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Crítica | O Regresso, de Michael Punke

Como muita gente já deve saber, a história de O Regresso, filme de Inãrritu que estrei nesta quinta, é inspirado na história real de um desafortunado chamado Hugh Glass. Porém, o que talvez passe despercebido é que o roteiro do longa é baseado no trabalho literário de Michael Punke.

Assim como o filme, Punke explora o episódio que tornou Hugh Glass uma verdadeira lenda. A abordagem do autor é similar com a de Truman Capote em A Sangue Frio. Ou seja, é uma romantização dos fatos ocorridos na realidade – claro que o trabalho de Punke não chega perto do brilhantismo de estilo e narrativa de Capote. Então, não se engane. Essa não é a história 100% verdadeira dos fatos ocorridos com Glass, mas trata-se de uma boa obra de entretenimento com algum valor histórico.

Hugh Glass faz parte de uma expedição da Companhia de Peles Montanhas Rochosas. Durante uma das longas viagens da companhia, Glass é atacado por uma gigante ursa parda. O combate é esmagador. Glass é comido vido, dilacerado, rasgado, esmagado, quebrado. Porém, por um milagre, ele sobrevive ao ataque. Seus colegas de expedição, diante da descrença na sobrevivência de Glass, decidem deixá-lo aos cuidados, com a recompensa de setenta dólares para cada um, de outros dois homens: o ingênuo Jim Bridger e o cínico Fitzgerald.

Diante da impaciência em tratar dos ferimentos de Glass e do medo de iminente ataque indígena ou de até mesmo ficarem perdidos, Fitzgerald e Bridger abandonam Glass no meio da floresta congelada e do ermo selvagem. Também roubam suas armas e pertences antes de deixa-lo congelar até a morte. Porém, o ódio de Glass é poderoso. Novamente, Glass dribla a morte enquanto se recupera gradativamente do ataque da ursa. Em sua jornada de sobrevivência, o homem jura vingança contra os dois traidores.

O livro é dividido em duas partes. A distinção entre as duas é clara. A primeira parte é mais dinâmica, mesmo centrada apenas no solilóquio de Glass. O autor não enrola para mostrar o ataque da ursa. Em poucos capítulos, Glass já apanha bastante, porém o ponto principal da narrativa, a vingança, ainda leva algum tempo para engrenar. Essa primeira parte é a mais conectada com o filme. Tanto pela atmosfera mais solitária quanto pelos acontecimentos adaptados.

Punke acerta ao transcorrer todos os episódios de terror que Glass tem que enfrentar contra a natureza inóspita do oeste inexplorado dos Estados Unidos.  A narrativa se passa em 1823, no século XIX. Nesse oeste congelado, não haviam leis, nem moral ou ética. Era o puro instinto da sobrevivência. O dinamismo da ação é ótimo aqui – aliás, é até melhor que no filme. Glass tem encontros com diversos animais selvagens, tem que caçar para saciar sua fome, dar um jeito nos seus ferimentos infeccionados, manter a sanidade, alimentar a sede da vingança, encontrar o caminho de volta para algum forte, fugir de indígenas hostis como os arikaras, sioux ou os blackfeet, além de se abrigar contra nevascas duras.

Nessa esfera visceral, Punke se sai muitíssimo bem. As palavras do livro são cruas e bem gráficas – ótima competência para a construção visual da narrativa. Porém, no que se trata do drama humano, acredito que o autor falha. Na primeira parte, nada é de fato grave. Como se trata do começo do livro, é muito interessante aprender sobre esse período histórico, da sociedade da época, da noção de justiça de fronteira, do modo de vida daquelas pessoas e seus instrumentos de caça um tanto rudimentares.

Até mesmo é legal conhecer melhor diversos personagens que ganham um tratamento mais simplório no filme. Punke faz questão de elaborar o backstory de ao menos quatro dos personagens principais. Conhecemos melhor Fitzgerald e seu vício em jogos de azar; Jim Bridger com sua vontade em se tornar um grande explorador; do passado “ama;diçoado” de Capitão Henry e sua empreitada empreendedora e de Hugh Glass.

Como não poderia deixar de ser, Glass é quem recebe mais atenção nisso tudo. Porém, confesso que de todos os personagens, o passado dele foi o que menos me cativou – ainda que seja uma grande história cheia de aventura e que evoque paixão pela natureza. Ali, comecei a notar as deficiências de Punke na narrativa do livro.

Realmente quando o autor se dedica a desenvolver os personagens, seja pela falta de conflito ou pelo ritmo maçante dos acontecimentos, o livro torna-se extremamente enfadonho. O dinamismo visto outrora rapidamente some. Em pouquíssimas passagens onde Glass interage com outros personagens, me senti interessado pelo o que era descrito. As boas histórias estão ali. Geralmente quando Glass interage com índios: seja pacificamente ou durante uma das muitas perseguições nervosas.

O ritmo da leitura também é constantemente quebrado pela escolha do autor em não se centrar apenas em Glass. Toda vez que lemos o ponto de vista de Fitz, Henry ou Bridger, as páginas tornam-se mais lentas. No caso de Henry, a narrativa fica mais enfadonha por conta da repetição de fatos. Sempre o líder da expedição está procurando algum forte ou abandonando o mesmo.

Também na primeira parte, principalmente no ataque da ursa, ao mesmo tempo que o autor fascina pela descrição realista do ocorrido, ele força a barra com algumas “liberdades poéticas” que utiliza para tornar o conflito mais “artístico” ou profundo quando o ideal seria ater-se ao instinto. Afinal, não creio que Glass tenha olhado com “medo e fascinação” para o animal enquanto tentava manter o couro cabeludo preso a pele do escalpo.  

Na segunda parte, o livro torna-se mais insosso. A ação fica menos constante e o interesse sobre os personagens vai, lentamente, diminuindo. Aqui, o autor aposta mais em relações homem/homem do que as interessantes homem/natureza. Talvez seja pelo teor mais chato dos diálogos banais que não exploram bem a tensão que deveria permear o livro. Também, a inserção de novos personagens se revela necessária – mesmo que sejam um gatilho para a ação. Porém, como dificilmente há a chance de simpatizar com eles, o resultado torna-se um tanto falho. E não são poucas as situações como essa.

A segunda parte diverge praticamente em tudo em relação ao filme. E também é um exercício de determinação. Acredito ser extremamente fácil abandonar o livro devido o constante desinteresse que surge diante do material e do clima tedioso. O autor também desiste de desenvolver melhor os personagens – tornam-se fantasmas monótonos do prometiam ser. A antecipação da vingança também esfria rapidamente. O que penso é que é fácil gostar bastante da primeira parte do livro. Ela é rápida e muito interessante. Já aqui, os capítulos custam a acabar.

Para piorar, o fim do livro é totalmente anti-climatico. Não consegue cumprir a premissa que era construída até então, além de trair seu marketing. Primeiro pelo estabelecimento para lá de preguiçoso em colocar Glass no encalço de Fitzgerald. Depois, pelo procedimento que o autor oferece à vingança. Como essa parte é completamente fictícia, a imaginação do autor poderia ser mais apurada oferecendo um final realmente memorável a sua obra e a lenda de Hugh Glass. O que é apresentado para nós é muito decepcionante.

Depois, quando ele revela que boa parte do livro vem de sua imaginação, a situação não melhora muito, já que é possível criar coisas realmente fantásticas com esse argumento. Também acredito que, às vezes, falta um pouco mais de contexto histórico a ser apresentado para o leitor, além de uma melhor diferenciação das tribos indígenas.

O Regresso é um livro muito. Começa explosivo com uma escrita inspirada, repleta de vida e situações muito interessantes. Porém, sua segunda parte e seu final absolutamente broxante frustram o potencial que história apresenta em seu início. Eu recomendaria apenas para os que viram o filme, se encantaram muito com a jornada de Hugh Glass e ficaram ávidos por mais daquele universo. Aqui é uma outra versão. Algumas passagens são melhores e mais aprofundadas do que o que é visto no filme, porém no que tange a segunda parte da obra e seu desfecho, acredito que o filme seja melhor. Enfim, um bom exercício de leitura e de pesquisa bibliográfica, mas creio que não será o livro de vingança e sobrevivência que marcará sua vida. Dizem que a versão de Frederick Manfred em seu Lord Grizzly é superior.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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