“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás todo o universo e os deuses, porque se o que procuras não achares primeiro dentro de ti mesmo, não acharás em lugar algum” – frase inscrita no Templo de Apolo em Delfos
A arte é a realidade concreta vista pela subjetividade alheia. Através de uma determinada percepção, o público entra em contato com sentimentos, ideias e personagens que, mesmo não manifestos, surgem como possibilidades dentro de cada indivíduo. Recepcionar uma obra artística é descobrir coisas acerca de nós mesmos e daquilo que nos rodeia. No entanto, para que isso aconteça, é necessário que o artista tenha investigado a fundo o próprio mundo interior, com todos os anjos e demônios que lá habitam. É somente ao evitar as armadilhas da auto-ilusão que ele poderá enxergar a realidade desnuda e retratá-la de maneira fidedigna.
Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), o protagonista de 8½ (a obra-prima máxima de Federico Fellini), está enfrentando justamente os desafios de perscrutar essa verdade interior. O seu maior objetivo é conhecer a essência do seu ser. Porém, há um problema: ele já não é um jovem à procura de uma história para contar, pronto para juntar os amigos e debutar na arte cinematográfica, mas sim um diretor estabelecido cujos próximos filmes são longamente aguardados pelos espectadores. Ao redor há um grupo enorme de pessoas que dependem imensamente do seu esforço, talento e atenção.
Os responsáveis pela produção lhe exigem mais informações sobre o longa que estão ajudando a realizar; os jornalistas perguntam constantemente a respeito do filme e da história que será contada; Madeleine (Madeleine Lebeau), uma atriz francesa, o importuna sobre o papel que interpretará; o crítico de cinema Carini (Jean Rougeul) não cessa de falar acerca dos problemas do roteiro e das inúmeras falhas presentes no texto; Carla (Sandra Milo), a amante, está na cidade e não quer ficar sozinha; a sua esposa, Luisa (Anouk Aimée), se encontra ciente de suas infidelidades; e a razão por trás das aparições fantasmagóricas de Claudia (Claudia Cardinale) ainda lhe são desconhecidas.
Em outras palavras, Guido está sufocando. Ele não consegue respirar e o universo que o circunda parece estar se fechando cada vez mais. A própria mise-en-scène reflete essa realidade intensamente: com uma câmera inquieta, Fellini e o diretor de fotografia Gianni Di Venanzo (um dos maiores nomes do cinema italiano) fazem questão de manter pouca distância entre os rostos dos atores e os quadros, ressaltando o quanto eles ocupam de espaço dentro dos planos, e usam movimentos laterais para revelar a presença constante de algumas personagens. Além disso, eles nos mostram reiteradamente como os ambientes estão repletos de pessoas, o que cria uma poluição visual e sonora, esta última sendo competentemente registrada pelo claustrofóbico design de som.
Entretanto, numa interpretação superficial, essa construção pode passar a equivocada impressão de que o protagonista está apenas enfrentando um desgaste emocional e psicológico, gerado “simplesmente” pelas cobranças dos seus parceiros profissionais e amorosos. Da mesma maneira, a famosa cena inicial, em que o sentimento de aprisionamento o faz sair do carro, fugir do engarrafamento e cair no chão após alçar voo, pode transmitir a sensação de que o objeto de crítica do longa é a vida moderna, na qual os automóveis e as urgências do dia-a-dia exercem uma pressão sobre-humana.
É possível também dizer que ele está passando por um bloqueio criativo, problema que o protagonista até admite em certo momento. No entanto, como é perceptível ao longo da narrativa, o seu conflito interno é maior do que todas essas alternativas. Em essência, está relacionado com a busca pelo seu eu verdadeiro. Até aquele momento, Guido vivia uma mentira. Quase tudo que estava à volta era falso e desprovido de substância. Eventualmente, o sucesso profissional que acompanha essa ilusão acabou por criar uma espécie de realidade alternativa, na qual ele era a figura máxima de um reinado de embustes e auto-trapaças (a dublagem ajuda a criar essa impressão).
Mas uma vez que há sempre um limite para a quantidade de engano que uma pessoa é capaz de aguentar, esse universo passa a ser invadido por visões e sonhos estranhos. Embora possa ter sido uma opção motivada pelo inconsciente e, muito provavelmente, também originada por um certo egocentrismo (o qual parece acompanhar todos os artistas), Guido está tentando realizar um filme autobiográfico. No plano da consciência, em que as intenções podem ser facilmente verbalizadas, a história que deseja contar é apenas um retrato do que ele viveu no passado, uma trama honesta capaz de ajudar as outras pessoas a enterrarem o que “de morto carregavam”.
Todavia, como só é possível fazer um filme sincero conhecendo a si mesmo e sendo verdadeiro com as descobertas feitas, a pré-produção interminável do longa se transforma na jornada de auto-revelação de Guido. Para isso, torna-se necessário retornar aos acontecimentos que fundamentaram a sua personalidade. É em razão disso que, a partir de uma concepção fortemente psicológica, as visões e lembranças começam a lhe recontar os momentos cruciais de sua trajetória, os quais são essenciais para colocá-lo, pela primeira vez, no caminho trilhado pelos artistas genuínos e capazes de dizer algo sobre a realidade.
A infância, a relação com os pais, a educação católica e o casamento com Luisa deixam de ser eventos acumulados de uma biografia e viram acontecimentos definidores de uma personalidade. História, fé e amor se unem para gerar a verdade de uma alma. Até os ímpetos mais animalescos (recriados na inesquecível cena do harém, que é composta de um jogo de luz que remete à psicologia junguiana) precisam ser aceitos. Sob a égide da conciliação, todas as situações e pessoas que marcaram a vida de Guido possuem os seus papéis na dança da existência, diferenciados apenas pela importância que exerceram.
E se, no fim, após todas as personagens e os membros do circo irem embora, resta apenas o protagonista enquanto criança, é porque tudo o que fazemos em nossas vidas deve ser visto sob a perspectiva dessa idade. A inocência que acompanha os primeiros anos de um sujeito é o único altar do qual pode se justificar uma vida. É somente diante dos olhos de quem sonha ser alguém que a realização ou não de um plano específico deve se colocar. Como dizia Georges Bernanos: “O espírito da infância julgará o mundo”. E se é assim para o todo, por que não seria para Guido?
8½ (Otto e Mezzo, 1963 – Itália)
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi
Elenco: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk, Barbara Steele
Gênero: Drama
Duração: 138 min.