A iminência de um perigo inusitado é sempre algo que nos deixa à beira de um ataque de nervos e que aguça todos os nossos sentidos para um possível e mortal embate. Afinal, é algo inerente ao ser humano querer proteger aquilo que possui, seja uma pessoa ou um bem material – e é de forma poética e ao mesmo documental que Rebecca Miller explora essas subjetivas questões em um de seus poucos projetos como diretora, O Mundo de Jack e Rose – estrelando ninguém menos que seu cônjuge Daniel Day-Lewis.
Já com a abertura do filme, o que podemos entender como um breve prólogo que dá nome às cartas do jogo e preparar o bucólico terreno que será explorado muito em breve pelo público. Day-Lewis encarna Jack Slavin na trama, um fazendeiro escocês que resolveu se afastar de sua vida urbana e morar numa ambiência campesina outrora habitada por uma comunidade hippie, mantendo um estilo de vida extremamente humilde e tentando impedir as constantes investidas capitalistas de empresários que desejam abrir novas filiais corporativas. Ao mesmo tempo em que emerge como uma figura utópica contra um sistema opressor e individualista, Jack também deve manter a calma e a paciência no tocante à construção de laços afetivos com a filha adolescente Rose (Camilla Belle).
Não espere encontrar uma narrativa tour-de-force nesse escopo arcádico, mas sim um inesperado coming-of-age que alastra todas as suas vertentes para temas como amadurecimento, descoberta da sexualidade, choque de identidade e outros. Rose sempre foi respaldada pelo pai e, mesmo que não tenha tido contato com outras pessoas – o que de certa forma a transforma em uma figura única e que não necessariamente conhece as “regras” de convivência moral e social -, conseguiu superar essa superproteção e tornar-se uma das responsáveis tanto pelo seu guardião quanto pela vida que eventualmente constrói.
Mesmo assim, tudo se desenvolve de uma maneira muito estranha, por assim dizer; o afastamento do convencionalismo dos romances românticos encontra um espaço dramático cheio de pequenos ápices a serem explorados e, ainda que deixem a desejar no primeiro ato, encontram uma base mais sólida na qual se apoiarem conforme a narrativa se desenrola. Essa perspectiva carregada de subjetividade pode ser entendida de duas maneiras – e tanto uma quanto outra procura chegar ao mesmo objetivo: a primeira restringe-se a uma patológica relação quase incestuosa entre pai e filha que é reafirmada pela composição cênica, incluindo a constante aproximação da montagem do rosto dos personagens e dos bruscos cortes que indicam um enlace físico. Em diversos momentos, ambas as figuras olham apaixonadamente um para o outro, mas não temos certeza se os semblantes se mantém em um nível de carinho e amor familiar ou se há algo a mais ali; a segunda é a mais moralmente aceita, ou seja, levando em consideração o fato de que os dois não têm mais ninguém com quem contar.
O ato inicial da trama também é adornado com uma identidade que destoa propositalmente do restante do filme. Jack e Rose possuem o seu paraíso particular e desenvolvem suas condições como seres humanos apenas convivendo um com o outro; logo, Miller, que também fica responsável pelo roteiro e pela construção de diálogos ambíguos e metafóricos que funcionam na maior parte, opta por um filtro laranja-pastel, quase beirando as ramificações do damasco e do pêssego, para endossar essa relação. A paleta de cores viva e vibrante por vezes encontra um desbotamento, dialogando com uma atmosfera que preza pela conversa e pela interação entre os personagens e que encontra certos obstáculos, principalmente a diferença de idade.
As coisas ficam ainda mais complicadas quando Jack percebe que uma presença feminina na casa faz uma grande falta para o conturbado duo – e é aí que nos é revelado que a manutenção de sua filha num estado de isolamento não é seguido pelo patriarca. Ele tem uma namorada, Kathleen (Catherine Keener), com a qual vem saindo há algum tempo e decide chamar para morar consigo, ainda que tenha que trazer seus dois filhos adolescentes. Ela fica relutante, visto que a vida agitada que tinha passaria por uma brusca mudança para os ares rurais, mas acaba aceitando pelo carinho que nutre por seu par romântico. Ainda não sabemos exatamente quais são suas reais intenções; entretanto, ao que tudo indica, essa decisão de “aumentar a família” é apenas uma forma de permitir contato com outras pessoas.
Rose não aceita que os intrusos permaneçam em sua casa e confronta o pai por causa de sua decisão sem consultá-la. É claro que, conforme os atos se seguem, a garota começa a nutrir sentimentos diferentes e contraditórios por cada uma das novas figuras, incluindo um inocente ciúme por parte de Kathleen, um carinho por Rodney (Ryan McDonald) e certa repulsa pelo rebelde Thaddius (Paul Dano). Ao mesmo tempo em que tenta conhecê-los mais a fundo, seus hormônios começam a despontar e atingem um estado de plenitude inebriante quando flagra seu pai e sua “madrasta” no quarto; tal acontecimento coloca em sua cabeça um desejo por perder a virgindade, cujas consequências não são drásticas per se, mas trazem inúmeros temas considerados tabus para as telas, incluindo uma investida em direção a Rodney – que rechaça a sensualidade da garota – e péssima decisões para que finalmente possa saborear um pouco da vida que nunca achou que conheceria.
Miller habilmente utiliza de sua pouca experiência para nos envolver em uma morbidez poética e chocante, por falta de outro adjetivo. Entretanto, não estou certo de que suas técnicas combinem com a narrativa: seguindo os passos de filmes conterrâneos, incluindo a linguagem subversiva de Dogville, a cineasta restringe-se a utilizar a câmera na mão e a uma identidade imagética granulada que mantém níveis dialógicos com a filmagem documental. Por vezes, nos perdemos dentro do cosmos que tenta criar, seja pelo escopo alaranjado, seja por uma irreverente falta de estética. Além dos enquadramentos tortuosos e distorcidos e dos cortes bruscos, a montagem afasta-se de uma continuidade linear e realiza vários saltos temporais notáveis que quebram o ritmo da trama e nos fazem despertar para vida real mais de uma vez.
Através de uma história competente e ofuscada por erros de direção que incomodam mais que ajudam, O Mundo de Jack e Rose é uma análise psicológica e antropológica da personalidade do ser humano e do discernimento entre conceitos certos e errados. Perscrutado com inúmeras referências a obras épicas – incluindo a clara asserção a Paraíso Perdido, de John Milton, Rebecca Miller consegue satisfazer seu público, ainda que não completamente.
O Mundo de Jack e Rose (The Ballad of Jack and Rose, EUA – 2005)
Direção: Rebecca Miller
Roteiro: Rebecca Miller
Elenco: Daniel Day-Lewis, Camilla Belle, Catherine Keener, Ryan McDonald, Paul Dano, Jason Lee, Jena Malone, Beau Bridges, Susanna Thompson
Gênero: Drama
Duração: 112 min.