Uma hora a duplinha Jim Sheridan e Daniel Day-Lewis chegaria ao fim. Depois de dois sucessos com Meu Pé Esquerdo e Em Nome do Pai, a última colaboração entre os dois aconteceria em 1997 com o menos bem-sucedido dessa “trilogia”: O Lutador. Com quatro anos longe da direção, Sheridan retorna em um projeto que simplesmente parece uma continuação direta de Em Nome do Pai. Algo realmente bizarro por Sheridan escolher um tema muitíssimo parecido com o de seu filme anterior: as vidas destruídas pelo IRA – o Exército Republicano Irlandês.
Essa seria a primeira vez que Sheridan e Day-Lewis finalmente iam trabalhar em uma história original, mesmo que tenha como pano de fundo toda a situação caótica que se instalou na Irlanda do Norte, mais especificamente em Belfast, quando o IRA finalmente negociava termos de paz com a Inglaterra para cessar os bombardeios que infernizaram a vida de muita gente por mais de vinte anos.
Indecisão Irlandesa
Parece uma constante os filmes de Jim Sheridan sempre serem tão… confusos. O roteiro, como de praxe, é da autoria do diretor e de um co-roteirista, Terry George. Em O Lutador, acompanhamos a silenciosa história de Danny Flynn, um pugilista que foi preso por quatorze anos por ter acobertado uma operação de membros do IRA. Com a liberdade reconquistada, Danny tenta reaprender a viver como lutador enquanto lida com os fantasmas do passado, mesmo que isso lhe custe sua vida.
O principal problema de O Lutador é sua completa falta de foco. Sheridan não sabe se quer fazer um drama sobre esporte ou se focará no declínio das operações do IRA e de seus membros e suas eventuais rupturas por conta de abordagens opostas para lidar com o fim da causa. Além disso, há um enorme foco sobre fidelidade das esposas com os membros do IRA ainda presos.
O primeiro ato certamente é o mais difícil já que não dá a menor pista sobre quem Danny é ou era. Ele é um mistério completo e, logo, gera o nosso completo desinteresse. Ao longo do filme todo, ele só interage com dois personagens: o seu antigo treinador, que virou um mendigo, e sua ex-namorada, agora casada com um membro preso do IRA.
O roteiro aposta muito nas palavras não-ditas e na situação desconfortável que os personagens se encontram, na impossibilidade de continuar um amor verdadeiro e das obrigações para se adequar a sociedade novamente. Ou seja, há uma pretensão dramática enorme aqui, mas o filme encontra seus trilhos quando enfim decide tornar Danny um boxeador novamente.
Seu papel é muito mais interessante do que apenas a jornada pela vitória, mas como um símbolo do início da unificação do Reino Unido e da superação dos bombardeios do IRA. Nisso, Sheridan é competente em mostrar a rivalidade odiosa e absurda entre protestantes e católicos e do ódio que os irlandeses sentem de quem tenta se desprender do IRA. É um retrato social valioso e bastante pessoal de Sheridan, também um irlandês.
Acontece que, por mais válida que seja a captura desse momento histórico tenebroso, isso também não torna Danny um personagem mais complexo. Ele é apenas mais um Romeu, disposto a tudo para ficar com sua Julieta a ponto de sacrificar sua própria vida. Sua relação com Maggie, o interesse romântico, é extremamente fria sem evocar uma paixão sublime. O que salva, é claro, é a atuação de Daniel Day-Lewis com olhares meigos e perturbados para sua paixão interpretada nem mesmo com a metade da vivacidade por Emily Watson. Apesar do esforço de Day-Lewis, os dois simplesmente não conseguem transparecer essa energia sexual e romântica.
Aliás, Day-Lewis continua dedicado a viver personagens totalmente distintos, pois Danny certamente é o cara mais “normal” que ele viveu até agora. Sua atuação é menos enérgica e mais deprimida, apesar das explosões de vivacidade quando se põe a boxear e também durante os treinos. Os momentos mais intensos surgem no final da obra, quando Danny percebe que não precisa lutar apenas nas partidas, mas lutar para conquistar o direito de existir, de viver e de amar. Lewis dá um espetáculo e finalmente mostra ao que veio.
Comparado aos outros personagens, Lewis é basicamente o único que se preocupa em conferir mais camadas ao seu personagem e abandonar o clima soturno que acompanha os outros. Danny ri e se diverte um pouco, exibe mais emoções para se tornar real e não apenas um saco de pancadas deprimido e bêbado como os outros personagens repletos de sofrimento.
Aliás, a figura do treinador Ike também é bastante complicada. Sheridan tenta criar um enorme drama para o sujeito, mas nunca se preocupa em estabelecer o personagem antes. Apenas sabemos que ele desistiu de tudo quando Danny foi preso e das consequências do acontecimento. Centrando algumas reviravoltas no personagem, Sheridan mete os pés pelas mãos para indicar uma importância dramática e conexão com o público que ele nunca recebeu antes.
Também há uma sequência muito estranha encaixando uma crítica a high society inglesa em uma luta privada entre Danny e um nigeriano que se recusa a aceitar a derrota, apesar de estar totalmente quebrado e muito debilitado. O juiz se recusa a parar a partida para fazer com que o negro apanhe mais, além dos convidados torcerem por mais violência. É como se ele inferisse que todos ali fossem racistas. É algo tão fora do cerne do longa que levanta questões sobre a razão de estar inserido no filme.
A Terceira Vez é a Melhor
Quem já leu as análises de Meu Pé Esquerdo e Em Nome do Pai sabe muito bem sobre o que penso da direção de Jim Sheridan. Ele consegue se tornar um autor cinematográfico pelas constantes trapalhadas que existem em seus filmes.
Mesmo assim, Sheridan conseguiu muito prestígio e hoje é considerado diretor respeitado – uma verdadeira incógnita para mim. Porém, há de admitir que O Lutador é seu melhor trabalho como diretor até esse ponto. Ele amadurece a ponto de ser mais cuidadoso com a composição, para a usar mais elementos de cinematografia para tornar as imagens mais simbólicas e delicadas, além de compreender de fato o uso da paleta de cores.
O filme inteiro é banhado por uma luz azulada e suave, de tom fantasmagórico, indicando uma grande tristeza que permeia a vida daquelas pessoas, seja das cansadas pela guerra ou do ódio que consumiu a vida de muitos outros. Sheridan também se preocupa, como sempre, em mostrar bastante de Belfast e do estado de cerco que a cidade vive, tomada por soldados ingleses e com barreiras em todos os lugares. É uma vida dentro de uma prisão gigantesca.
Assim, o visual consegue complementar o texto com bastante competência. É particularmente uma surpresa que Sheridan consiga dominar as cenas de boxe, usando até mesmo planos bastante longos para imprimir o realismo necessário para a luta. O efeito não é romântico, mas adequado para gerar essa aura comprometida com a realidade que o diretor tanto luta para conseguir.
Os primeiros atos da obra se tornam as melhores amostras do que Sheridan pode oferecer. Ele finalmente passa a pensar em um nível de encenação mais comprometido com a movimentação da câmera até mesmo arriscando um plano-sequência interessante. Marcações, entradas e saídas de atores também passam a ser constantes nos planos. É um nível de comprometimento muito maior que revela o carinho que o diretor investiu nessa história.
O que Sheridan simplesmente não consegue dominar de jeito algum é a montagem do filme e passagens de transição. Não existem muitos establishing shots que acabam deixando o espectador perdido constantemente – no terceiro ato, isso se agrava. Da mesma forma, Sheridan não sabe como cortar de uma sequência para outra, simplesmente jogando novas cenas do modo mais cru possível ou interrompendo as anteriores sem oferecer uma breve conclusão para um conflito – isso é gritante no corte que tira a narrativa do ponto de vista de Danny quando ele descobre o que aconteceu ao ginásio.
O mesmo acontece durante uma cena decisiva para o personagem Ike. Sheridan tenta tirar alguma emoção do espectador, mas como a sequência da “ação” é abortada, não temos nem o ápice dramático do personagem, além do fato de Sheridan insistir em planos aéreos nos momentos menos necessários.
Essa obsessão pelos planos aéreos quase consegue arruinar o clímax do longa, além de causar um belo estranhamento ao vermos helicópteros tentando aterrissar e levantar voo sem o menor propósito. Outro enorme problema se trata de criar tensão através da montagem. Sheridan simplesmente não sabe como criar atrito o suficiente para conferir nervosismo e ansiedade para o espectador. Como os eventos acontecem de modo direto, não há como sentir medo pelo futuro de Danny e do risco de morte que ele corre.
Quando Sheridan tenta criar essa atmosfera, ele apela para o uso mais clichê possível: das confidencias de dois apaixonados sendo observada por um bisbilhoteiro. Aliás, quase tudo que envolve o personagem do filho de Maggie é bastante perdido e sem foco chegando ao ridículo quando ele age criminalmente, é descoberto e nunca repreendido. É cômico para não dizer trágico.
Luta pela Identidade
A última colaboração entre Sheridan e Lewis encerra a sua trilogia temática sobre a Irlanda do Norte. O Lutador, apesar de ainda apresentar diversos erros característicos do diretor, traz uma boa história sobre pertencimento e luta pelo direito de viver e amar. Com outra performance distinta de Day-Lewis e adequada ao papel, O Lutador pode não parecer o filme mais interessante para assistir devido ao tema muito nichado, mas, no fim das contas, se trata de uma boa experiência que, infelizmente, não consegue levar ao nocaute emocional que pretendia.
O Lutador (The Boxer, EUA, Irlanda – 1997)
Direção: Jim Sheridan
Roteiro: Jim Sheridan, Terry George
Elenco: Daniel Day-Lewis, Emily Watson, Daragh Donnelly, Gerard McSorley, Brian Cox, Ken Scott
Gênero: Drama, Esporte
Duração: 113 minutos.