O sucesso de Piratas do Caribe: A Maldição do Pérola Negra fora uma coisa incrível. Não só foi capaz de oferecer uma aventura tradicional e com o espírito das matinês que George Lucas e Steven Spielberg buscaram para seu Indiana Jones, misturado a um forte elemento sobrenatural e um senso de humor agradável. O filme avalancou a carreira de Johnny Depp e fez uma bilheteria absurda, tudo isso partindo de uma atração da Disney, o que logo iniciaria a fórmula vista em filmes como Mansão Mal Assombrada e Tomorrowland. Mas mais do que isso, uma continuação para o filme de 2003 era inevitável, então em 2006 tivemos o lançamento de Piratas do Caribe: O Baú da Morte, um filme com escala mais épica e uma trama menos agitada, mas que não deve em nada à seu antecessor.
A trama tem início pouco tempo após os eventos de Pérola Negra, com o casamento de Elizabeth Swann (Keira Knightley) com o ferreiro Will Turner (Orlando Bloom) é interrompido pelo cruel Lorde Cutler Beckett (Tom Hollander), que aprisiona os dois sob acusação de terem conspirado para libertar o pirata Jack Sparrow (Depp). Oferecendo um acordo à Will, o lorde o envia em uma missão para encontrar Sparrow e recuperar sua bússola peculiar, oferecendo sua liberdade e à de sua noiva em troca. Porém, Jack tem seus próprios problemas para lidar quando sua dívida com o pirata fantasma Davy Jones (Bill Nighy) volta para lhe cobrar, colocando uma nova tripulação sobrenatural em seu encalce, tendo no misterioso Baú da Morte a única chance de salvação do protagonista.
Sempre foi um padrão preguiçoso na época, e principalmente agora, repetir todas os elementos e a estrutura do original durante a continuação. Felizmente, o roteiro da dupla Terry Rossio e Ted Elliott acerta ao apostar em um filme diferente em estrutura e progressão narrativa, ao evitar repetições temáticas da donzela em perigo ou tesouro amaldiçoado, preferindo manter os personagens separados em subtramas diferentes e oferecer um macguffin muito mais interessante na forma do Baú titular. Todo o arco de Jack Sparrow correndo para salvar sua alma oferece riscos mais perigosos e ideias realmente brilhantes da equipe, desde a tripulação de condenados que vão lentamente fundindo-se com elementos marinhos e à estrutura do navio Holandês Voador até a ameaça iminente da monstruosa lula gigante mitológica, o Kraken.
Escalação dramática
Os personagens também têm um grande avanço e desenvolvimento comparado ao anterior. O conceito de mortalidade de Jack e também a crescente discussão sobre a bússola moral de seu personagem ganham boas sacadas do texto, com uma recompensa no último ato que oferece um Jack mais maduro e disposto a sacrificar bens importantes pela segurança do bem maior. Enquanto isso, o personagem de Will Turner ganha com a introdução de seu núcleo paterno, ao descobrir que seu pai Bootstrap Bill Turner (um decrépito Stellan Skarsgard) é um dos tripulantes condenados do Holandês Voador e despertar ali uma missão pessoal de libertá-lo dessa condição. E também temos Elizabeth Swann abandonando sua posição previsível e irritante de donzela em perigo para transformar-se em uma figura muito mais forte, lutando espada e demonstrando uma inteligência divertida quando consegue convencer os tripulantes de um navio de uma presença fantasmagórica. E ainda que não seja um personagem ativo, acho sempre agradável quando temos a ironia da inversão de papéis, com o ex-comodoro James Norrington (Jack Davenport) retornando em um estado deplorável e que em nada remete à postura cortês e elegante do antagonista do filme anterior.
Talvez o grande problema do filme seja sua inevitável condição como capítulo do meio. Como este longa e sua continuação, No Fim do Mundo, foram desenvolvidos em conjunto, boa parte da trama de Baú da Morte serve para explicar conceitos e personagens que ganharão mais destaque e aprofundamento no capítulo seguinte, assim como deixar o filme terminar em um gancho arrasador e que perpetua-o como uma obra sem final, mas que é parte de um todo. Outros problemas incluem alguns núcleos inconclusivos, como o forçado e artificial desenrolar de um “interesse amoroso” entre Jack e Elizabeth, que rende apenas uma reviravolta durante o clímax, além de descartáveis momentos de ciúmes entre a moça e Will – sem falar na presença do ex-comodoro.
Rever o elenco reprisando seus respectivos papéis nessa guinada dos personagens também é muito gratificante, especialmente pela magnética performance de Johnny Depp. Tendo recebido uma inesperada indicação ao Oscar por seu retrato do pirata bêbado no primeiro filme, Depp mantém toda sua detalhada construção física e os trejeitos do personagem, como o andar cambaleante e os braços sempre em movimento, como se o personagem precisasse de muita concentração para conseguir manter-se em pé. A sagacidade e ironia do personagem também retornam, mas é notável como Jack está muito mais paspalhão e cômico aqui, vide sua hilária atuação quando é eleito “rei” pelos canibais de uma ilha local. Quanto a seus colegas de cena, infelizmente Bloom mantém sua performance esforçada de uma nota única, com a determinação e força de vontade de Will, enquanto Keira Knightley beneficia-se da melhora em sua personagem para trazer mais dureza à sua performance, ainda que mantenha uma feminilidade – e até uma certa histeria pontual – durante boa parte de seu retrato.
Então, dedico um parágrafo inteiro para falarmos do melhor personagem da franquia Piratas do Caribe, depois do Capitão Jack Sparrow, claro: Davy Jones. Um vilão trágico e de coração partido, Jones é uma presença fantasmagórica que somos capazes de temer e ficar admirados ao mesmo tempo, e muito disso se deve ao impressionante misto de captura de performance de Bill Nighy com os efeitos visuais fotorrealistas da Industrial Light & Magic, merecidamente premiados com Oscar por seu trabalho aqui. Os tentáculos que compõem a barba e a face do pirata são de um realismo inacreditável, com a textura nítida de um molusco e os movimentos quase que independentes e fluidos de seus componentes, além do trabalho preservar com naturalidade cada tique de expressão de Nighy, como suas “fungadas” e barulhos com os lábios que Jones constantemente solta ao longo da projeção. Mesmo sem nunca de fato sair para a ação no filme, Jones é um vilão formidável.
Poderio visual
Em quesitos visuais, temos mais um espetáculo garantido pela direção grandiosa do subestimado Gore Verbisnki. Desde o primeiro frame do filme percebe-se o cuidado de Verbinski em estabelecer um mundo belo e realista, com a belíssima e melancólica imagem de uma cerimônia de casamento deserta castigada por uma pesada chuva, levando-nos imediatamente à um calabouço apavorante onde vemos corvos arrancando olhos de homens vivos… Até quebrar tudo isso com uma introdução apropriadamente hilária para Jack Sparrow, demonstrando seu incrível controle de ritmo e variação de tom, algo que é crucial para o sucesso da produção. A forma como a comédia elegantemente mistura-se ao espetáculo é algo que não deve-se somente ao trabalho certeiro do elenco, mas às diversas brincadeiras visuais do diretor, como no momento quase silencioso em que Jack Sparrow percebe seu desequilíbrio enquanto amarrado a um espetinho canibal ou sua mise en scène ao demonstrar às desastrosas mudanças de gravidade durante a inacreditável luta em uma roda d’água em movimento.
No espetáculo propriamente dito, temos uma escalação notável. Dado o fato de que Jones não pode pisar em terra firme, grande parte da ação e a trama do filme são ambientadas em alto mar, com o grande destaque de tais sequências sendo os três ataques do Kraken que vemos durante a história. O primeiro é algo saído praticamente de um terror, com uma sucção violenta que afunda um pequeno barco pesqueiro em uma questão de segundos, ganhando uma desenvoltura muito mais elaborada quando chegamos no segundo ataque. Aqui, vemos a habilidade do cineasta em controlar a geografia espacial dos acontecimentos, mantendo nosso foco em Will Turner escalando um mastro enquanto sua câmera passeia pelo caos no convés e todos os homens desesperados sendo agarrados pelos tentáculos gigantes da criatura, que parte o navio em dois em um show de efeitos visuais e uma inesquecível trilha de órgão do mestre Hans Zimmer.
São todas sequências visualmente deslumbrantes, onde Verbinski e o diretor de fotografia Dariusz Wolski capturam o naturalismo das belíssimas paisagens e locações por onde a história caminha, que incluem a coloridíssima ilha dos canibais, marcada pelo verde das copas de suas árvores, até o clímax na Isla Cruces, onde temos um duelo de espadas sobre uma praia de areia branquíssima. Cenas internas e que envolvem iluminação de velas, em especial às cabines dos navios e a sequência em Tortuga, trazem um alaranjado típico da chama da fonte de luz e um contraste notável entre as demais cenas, com a coloração mudando drasticamente para uma sombra mais pesada e azulada durante os momentos no Holandês Voador, criando um ambiente aterrador e que parece realmente um inferno marinho – fruto também do espetacular trabalho do design de produção, especialmente nos “dentes” da proa do Holandês.
Evitando prender-se à estrutura e convenções do primeiro, Piratas do Caribe: O Baú da Morte é uma ótima sequência que oferece uma aventura divertida, envolvente e grandiosa como a de seu anterior. Beneficia-se do amadurecimento de seus personagens, uma direção inspirada e de um núcleo antagonista muito mais poderoso, além de expandir o lore da saga e almejar coisas muito maiores em seus capítulos seguintes.
Piratas do Caribe: O Baú da Morte (Pirates of the Caribbean: Dead Man’s Chest, EUA – 2006)
Direção: Gore Verbinski
Roteiro: Terry Rossio e Ted Elliott
Elenco: Johnny Depp, Orlando Bloom, Keira Knightley, Bill Nighy, Naomie Harris, Jonathan Pryce, Stellan Skarsgard, Tom Hollander, Jack Davenport, Kevin McNally, Lee Arenberg, Mackenzie Crook
Gênero: Aventura
Duração: 151 min