Numa entrevista dada em 1993 ao jornalista Charlie Rose, Robert Altman disse que para fazer uma sátira o diretor deve se colocar dentro da trama e tornar-se um dos elementos satirizados pelo roteiro, caso contrário o filme se transformaria em mera propaganda. Basta acompanhar as peripécias pelas quais o personagem Tom Oakley (Richard E. Grant) precisa passar em O Jogador para perceber que Altman não estava falando da boca pra fora.
Mas Tom Oakley não é o protagonista do filme, ele é apenas um dos inúmeros personagens e personalidades que transitam e, em alguns casos, parasitam numa Hollywood obcecada pelo próximo sucesso nas bilheterias, mesmo que isso signifique ter de matar qualquer um que se coloque no seu caminho. O protagonista da história é Griffin Mill (Tim Robbins), um executivo de estúdio responsável por selecionar meia dúzia entre os milhares de roteiros que são enviados anualmente por jovens escritores em busca de uma chance. Bem sucedido e respeitado pelos pares dentro da indústria, a sua vida vira de cabeça para baixo quando começa a receber ameaças de morte e o seu cargo passa a ser ameaçado pela chegada de um novo executivo.
Embora possa ser interpretado como uma metáfora da ganância existente na sociedade norte americana – uma visão que o próprio diretor abraça -, O Jogador é um filme sobre Hollywood e, principalmente, sobre cinema. As referências metalinguísticas saltam aos olhos em vários momentos, mas, ao invés de soarem gratuitas e arbitrárias, o roteiro de Michael Tolkin (adaptado de um romance homônimo do próprio autor) inteligentemente as introduz de maneira orgânica às situações, enriquecendo a trama e os personagens e fazendo com que mergulhemos cada vez mais na história. Desde o longo plano inicial no qual o ambiente e a maioria dos personagens são apresentados e que é uma clara referência a A Marca da Maldade (aqui, mais uma vez, Robert Altman satiriza a si mesmo ao colocar em cena dois personagens falando justamente sobre planos longos), passando pelo momento em que a natureza predatória de Griffin Mill é ressaltada por um plano detalhe de um pôster de M – O Vampiro de Düsseldorf, até a cena na delegacia que remete a Monstros, o filme é uma inteligente colcha de retalhos da história do cinema.
Mas, ciente de que a deterioração moral do protagonista é o coração da trama, Michael Tolkin cria situações em que tanto o acaso quanto as escolhas feitas pelo personagem acabam por emaranhá-lo cada vez mais numa teia de mal-entendidos, interesses, ambições, traições e crimes. Inclusive, vale chamar atenção para a forma como o figurino ilustra essa deterioração moral, pois se no começo há predominância de tons beges e pastéis, do meio para o fim da história o personagem resolve adotar o preto e o vermelho. No entanto, nada disso funcionaria sem um ator carismático e competente por detrás, o que, felizmente, não é o caso de Tim Robbins. Sutil nas transformações pelas quais o personagem passa ao longo da história, o ator transforma o olhar de Griffin Mill numa verdadeira bússola para o espectador se nortear no furacão de acontecimentos que transformam a vida do personagem num verdadeiro pesadelo.
No entanto, se todas essas escolhas são certas, nenhuma é melhor do que a que Robert Altman teve de povoar o seu filme com breves aparições de atores e atrizes conhecidos do grande público. A lista é enorme: Jack Lemmon, Jeff Goldblum, John Cusack, Anjelica Huston, Burt Reynolds, Scott Glenn, Lily Tomlin, Bruce Willis, Susan Sarandon, Julia Roberts, Peter Falk, Elliot Gould, Cher, Nick Nolte, Andie McDowell, Malcolm McDowell etc. Inteligente também em estabelecer um importante elo com o mundo das celebridades ao escolher Tim Robbins para o papel principal (a face do ator estava estampada em todas as revistas na época do casamento com Susan Sarandon), Altman sabe que a junção de todos esses elementos dão uma maior realidade à farsa, e notar como a farsa tem um pé bem fincado na realidade e como a absurdidade da realidade sempre tem um elemento de farsa é uma reflexão que permanece mesmo após os créditos finais.
E embora seja cruelmente profundo no retrato que faz de Hollywood, o filme é leve e divertido de assistir, mérito da direção de Altman, que, ao estabelecer sua coesão estética através de constantes movimentos de câmera, dá à história fluidez e organicidade. Essa aparente superficialidade contrasta brilhantemente com a sordidez dos personagens e dos acontecimentos, o que acaba por se mostrar uma experiência no mínimo incômoda.
E quando digo “sordidez”, não estou sendo hiperbólico: todas as pessoas que passam pela tela são mesquinhas e egoístas, moralmente cegas em suas cruzadas pessoais por sucesso e fama. A única exceção é a personagem interpretada por Cynthia Stevenson, que acaba sendo penalizada justamente pelo seu zelo e carinho, e o fato de o filme terminar justamente com uma imagem que mostra todo o seu desespero e desolação não deixa de ser um atestado da imoralidade e da falta de consideração dum mundo prestes a engolir aquele que não sabe jogar de acordo com as regras estabelecidas.
Com uma estrutura circular que faz com o que filme termine falando sobre si mesmo, O Jogador é um brilhante exercício de metalinguagem e uma verdadeira declaração de amor ao cinema. É um filme que não teme prestar homenagem aos clássicos e nem criticar os defeitos de uma indústria que foi esquecendo o seu compromisso com a qualidade do produto que coloca no mercado. Tudo isso vindo de um cineasta que construiu toda a sua carreira à margem dessa indústria só enriquece ainda mais a experiência de assistir ao filme.
O Jogador (The Player, EUA – 1992)
Direção: Robert Altman
Roteiro: Michael Tolkin
Elenco: Tim Robbins, Peter Gallagher, Whoopi Goldberg, Vincent D’Onofrio, Dean Stockwell, Greta Scacchi, Fred Ward, Cynthia Robertson
Gênero: Comédia/Drama/Suspense
Duração: 124 min