Existe um antes e depois no gênero de ficção científica na história do cinema americano. Coincidentemente podemos definir que o ano de 1968 foi o mais importante para chamar a atenção de Hollywood para o potencial de histórias que o gênero podia contar. Apesar do antes e depois ser definido por 2001: Uma Odisseia no Espaço através dos esforços hercúleos de Stanley Kubrick, dois meses antes o mundo também havia testemunhado o alvorecer de uma das obras-base da ficção cientifica no cinema: O Planeta dos Macacos.
Mesmo que Franklin Schaffner não seja nenhum Stanley Kubrick, é inegável reconhecer sua importância aqui. Ao contrário de muitas obras regressas do gênero, O Planeta dos Macacos não tinha tantas tosqueiras ou macacaquices que atiravam esses filmes na beira do ridículo e do risível. Na verdade, Planeta foi um dos primeiros a realmente se importar em firmar um universo crível extremamente importante para os espectadores entendessem o que raio aconteceu naquele planeta dominado por macacos. E claro, apostar em sua maior pérola: a reviravolta mais surpreendente que já vimos na História do Cinema.
Acompanhamos a jornada interestelar de um grupo de astronautas liderados por George Taylor (interpretado por Charlton Heston). Hibernando durante a jornada, a nave cai em um planeta perdido em uma galáxia distante. Três astronautas sobreviventes desbravam o lugar aparentemente inóspito, mas logo descobrem algo perturbador: criaturas parecidas com humanos, mas totalmente primitivas. Caindo nesse grupo, logo são caçados por seres misteriosos. Posteriormente, descobrimos que são símios como orangotangos, gorilas e chimpanzés, mas extremamente inteligentes. Uma sociedade invertida surge com os humanos ocupando a base mais ingrata de toda as classes. Nesse cenário bizarro, George Taylor tenta sobreviver, mas possui um grande revés: durante a caçada, leva um tiro na garganta que o impossibilita de falar.
Sobre Macacos e Homens
O filme se baseia na ideia principal do livro de Pierre Boule, mas há adaptações tremendas para “ajeitar” a obra ao gosto americano do espectador da época. Quem estava em alta por conta do sucesso de Além da Imaginação era o showrunner Rod Serling, revolucionando a ficção científica com suas reviravoltas e premissas impossíveis que caíram no gosto do povo. Logo, foi convidado para participar ativamente no processo criativo do roteiro em conjunto de Michael Wilson.
Justamente por isso, O Planeta dos Macacos tem lá seus ares de episódio de seriado, mas isso acabou se provando bom e eficiente. Serling e Wilson escrevem o roteiro pautados sempre pela concisão, longos hiatos sem diálogos e, principalmente, na latência insuportável do mistério que cerca aquela sociedade de símios.
Por isso, a abordagem conceitual é preservada, exatamente como visto nos outros trabalhos de Serling na televisão. Nosso protagonista é uma representação do pior lado do homem: egoísta, rude e totalmente desprovido de companheirismo. Mas ainda assim torcemos por sua sobrevivência por conta do impacto psiocológico que uma sociedade invertida súbita causaria.
Em um dos pouquíssimos diálogos entre o trio astronauta com Dodge e Landon, vemos como George enxerga o modo de vida na Terra, as ambições dos outros, etc. É um pessimista nato que odeia tudo e a todos recorrendo a viagem interestelar para ficar o mais longe possível de tudo o que a Terra representa. Nisso, um pequeno arco é criado para Landon, o astronauta que viaja em busca de glória e reconhecimento na Terra – por isso, seu desfecho, é bastante irônico e trágico.
A circunstância da mitologia dessa sociedade é o que movimenta o filme. Ainda preservando a sátira ao ‘humanocentrismo’, os roteiristas provocam o choque da revelação justamente durante uma caçada aos humanos primitivos e mudos que vivem nas selvas. Invertendo os papéis, toda a sequência é muito chocante mesmo sem a necessidade de recorrer à violência gráfica explicita. Quando nos colocamos nos lugares dos animais que caçamos hoje por esporte, o choque da crueldade sem sentido é potencializado.
A captura do protagonista nos joga ao núcleo dos símios inteligentes, compreendendo melhor a sociedade que se firmou naquele planeta. Lá temos a apresentação do trio de personagens mais desenvolvidos: os veterinários (cuidadores de humanos), cientistas e arqueólogos Cornelius e Zira; e o ministro da Ciência e Religião (fina ironia), Dr. Zaius.
O primeiro detalhe que nos chama a atenção até hoje é a maquiagem soberba de John Chambers. Conseguindo preservar a expressividade do olhar de Kim Hunter, Maurice Evans e Roddy McDowall, as máscaras de orangotangos e chimpanzés não prejudicam a performance do elenco a ponto de se tornarem distrações.
Cornelius e Zira logo viram aliados de George, mesmo com o protagonista ainda ferido e, logo, mudo. As constantes torturas físicas e psicológicas, além do risco de ser submetido aos experimentos de Zira fazem esse miolo de filme se comportar como uma agonizante história de sobrevivência. Também há uma espécie de romance de George com uma humana calada, a clássica personagem Nova, imortalizada por Linda Harrison.
Enquanto isso, dr. Zaius toma as rédeas para se comportar como um antagonista do filme. Após reviravoltas necessárias e lógicas, além de muitas frases de efeito marcantes (a principal, finalmente peças do mistério são colocadas em discussão. Novamente, o poder dos conceitos introduzidos pelo roteirista se faz presente. A sociedade ainda rudimentar dos símios é muito similar a um simulacro torto de uma sociedade humana e isso tem certa lógica dentro do filme. Leis e religião são discutidas, assim como punição e ordem de castas.
Basicamente, Serling busca inverter todos os conceitos básicos da Ciência humana para criar essa sociedade fictícia enquanto insere pistas arqueológicas de uma antiga civilização extinta daquele planeta. Mesmo nesse mundo sem humanidade racional, George continua deslocado. Nunca há uma grande catarse para o personagem, além da reviravolta final, mas não sentimos que há alguma transformação em seu egoísmo crônico.
Mas o filme ganha pontos por não se transformar em uma história de herói derrubando distopias preservando a proposta mais crítica e cínica do livro. O roteiro contém diversas mensagens importantes e conceitos que trazem reflexão, mas em termos de personagem, a relação entre Zira e George é a que mais chama a atenção.
Nessa sociedade de símios, Zira é a mais humanizada e a que mais gera algum fascínio no protagonista que até mesmo se despede da personagem com beijo nos lábios. Entre esses contrastes, também há o grande mistério da Zona Proibida na qual Zaius faz de tudo para que sua sociedade permaneça distante. Na reviravolta final entendemos bem a razão das escolhas duras e política intransigente do personagem: evitar que os símios encontrem o mesmo trágico fim que a humanidade.
Livramento de um gênero
O japonês Franklin Schaffner é um dos principais nomes para livrar o gênero da ficção cientifica do campo ridículo que estava restrita na sétima arte. Enquanto Serling revolucionava na televisão, os sci-fi continuavam no pastiche.
Shaffner se vira com o que tem. Dispondo de pouco dinheiro, a direção de arte de O Planeta dos Macacos é bastante apagada com construções razoáveis e uma nave espacial sofrível. Logo, a proposta anti-nuclear e pós apocalíptica do roteiro cai como uma luva para essa situação. Boa parte da obra se sustenta com as locações naturais fantásticas capturadas pelas lentes do diretor. Com planos abertos mostrando a insignificância do homem naquele cenário gigantesco, para focar a atenção do espectador, Shaffner usa zoom ins ligeiros.
Nem é preciso pensar muito para ver como esse recurso de linguagem envelheceu mal. Tira a elegância da estética profundamente teatral aplicada na encenação do diretor. De resto, Schaffner opta sempre por planos afastados ou conjuntos para mostrar os acontecimentos do filme deixando essa impessoalidade de assinatura.
Porém, é inegável: o diretor é eficiente ao filmar cenas de ação. Nada supera o domínio visual e de eficiência de decupagem ao mostrar proezas de diversos dublês na sequência da caçada. Outro grande momento se concentra na escolha inteligente da revelação final da twist do filme. Mantendo um vigor excepcional, também há sempre uma saudável movimentação de câmera que ele vinha desenvolvendo desde o começo de sua carreira na televisão nos anos 1950 – sempre foi celebrado por revolucionar a linguagem do formato.
Para completar esse espírito avant gard, há a trilha instrumental bem ousada de Jerry Goldsmith misturando percussões que podem muito bem ter criado o clichê para músicas instrumentais de “selva”, ou seja, muitos batuques e mistério.
God damn you all to Hell!
Em um projeto bastante desacreditado, surgiu a fagulha de uma revolução, além do nascimento de uma franquia que está viva até hoje. O Planeta dos Macacos é aquele divertimento obrigatório para todo cinéfilo ou fã da história do gênero de ficção cientifíca nos cinemas. Na melhor das realizações de sociedade invertida, surge o questionamento do nosso papel como espécie. Um filme catártico repleto de momentos importantes, além de uma das atuações mais poderosas de Charlton Heston.
Ninguém conhece melhor Planeta dos Macacos do que seu diretor. E conhecendo o projeto desde o início, Franklin Shaffner sabia que faria história. E assim foi feito.
O Planeta dos Macacos (Planet of the Apes, EUA – 1968)
Direção: Franklin Schaffner
Roteiro: Rod Serling e Michael Wilson, baseado no livro de Pierre Boule
Elenco: Charlton Heston, Roddy McDowell, Kim Hunter, Maurice Evans, James Daly, Linda Harrison, Robert Gunner, Lou Wagner, Jeff Burton
Gênero: Ficção Científica
Duração: 112 minutos.