Com Spoilers
Em 2006, quando Christopher Nolan estava começando a ter seu nome em alta após iniciar a trilogia do Cavaleirs das Trevas com o ótimo Batman Begins e estava planejando Batman – O Cavaleiro das Trevas fez um filme com as características que tinham chamado a atenção em seu primeiro grande sucesso, o excepcional Amnésia, lançado em 2001. Junto com o seu irmão, Jonathan, – que é seu parceiro de roteiros por boa parte da sua filmografia – fez um dos seus melhores filmes: O Grande Truque.
Como esse é um longa que é muito difícil de falar sem dar spoilers farei o seguinte trato com você, meu caro amigo leitor: dividirei esse texto em três partes – ou atos. Nas duas primeiras falarei sobre aspectos técnicos, enquanto na terceira desenvolverei elementos das reviravoltas envolvendo o final do filme. Quem conhece a obra de Nolan, sabe que plots twists são recorrentes em seus trabalhos e geralmente são fundamentais para a narrativa. Então, estejam avisados e vamos a mágica.
1º ATO: A PROMESSA
Baseado no livro de Christopher Priest, o filme se passa na Londres no final do século XIX. Alfred Borden (Christian Bale) é um talentoso mágico que está sendo julgado pela morte do seu colega mágico – e grande rival – Robert Angier (Hugh Jackman), que se afogou durante a sua última apresentação. Enquanto espera a sua sentença, Borden recebe o diário de Angier e ao lê-lo somos levados ao início de suas carreiras, quando ambos eram assistentes de John Cutter (Michael Caine), um engenheiro que prepara os truques. Por conta de um acidente durante uma apresentação, Borden e Angier iniciam uma rivalidade que os fazem entrar em uma constante obsessão de se destruírem e o preço para as suas escolhas se mostram muito altos.
Um dos pontos mais importantes a se destacar em O Grande Truque é a inteligência da estrutura narrativa feita pelo roteiro dos irmãos Nolan. É uma história contada de maneira não linear feita em três linhas diferentes (O presente; o passado de Angier enquanto Borden está lendo o seu diário; e quando Angier lê o diário do seu rival), que precisa de muito cuidado ao se narrar algo com uma estrutura como essa para que não se torne enfadonha e confusa. Isso vale no trabalho do roteiro dos irmãos, junto com a montagem cirúrgica de Lee Smith, colaborador de Nolan. Ambos acertam em dar um ritmo envolvente na trama e principalmente quando podem apresentar informações e personagens para a história. Exemplo: após vermos Borden impulsivo e obcecado na sua arte, somos apresentados a Sarah (Rebecca Hall) que o leva a mostrar o seu lado mais bondoso e compreensivo, que leva o espectador a ter uma identificação com o lado humano do personagem. Outro exemplo está na figura do inventor Nikola Tesla (David Bowie), que quando aparece para conhecer Angier o alerta sobre o preço de suas opções podem lhe causar. Não a toa o inventor – que realmente existiu – tinha uma forte rivalidade com Thomas Edison, que pode servir como uma rima narrativa entre o relacionamento entre Angier e Borden, em que um tentava destruir a reputação do outro.
Essas informações também estão dadas nos diálogos. As acusações de Nolan de ser excessivamente expositivo – que tendo a concordar em alguns filmes – não podem ser feitas em O Grande Truque. Como já disse, a estrutura narrativa tem que ser exata para cada informação dada. Se prestarem atenção, verão que todos os elementos que levam ao final estão no filme. Nenhum dialogo é dito em vão, pois a maioria fazem rimas narrativas com os incidentes futuros.
2º ATO: A VIRADA
Tecnicamente, Nolan sempre mostrou um olhar técnico virtuoso que melhora a cada filme. Não é diferente em O Grande Truque. Visualmente é um dos filmes interessantes do diretor. O design de produção junto com a direção de arte (ambas indicadas ao Oscar daquele ano) criam um clima pesado e opressor. Os cenários são feitos com cores frias e sem vida, enquanto a fotografia faz um interessante jogo de luz e sombras que mostram a natureza de seus personagens, além de criar uma atmosfera sombria e perigosa. Notem que há poucas cores quentes durante a projeção, além do diretor nunca mostrar os truques de magia como gloriosos. Esses são mostrados com grande admiração, mas nunca de uma maneira realmente gloriosa. Isso se deve ao fato do diretor querer mostrar um universo comum desses artistas que vivem de ludibriar o seu público e o jeito que retrata esse universo é cativante.
Além da direção de arte ter esse cuidado narrativo tem uma impecável reprodução de época. A Londres retratada é suja e sombria, evitando apenas o estereótipo de ser uma cidade apenas fria. A impressão que dá é que as pessoas vão aos espetáculos para esquecer como o mundo é miserável, como diz Angier em uma das melhores falas do filme.
Outro ponto interessante da direção de arte está nos figurinos. A maioria dos homens utilizam roupas com cores frias, com exceção do assistente de Tesla, Alley (Andy Serkis), que realmente se mostra fascinado com o universo em que vive. E o figurino dá pistas sobre o final do filme, falando sobre as naturezas dos seus personagens. Não apenas o figurino, mas o próprio design dos personagens. Prestem atenção como Borden se mostra desarrumado enquanto Angier sempre está elegante com terno, sobretudo, chapéu e cabelo penteado. Isso dá uma importante pista sobre o final.
Já que foram falados sobre os personagens, todo o elenco merece destaque, pois todos cumprem muito bem os seus papéis.Rebecca Hall e Scarlett Johansson mostram como as vítimas dessa rivalidade e dos sacrifícios de ambos. Em especial Hall, que consegue mostrar toda a sua tristeza quando não sente a sinceridade do marido. A participação de David Bowie como Tesla é ótima apesar de ser por pouco tempo. A sua composição é fria por fora, mas com alguns olhares que troca com Angier percebe-se que há uma identificação com o mágico. E o ótimo Michael Caine se mostra muito bem como o engenheiro que vê de perto o ponto que a rivalidade de ambos chega e a sua expressão de assustado com o desfecho de tudo é de ter pena.
Os dois protagonistas se mostram muito bem em seus papéis, pois além de terem uma boa química quando estão em cena, tem trabalhos de composições muito bem feitos. Hugh Jackman já tinha feito o ótimo Fonte da Vida no mesmo ano, que mostrava que tinha um alcance dramático invejável. Em O Grande Truque foi mostrado que não foi um acidente de percurso. Como Jackman é um ator mais expansivo usa isso ao seu favor para a sua composição: o que começa como vingança pessoal, vai se transformando uma terrível obsessão deixando o personagem cada vez mais frio e isso o olhar de Jackman vai ficando mais sombrio. O talento do ator é notável quando faz uma pequena participação como o divertido ator bêbado Root, que é o dublê de Angier em um de seus truques. Christian Bale não fica atrás fazendo com que Alfred Borden seja um grande enigma: uma hora é calmo e compreensivo com a família em outras se mostra mais explosivo e impulsivo. Se Jackman é um ator de métodos mais expansivos, Bale se mostra o oposto tendo uma composição fria e minimalista em que qualquer característica feita é um favor ao personagem e a narrativa.
Essas características ditas acima são a prova de como o filme é rico, além de ser muito bem feito. Pois bem, caro leitor se você não viu O Grande Truque e quer ter surpresas, pare por aqui. No último ato falarei sobre como Christopher Nolan orquestrou o final.
Leia por sua conta e risco.
3º ATO: O GRANDE TRUQUE – ESTÁ OLHANDO ATENTAMENTE?
A obsessão de Angier começa quando Borden cria um novo truque chamado O Homem Transportado. Desde o começo Cutter diz a Angier que o segredo do truque é um dublê igual. No fim, mostra que o engenheiro Fallon que sempre estava com Borden, era um irmão gêmeo disfarçado. Lembra que disse que ele mudava de comportamento? Em uma das cenas finais, a qual vemos Borden pressionando Fallon para que descubra o truque de Angier e no momento seguinte mostra Borden dizendo para Fallon para deixar o rival em paz. Se prestarem a atenção no eixo de câmera, parece que são pessoas diferentes: enquanto Borden impulsivo está a direita do quadro, o calmo está a esquerda do quadro. Quando o personagem inicia um romance com Olívia (Scarlet Johanson), ela o chama de Freddie em certos momentos, que pode ser visto como uma pista sobre a verdade dos gêmeos. A composição de Bale junto com essas pistas chegam a conclusão que Alfred Borden é um personagem, assim como Fallon. Aliás, mesmo esse personagem sendo mudo e misterioso, sempre fica a dúvida o porque Borden tinha um respeito e um cuidado com ele. Como se fossem irmãos.
Já quanto a reviravolta de Angier, também há pistas sobre sua real identidade. Assim como Borden, Robert Angier era um personagem vivido pelo Lorde Caldlow. No começo, quando está falando com sua esposa Julia (Piper Perabo) – a qual a sua morte se torna o início da rivalidade dos mágicos – , Robert comenta que mudou de nome para não envergonhar a família e sobre criar uma falsa identidade. Ser o lorde justifica como ele conseguiu o dinheiro para as suas viagens para a América e financiar a máquina feita por Tesla. Além de Jackman imprimir um leve sotaque britânico quando fala como Caldlow.
Mas Angier/Caldlow não estava morto? O verdadeiro foi vítima de sua obsessão, como Tesla havia previsto. A máquina fazia cópias exatas com a mesma consciência do original e quando Angier a testa pela primeira vez, avisa “Espera! Eu sou…” antes da cópia atirar nele. Provavelmente ele diria “Espera! Eu sou o original!”.
O tanque embaixo do palco em que ele se afoga, pode ser interpretado como uma armadilha para incriminar o seu rival ou como uma penitência pelos seus pecados como se uma parte dele quisesse se juntar a Julia. Por mais que Angier se mostre cada vez mais cruel durante a projeção, uma parte dele podia querer uma vida comum, tanto que inveja a família de Borden em uma parte.
No fim, ambos perderam muito por conta de suas rivalidades e obsessões. Como esse segundo é um tema recorrente na obra de Nolan e em O Grande Truque é o que realmente mostra as consequências de seus atos, sem apelar para o moralismo.
Enfim, é facilmente um dos filmes mais envolventes de Christopher Nolan. Ele demonstra grande segurança e cuidado ao narrar uma história, é tecnicamente muito bem cuidado e tira ótimas atuações. É um filme que se você olhar com cuidado irá ver como as pistas estão ali. Mas você não quer olhar atentamente, quer ser enganado, exatamente como o grande ilusionista por trás da câmera propõem.
Pura mágica.
O Grande Truque (The Prestige, EUA/Inglaterra – 2006)
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan e Jonathan Nolan, baseado no livro de Christopher Priest
Elenco: Hugh Jackman, Christian Bale, Michael Caine, Scarlet Johansson, Rebecca Hall, Andy Serkis e David Bowie
Gênero: Suspense
Duração: 130 minutos