmeros figurantes borbulhando em cena e atormentado um caos vivo como se fosse um verdadeiro épico clássico travestido do tom mais seco e trágico da Nova Hollywood.
Mas com destaque pessoal de seu brilhantismo ficando pra mim nas duas breves, porém marcantes, sequências de caça à veados (remetendo ao seu título original) revelando uma escala paisagística tão imensa e de caráter operístico quando a bela trilha sonora de Stanley Myers ecoa com seus corais altos e evocativos ao fundo, conjurando quase a sensação de uma ópera viva.
Mas é também em seus momentos de acordes leves que revelam a leveza e a intimidade com qual Cimino consegue trabalhar tão bem o drama de cada um dos personagens em seus breves e pequenos momentos, sem nunca soarem banais ou apelativos, e sim extremamente reais e puros em suas demonstrações de sentimentos de forma tão singelas e verdadeiras. Seja no romance que se constrói entre Michael e Linda (Meryl Streep), ou na amizade de uma vida inteira de Michael com Nick. Onde o puro silêncio e pequenas trocas de olhares contam e falam mais do que qualquer linha de diálogo sobre a relação íntima entre cada um, e deixando cada nome do elenco brilhar em algum momento, alguns mais que outros claro.
Ter um grande elenco em mãos também facilita esse trabalho, com grandes nomes que vão desde uma jovem Meryl Streep em um de seus primeiros grandes papéis no cinema, o grande John Cazale na última grande performance de sua curta carreira, e claro De Niro na década de seu ápice no cinema e que poupa elogios como de usual, e deixa todos os holofotes dramáticos e emocionantes do filme ressoarem tanto na Linda de Streep quanto em Nick de um FANTÁSTICO Christopher Walken, com o seu personagem sendo o reflexo mais trágico e maior vítima de toda a história que afeta cada personagem de uma forma diferente. As consequências fatídicas de um conflito que se de início partiam com um intuito heroico, e saíram para sempre marcados no final.
Inegavelmente primoroso
Sinceramente, devo compreender também o fato de que esse não seja mesmo um filme para todos os gostos e agrados. É por vezes silencioso e minucioso na dialética de sua história e no que procura transmitir sobre o impacto da guerra na vida desses indivíduos tão facilmente identificáveis, pois eles são exatamente qualquer um de nós dentro dessa história. Mas sem perder uma descaracterização individual ou perca de personalidade, tanto humana como cinematográfica, de cada personagem ou do filme como geral graças à todos os talentos envolvidos.
Voltando a pergunta inicial, sobre se esse é mesmo o maior filme à vencer o Oscar de melhor filme? O que tal importa se o filme que temos aqui se eleva muito além de tais premiações. Uma obra que reúne alguns dos melhores atores de todos os tempos sob o comando de um dos melhores diretores de todos os tempos, onde todos reunidos formaram este que é, sem sombra de dúvidas não só um dos melhores filmes sobre a guerra do Vietnã, não só um dos melhores filmes de guerra de todos os tempos, mas também um digno épico cinematográfico. Tanto em sua escala e ambição, e também íntimo, trágico e singelo em seu cerne. Uma devida obra-prima por completo e que sem sombra de dúvidas merece ser melhor relembrada e celebrada como tanto merece
O Franco Atirador (The Deer Hunter – EUA, 1978)
Diretor: Michael Cimino
Roteiro: Michael Cimino, Deric Washburn, Louis Garfinkle, Quinn K. Redeker, Deric Washburn
Elenco: Robert De Niro, Christopher Walken, Meryl Streep, John Cazale, John Savage, George Dzundza, Chuck Aspegren
Duração: 183 min