Mesmo pertencendo a Nouvelle Vague, Éric Rohmer era um cineasta muito fora das regras do movimento. De modo ainda mais distinto que a ala de Alain Resnais, outro cineasta um tanto mais afastado do centro do movimento, não compartilhava do radicalismo do movimento intrinsecamente ligado a uma geração de críticos da Cahiers du Cinéma, nunca rechaçando o cinema americano preservando a admiração pelos clássicos “não-autorais” assim como pelos novos lançamentos. Era simplesmente um cineasta fora da curva.
Esse estilo dito como “conservador” rendeu a Rohmer uma assinatura cinematográfica muito distinta das muito famosas de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Não fascinado em revolucionar a linguagem cinematográfica, o diretor focou todos seus esforços em narrativas muito ligadas às mazelas humanas como a paixão e a infidelidade. Esse enorme foco de estudo rendeu uma série de antologias inspiradas no dilema de Aurora, clássico de F.W. Murnau: um personagem comprometido se aventura em um romance excêntrico com um terceiro, mas sempre acaba retornando para honrar o compromisso.
Rohmer trabalhou isso com os chamados Six Moral Tales, seis filmes independentes, mas conectados com o tema principal. Só alcançando prestígio a partir do quarto filme, o diretor conheceu o verdadeiro sentimento do sucesso com a quinta obra, O Joelho de Claire, considerada por muitos como a melhor história das seis.
Semente do Diabo
Nessa história, Rohmer explora os dilemas morais de um noivo se envolver romanticamente com uma menor de idade. O diplomata Jerome (Jean-Claude Briary), enquanto passa umas férias no lago de Annecy, reencontra uma amiga escritora que não via há alguns anos, Aurora (Aurora Cornu). Sem inspiração para um novo livro, Aurora decide usar Jerome como cobaia de um experimento social: tentar convencê-lo a seduzir a filha de 16 anos, Laura (Béatrice Romand) de uma amiga que está de visita em sua casa. Aceitando o desafio, Jerome consegue se aproximar da menina, mas tudo começa a desandar quando a irmã dela, a belíssima Claire (Laurence de Monaghan), chega na tranquila casa despertando um insano fascínio de Jerome por seu joelho.
Como em praticamente todos os seus filmes, Rohmer é o responsável pelo roteiro. Em questão de poucos minutos, é bastante fácil sacar os artifícios estilísticos que o autor coloca à nossa disposição para experimentar novos níveis de delicadezas cinematográficas. O Joelho de Claire provavelmente é um de seus filmes mais verborrágicos. O surpreendente é que, apesar de ser totalmente focado na moralidade desse experimento e sobre o exercício de amar, Rohmer quase nunca repete situações ou pensamentos através dos vastos diálogos.
Rohmer, um fã da literatura desde sempre, não preza significativamente pela técnica da filmagem, do sabor cinematográfico. Assim como Woody Allen, por exemplo, Rohmer tem uma bela relação e domínio pelo cinema que se aproxima da literatura, priorizando pensamentos e a complexidade dos personagens ante uma encenação apurada.
Como a história é apenas um tema para que os personagens brilhem, é espetacular o modo que Rohmer delineia as peças desse jogo. Ele evita, na maioria dos casos, diversos clichês acerca de idade ou estereótipos. Jerome não é o típico galã sedutor, Aurora não é maquiavélica em excesso, Laura não é a típica adolescente revoltada e Claire não cai nas graças de qualquer homem.
Os mais fascinantes são Jerome e Laura. A alma do filme está na relação dos dois e nos longos monólogos repletos de exposição que Jerome fornece para dar material de inspiração a Aurora. Sempre há muita soberba no discurso de Jerome, ele realmente crê que consegue se aproximar de todos e condicionar a relação até lhe fornecer alguma vantagem que sacie seus breves e explosivos desejos.
E de fato isso ocorre. Jerome consegue se aproximar de Laura, uma personagem muito bem escrita repleta de frases inteligentes oferecendo um bom estudo sobre as mazelas da adolescência, além de conferir certa molecagem e emoções rústicas características da idade. Essa é a melhor essência de Rohmer: quebrar seus personagens ao exibir o nítido contraste entre o agir e o falar.
Laura, por exemplo, fica apaixonada por Jerome, mas se força a desgostar dele pois sabe que nunca conseguirá fazê-lo desistir do casamento marcado. Entretanto, apesar de afirmar isso, ela o vive provocando, com ciúmes ao fabricar uma amizade com um garoto muito ingênuo. Começa a confrontar Jerome ao observar o fascínio do homem por Claire, mas depois pede que ele continue preservando o contato com ela. Essas pequenas falhas repletas de orgulho é que tornam os personagens tão humanos.
Jerome, por sua vez, é um homem muito estranho e repleto de soberba. Rohmer faz com que ele sempre afirme que não sente nada pelas garotas, que tudo se trata de um belo desafio para ajudar Aurora, mas nitidamente há uma diferença no tratamento da relação com Laura e Claire. É um contraste básico e eficiente. Rohmer torna todo o jogo com Laura fácil demais para iludir Jerome a crer que se trata de um “partidão” quando claramente não é.
Com Claire é tudo mais difícil já que a garota tem certa repulsa ao já desconfiar do jogo bizarro que o homem propõe. Rohmer a mantém sob um véu cheio de mistério, a tratando realmente como um mero objeto de desejo no qual orbitam alguns homens. Novamente, o contraste é óbvio e cruel ao apresentar Gilles, um típico Don Juan, na flor da idade. Um homem bronzeado e escultural, mas também bestial e rude que não sabe tratar Claire, também uma jovem flor delicada, na maneira que ela deseja.
Rohmer mostra que Claire é infeliz com Gilles, mas aceita se submeter aos pequenos abusos do “amor” desse relacionamento, provavelmente a condenando a uma vida amorosa muito infeliz ou em constante negação como a de Aurora. E isso exibe o quão falho Jerome é, acreditando a ter salvo de algo ruim, mas que apenas é uma desculpa psicológica para justificar os rumos que tomou para atender seu desejo primário, tão condenável quanto o tratamento de Gilles com Claire. São situações diferentes, mas o tratamento com a menina é basicamente o mesmo: atender um desejo egoísta masculino.
O interessante é que Rohmer expõe o ponto de vista de Jerome, algo totalmente romantizado e superficial, mas deixa a critério do espectador sobre qual versão que quer acreditar. Não há condenação moral por parte do filme, ele é apenas um retrato dessa realidade fabricada. O que nos leva diretamente a comentar sobre a direção de Rohmer.
Paraísos Franceses
É bem óbvio que o estilo de Rohmer não é para qualquer um. Basicamente, sob um olhar estritamente comercial, nada acontece em O Joelho de Claire. Rohmer sabe disso e pouco se importa, afinal o estudo humano é o que mais conta na obra.
Por ser um autor expressivo, o diretor tem sua própria visão sobre cinema e como a imagem deve ser tratada. No caso, a fotografia é belíssima com o auxílio de Néstor Almendros na cinematografia, capturando tons fascinantes de azul-turquesa do lago e do céu de Annecy, oferecendo todo aquele ar paradisíaco de verão. Mas, ao mesmo tempo, as cores são bastante frias e transparecem um clima gélido de relações artificiais que o diretor traz com os personagens.
Sendo muito bonito e aproveitando as belezas reais das montanhas verdes de Annecy, Rohmer opta em manter sua abordagem convencional: tratar o espectador como personagem real do filme. Seu pensamento sobre a câmera é realista. Ou seja, nunca ela adotará closes ou algum hiper-realismo, afinal dificilmente o olhar humano encontra-se tão próximo de um objeto ou pessoa em um diálogo normal.
Então a câmera se torna uma projeção do espectador no meio das muitas conversas de O Joelho de Claire. A movimentação também é ordenada quando algum personagem se movimenta, adotando o olhar o humano de procurar sempre o contato visual do orador. Rohmer é muito consciente em mostrar somente o necessário ao longo de mês das férias de versão, atravessando os dias com o auxílio de simples inter-títulos para explicar uma elipse ou algo do tipo.
Os planos de estabelecimento também são todos escravos da presença de um personagem que entra ou sai de cena, como nas muitas vezes que inicia uma peça com a chegada de Jerome sempre pilotando seu barquinho de lá e para cá. Outra proposta interessantíssima de sua direção é a ausência completa de música extradiegética, ou seja, que não está justificada em cena como no caso de uma trilha musical.
Apesar de evitar adotar uma decupagem agressiva que fuja do seu estilo, Rohmer se dá alguns luxos para potencializar a encenação. São três casos os mais memoráveis. O primeiro está concentrado no olhar de Jerome, no qual a câmera adota um olhar subjetivo, focando nos belos joelhos de Claire. Depois, quando Jerome auxilia Claire a colher algumas frutinhas da árvore do jardim – é o enquadramento que está na imagem destacada do post, o mais belo e sensual do filme, refletindo todo o desejo de Jerome e a completa indiferença de Claire.
O terceiro se trata do primeiro contato de Jerome com o objeto de seu desejo. É engraçado, pois esse momento é roubado da vontade do protagonista, já que Aurora arquiteta um pequeno plano para que ele toque o joelho da menina por acidente, o constrangendo. Esse desconforto é muito bem ilustrado pelo súbito corte que Rohmer insere, como se fosse um susto completo para o personagem tão metódico e calculista. Há também um jogo inteligente de encenação sempre que Gilles aparece na propriedade chamando por Claire. O diretor basicamente traz a clássica encenação de Romeu e Julieta, a inserindo em uma varanda enquanto o amado fica no chão olhando para cima.
Se fosse para criticar algum aspecto negativo da direção excêntrica de Rohmer, talvez fosse o tratamento com os atores. Alguns simplesmente são desinteressados ou pouco empenhados nos personagens. A única que realmente se destaca da mediocridade é Béatrice Romand ao oferecer um retrato tão genuíno para Laura.
Arte que Inspira até Hoje
Apesar de pouco conhecido pela maioria dos cinéfilos muito centrados em filmes americanos, Éric Rohmer é uma peça fascinante da Nouvelle Vague. De modo tão relevante que consegue influenciar uma obra indicada ao Oscar neste ano de 2018: Me Chame Pelo Seu Nome que é praticamente um simulacro rasteiro de O Joelho de Claire.
Se tem boa vontade para descobrir mais joias no vasto catálogo do cinema mundial, é imprescindível conferir um pouco do que Rohmer tem a oferecer. Porém, é evidente que se trata de um cinema que pode agradar poucos devido a uma ênfase tão pouco… digamos, cinematográficas. Uma vez dentro dessas histórias, já digo o contrário: é bastante difícil não ficar fascinado pelo estilo tão apaixonado pelas relações humanas ilustradas por um grande cineasta.
O Joelho de Claire (Le Genou de Claire, França – 1970)
Direção: Éric Rohmer
Roteiro: Éric Rohmer
Elenco: Jean-Claude Briary, Aurora Cornu, Béatrice Romand, Laurence de Monaghan, Frabrice Luchini, Gérard Falconetti
Gênero: Romance, Drama
Duração: 105 minutos.