Em determinado momento de A Lista de Schindler, o protagonista, Oskar Schindler, vivido por Liam Neeson, diz que a guerra traz à tona o que há de pior nas pessoas, nunca o que há de bom, sempre o pior. Exatamente isso que vemos em O Resgate do Soldado Ryan – Steven Spielberg não tenta criar uma história de heroísmo ou algo assim, ele procura evidenciar os horrores da guerra, o quão monstruoso se torna o ser humano no meio de tão terríveis situações e o quanto cada um luta para manter o que resta de sua humanidade, para resistir as infindáveis provações a fim de poder, finalmente, retornar para casa.
Podemos enxergar isso com clareza já na longa segunda sequência do filme, que retrata o desembarque na Normandia, com as forças aliadas sendo alvejadas pelos nazistas em suas posições fortificadas. Tal cena já define claramente o quão visceral é essa obra de Spielberg, que não poupa o espectador a qualquer momento, utilizando a violência como elemento central para chocar e, claro , nos mergulhar nessa impiedosa trama.
Seguindo o exemplo do que ele próprio fizera no já citado A Lista de Schindler, o diretor opta por não fazer uso de storyboards nessa emblemática sequência, criando, assim, um retrato extremamente natural, uma recriação tão impactante que, para funcionar, necessitava que as situações guiassem a câmera e não o contrário. Novamente o realizador veste o manto do documentarista, minimizando ao máximo a distância entre ficção e realidade, enquanto nos tira da zona de conforto, transformando-nos em mais do que espectadores, jogando-nos de cabeça nesse impiedoso conflito, em um filme que lida a guerra como ela é, muito distante das fantasias românticas protagonizadas por heróis idealizados.
Dispensada essa idealização, vemos com clareza a fragilidade de todos os personagens ali, sejam soldados, sargentos, capitães. Ao receberem a missão de resgatar James Ryan, último de quatro irmãos, todos mortos em combate, os integrantes do esquadrão do capitão John Miller (Tom Hanks) não hesitam em questionar tais ordens. “O que faz dele melhor do que nós? Nós também temos mães” – indagam os soldados, que tem como resposta um simples “essas são as nossas ordens”. A escolha da palavra é essencial aqui, é falado, constantemente, em ordens e não em dever – a moral não está em questão e sim a hierarquia militar – eles cumprem a missão por obrigação e não por serem homens justos, bons, preocupados com o estilhaçamento do sonho americano daquela senhora que perdeu os filhos. Não há romantismo aqui, apenas a crua realidade, que, pouco a pouco, faz com que nos identifiquemos com os personagens e suas ressalvas em relação a essa tarefa. Não demora muito para que sintamos certa aversão a Ryan e tudo o que foi necessário fazer para resgatá-lo.
Isso não quer dizer que sejam, de fato, pessoas ruins ou algo assim, são simplesmente pessoas, como quaisquer outras. O texto de Robert Rodat não esconde a personalidade desses soldados atrás de patentes ou protocolo militar, muito pelo contrário, quanto mais tempo passamos ao lado desse esquadrão, enxergamos que ali estão vendedores, mecânicos, professores, todos fardados na esperança de um dia poderem ver suas famílias novamente. O objetivo é ganhar a guerra, diz Miller em certo momento, evidenciando que palavras como “acabar com a tirania”, “devolver a justiça ao mundo” são reservadas a políticos e afins, aqueles que tentam vender o motivo da entrada na guerra (não que fosse opcional para os EUA, considerando o estopim, Pearl Harbor) e claro motivar os milhares de jovens que arriscam suas vidas ali em terras estrangeiras.
É essa casualidade, sensação de normalidade, que imediatamente permite que nos aproximemos de cada um dos personagens apresentados. O texto, aliás, acerta em cheio ao criar pontuais focos de descontração, fugindo do conflito e nos mostrando brincadeiras entre os soldados, piadas e afins – o típico alívio cômico, claro, mas nada intrusivo à narrativa e sim imprescindível para que possamos conhecer cada um daqueles homens que acompanhamos do desembarque até a batalha na ponte. Com o tempo passamos a entender esse esquadrão não como indivíduos separados, mas como partes de um mesmo personagem, que tem como a cabeça o capitão Miller. Torna-se, pois, ainda mais dramática a perda de um dos membros dessa equipe, visto que enxergamos a morte dele como se cada um deles tivesse morrido um pouco junto, como se esse personagem formado pela união deles houvesse perdido uma parte de seu corpo.
Evidente que o roteiro não é o único a ser louvado por essa construção – Spielberg, ao utilizar planos mais fechados, que oscilam frequentemente entre cada um dos personagens, nos momentos precisos – fruto da habilidosa montagem de Michael Kahn – nos faz sentir como se estivéssemos ao lado de cada um deles, como se vivenciássemos suas dores, seus temores, gerando, dessa forma, grande desconforto no espectador, que passa a torcer para que o conflito seja, enfim, encerrado. Qualquer embate entre as tropas aliadas e nazistas se torna, portanto, um grande suplício, praticamente interminável – assim a longa duração da obra dialoga com a própria construção narrativa, sendo peça essencial para que o filme seja tão impactante.
No meio dessas explosões, tiros e gritos, o diretor estabelece a tensão não somente através da já falada visceralidade, como através do caos desses cenários. Spielberg sabe exatamente quando deixar evidente quem é quem e quando é hora de ocultar a identidade de dado personagem. Ao mover a câmera e tirar da tela certo indivíduo, não sabemos, ao certo, se o veremos com vida instantes após, ponto essencial para o estabelecimento dessa violenta e cruel atmosfera. Em momento algum sentimos como se um personagem estivesse à salvo – em todo momento qualquer um deles, mesmo o protagonista, pode morrer, fator esse imprescindível para que permaneçamos mergulhados na narrativa.
Outro ponto que muito ajuda a construção dessa constante tensão é a fotografia de Janusz Kaminski, em mais uma colaboração com Spielberg. Com intenção similar àquela de A Lista de Schindler, o diretor e seu diretor de fotografia sabiam, desde cedo, que queriam fazer algo inspirado nas gravações da guerra, emulando as câmeras mais rudimentares da época, sem cores extravagantes, mais dessaturadas. Para atingir tal resultado, Kaminski tirou a capa de proteção de suas lentes, tornando a imagem mais difusa, suave. Com isso, o diretor de fotografia criou uma maior proximidade entre suas lentes e aquelas utilizadas nos anos 1940, permitindo que a falta de vibrância na imagem dialogasse com a própria trama, como se tudo estivesse um pouco sem vida, refletindo toda a tragédia da guerra.
A construção desse incrível realismo, claro, não para por aí, já que todo o design de produção, extremamente cauteloso e detalhista, deve ser levado em consideração. À começar pela retratação da praia de Omaha, que Spielberg fez questão de fazer o mais próximo da realidade possível, passando pelos destroçados cenários, até os tanques e outros veículos, todos cuidadosamente construídos ou modificados a fim de nos levar de volta à época da guerra. A atenção ao detalhe é chave aqui e, claro, o próprio texto demonstra tal preocupação, fazendo as necessárias modificações a fim de obter o melhor resultado dramático possível. Isso, aliado ao excelente design e mixagem de som, permite que jamais duvidemos que estamos diante de um fidedigno retrato da Segunda Guerra, possibilitando que nos entreguemos por completo.
Até mesmo a evidente fragmentação narrativa, que passa a sensação de que a obra é muito mais longa do que efetivamente é, acaba contribuindo para o estabelecimento dessa tensa atmosfera. Ainda que não deixe de ser um defeito do longa – as situações vividas pelos soldados são praticamente capitulares, separadas umas das outras – esse fator ajuda a estabelecer nossa noção de passagem de tempo. Sentimos como se dia, ou dias, tivessem se passado entre um trecho e outro, permitindo que todo o teor épico do longa seja estabelecido. Além disso, o cansaço dos personagens que acompanhamos acaba passando para nós, algo normalmente seria encarado como erro, mas que, aqui, ajuda a cumprir a intenção do diretor de nos colocar ao lado dessas pessoas, como já dito, nos tirando da zona de conforto do espectador.
O Resgate do Soldado Ryan, portanto, não é um filme qualquer sobre a guerra, é uma obra que nos transporta para dentro dela, nos faz sofrer e vibrar ao lado desse grupo de soldados que recebeu a mais inesperada missão. Mesmo com uma narrativa hesitante em alguns momentos, Steven Spielberg acerta em cheio no tom e na construção dessa cruel atmosfera, que faz uso da visceralidade para deixar bem claro que a guerra não é sobre heroísmo e bravura, é sobre o caos, terror e violência, elementos esses combatidos por aquela distante esperança dos soldados de, finalmente, conseguirem retornar às suas casas.
O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan – EUA, 1998)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Robert Rodat
Elenco: Tom Hanks, Matt Damon, Tom Sizemore, Edward Burns, Barry Pepper, Adam Goldberg, Vin Diesel, Giovanni Ribisi, Jeremy Davies, Ted Danson, Paul Giamatti, Dennis Farina, Nathan Fillion, Bryan Cranston
Gênero: Drama
Duração: 169 min.
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