Apesar dos reality shows terem eclodido desde os anos 1940 nos Estados Unidos, foi somente em meados dos anos 2000 que tivemos a maior explosão de programas centrados em capturar a “realidade” se valendo de participantes e os confinando em situações surreais como no caso do formato do Big Brother, show que domina a audiência em diversos países sempre quando está no ar – além do nome bizarríssimo que homenageia a maior crítica social trazida por George Orwell em 1984.
Estranhamente, mesmo lançado antes da explosão popular do formato, Andrew Niccol e Peter Weir conseguiram entregar uma obra premonitória e, até agora, atemporal. O Show de Truman é um clássico crowd pleaser. Excêntrico, original rápido e fácil, dificilmente algum espectador vai desgostar dessa brilhante história.
Síndrome Divina
Pode-se dizer muitas coisas dos roteiros de Andrew Niccol, mas raramente é possível apontar suas premissas como ordinárias. Em seu segundo trabalho para o cinema, Niccol eleva a narrativa cinematográfica em elaborar uma metalinguagem do principal sentido que envolve o cinema: a visão.
Nessa história, observamos a vida de Truman (Jim Carrey), um simpático vendedor de seguros que vive na pacata ilha de Seahaven. Até aí, nada demais. Porém, a verdade é que Truman não faz a menor ideia de que toda a sua vida é objeto de exibição do reality show mais popular do mundo inteiro: O Show de Truman. Entretanto, alguns conhecimentos esquisitos tiram a normalidade da rotina do protagonista, suscitando diversas dúvidas sobre a realidade que vive.
A objetividade que Niccol trabalha sua história é uma das maiores qualidades e também um grande defeito de O Show de Truman. De modo mecânico, o roteirista apresenta a rotina normal de Truman, apresentando seu trabalho, personagens-chave da narrativa construída meticulosamente para o cotidiano e, principalmente, seu enorme medo de água – um fato satisfatoriamente explicado com o uso de flashback.
Com muita rapidez, o roteirista já apresenta as diversas falhas da produção do programa, tornando aquela realidade maquiada cada vez mais superficial. O sentimento de paranoia cresce, alimentando o sonho do protagonista em viajar para Fiji, local que uma antiga paixão teria viajado após ser desligada do programa, afinal não era o interesse romântico planejado pelo diretor megalomaníaco do programa, Christof (Ed Harris dominando o papel).
É bastante conveniente que todas as relações de Truman com os outros seja falsa e até mesmo cafona, afinal todos os que moram em Seahaven são apenas atores contratados. Como disse, Niccol não usa meias-palavras para transformar completamente Truman de um cidadão feliz para um paranoico completo. O conceito é interessantíssimo, trazendo a tona a verdade de que, apesar de ser a estrela do show, Truman não possui o menor controle sobre seu destino.
Todas as narrativas são criadas e manipuladas com jogos psicológicos para que Truman seja um escravo do programa e, por isso, quando decide enfim viajar para conhecer o mundo, a realidade fabricada do show começa a se fragmentar. Apesar de imenso, a mundo d’O Show de Truman não consegue comportar outros destinos, além da cidade fictícia.
É justamente no segundo ato que Niccol passa a falhar, apelando muito para conveniências narrativas chegando perto de quebrar a suspensão da descrença. Apesar de render trechos cômicos e outros poderosos como o colapso nervoso de Truman, Niccol mostra a produção do show como perfeitos incompetentes exibindo cenários incompletos, transmissões de rádio oficiais para dirigir os atores, além de atitudes nada sutis para exibir uma farsa completa no funcionamento da cidade em si, como se a realidade do show fosse construída conforme Truman passa pelos locais – algo que sim, torna Christof mais complexo, mas também revela uma incompetência geral para o diretor do programa mais assistido do mundo.
O interessante é que há sim uma autoconsciência de Niccol a respeito do avanço exageradamente rápido da narrativa. Sabendo que logo vai esgotar Truman, ele apresenta um novo ponto de vista para mostrar o núcleo dos bastidores do programa, na sala onde fica Christof e boa parte da equipe de transmissão. Com base nisso, o roteirista começa a apresentar as problemáticas éticas do programa, de outras reações da audiência que condenam o aprisionamento de Truman, além de exibir mais incompetência da produção.
O núcleo só ganha força quando Christof finalmente revela a verdade para Truman, na cena mais bonita do longa. Ed Harris e Jim Carrey atingem o ápice de suas performances para exibir uma relação revoltada entre criador e criatura, mas um discurso emocionante e muito terno no qual Niccol testa os limites do julgamento moral do espectador, afinal o que é melhor? Viver em uma prisão na qual sempre terá tudo, livre das mazelas do mundo, mas sem nenhuma privacidade ou ser livre e conhecer o pior que a humanidade oferece?
Nesse teor filosófico que custa muito a chegar, Niccol consegue terminar O Show de Truman com uma mensagem muito poderosa.
O Olhar do Observador
Acompanhando a premissa fascinante do roteiro, Peter Weir testa seus limites na direção para realizar um de seus maiores trabalhos em decupagem e encenação. A criatividade já começa na abertura do longa, trocando os créditos originais do filme para inserir os créditos fictícios do programa.
Depois, vemos os esforços absolutos de design de produção em criar um simulacro da realidade que ofereça todo ar de artificialidade sem pender para o absurdo, apesar das diversas gags visuais que Weir consegue arquitetar com inserções de mensagens nada subliminares para Truman e também dos merchandising fora de hora.
Apesar de Weir acertar bem na atmosfera e trazer uma encenação geral bastante viva, é particularmente curioso como ele fica preso na proposta de trazer enquadramentos que simulam o ponto de vista das câmeras escondidas de Seahaven. Utilizando um filtro de vinheta, escurecendo os cantos da tela, o diretor nos coloca na mesma posição de observador da audiência do show. É um exercício muito interessante que traz camadas excepcionais sobre o papel da visão em um filme. Além de conversar com sua maior característica autoral na carreira, a questão do olhar, desde o brilhante uso do recurso em A Testemunha.
Weir segue essa proposta na maioria do longa, mas, felizmente, se dá a liberdade de comportar planos fora desses pontos de vista. Esses não possuem a infame vinheta e oferecem composições mais elaboradas, movimentos de câmera que fogem das panorâmicas incessantemente utilizadas, além de conferir um olhar artístico digno do bom artesão que Weir é. O clima criado transforma a vida do subúrbio americano em uma grande piada, ironizando fofocas e a artificialidade das boas relações que vizinhos mantém. Ele cria essa cafonice deliberadamente, potencializando a mensagem.
O diretor cria sequências memoráveis – destaque para o romantismo da recriação da face em colagens da antiga paixão do protagonista –, mantém o bom humor e consegue tornar o drama tão apressado em algo genuíno. Há simplesmente muita força que nos cativa em O Show de Truman. Esse com certeza é o filme mais agitado de toda a carreira de Weir, o menos silencioso e também o que ele aproveita melhor a montagem, inserindo com precisão diversas reações da audiência sobre a estranha jornada de Truman.
Clássico Imperfeito
Não há dúvidas que O Show de Truman seja um bom filme trazendo boas performances, mensagem valiosa, além de uma direção apurada de Peter Weir. Porém, é mais um caso no qual a premissa a la Além da Imaginação é melhor do que a execução dessa ideia. Simplesmente há uma enorme pressa estranha a Weir e isso certamente é sentido ao longo da exibição, como se o filme atropelasse sequências dramáticas importantíssimas para favorecer a curta duração do longa, ajudando a impulsionar a bilheteria na época.
Mesmo assim, o conto trazido por Weir e Niccol é um potente discurso sobre os limites da liberdade e da privacidade, trazendo questionamentos válidos que suscitam discussões acaloradas. Só por ter esse grande poder memorável, O Show de Truman merece ser observado por anos a fio.
O Show de Truman (The Truman Show, EUA – 1998)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Andrew Niccol
Elenco: Jim Carrey, Laura Linney, Noah Emmerich, Ed Harris, Natascha McElhone, Holland Taylor, Brian Delate, Paul Giamatti
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 104 minutos.