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Crítica | Poesia Sem Fim

Filmografias avançam de maneiras diferentes de acordo com as intenções do artista. No caso do chileno Alejandro Jodorowsky, ela parece seguir uma direção bem definida em suas crenças, idiossincrasias, sempre passeando por um universo místico que se confunde com o poético. Isto é, nem todo esoterismo é tão revelador, nem ensinamentos religiosos são sinônimos de transcendência. No mundo da arte, cabe a cada um saber levar sua identidade, seu discurso, e dele extrair uma substância à sua moda. Jodorowsky sempre fez tudo ao seu modelo, sendo inclusive criticado em cada seara que se metia – poesia, quadrinhos, literatura e, especialmente, cinema.

Depois de A Dança da Realidade, primeira parte de seu projeto auto cinebiográfico, o diretor conseguiu completar esta sequência com a ajuda dos seus fãs num projeto de financiamento coletivo no Kickstarter. Seu problema com dinheiro foi sempre muito grande, como denota na introdução do filme anterior. Agora, chega às telonas com Poesia Sem Fim, que continua precisamente onde Dança parou. Alejandro passa de um jovem adulto para um adulto jovial, sendo os primeiros minutos do filme dedicados a marcar essa passagem de um ser reprimido para um poeta libertário.

Começamos, então, com um problema estrutural. Poesia começa com um impacto. Mas não um impacto metafórico, sintetizador, como costumam fazer os cineastas nos primeiros planos de seus filmes. Porque, afinal, o filme é um segundo volume feita aos moldes de mais um capítulo do primeiro. Não só pelo pique e a boa memória que exige logo de cara, mas pelo projeto como um todo. É um desconforto que lembra (peço perdão por exemplo tão diametralmente oposto) o começo de O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos, quando a cena inicial, da batalha com Smaug, exigia um estado de espírito somente obtido, com muita boa vontade, com o final do filme anterior.

Dito isso, Jodorowsky segue como pode nesse começo, mas logo embarcamos em seus arroubos poéticos, ora pesados, ora sutis, mas sempre muito reconhecíveis. Parecem, porém, mais irregulares que as do longa anterior. Depois de uma hilariante cena em que, enfim, o pequeno Alejandro (Jeremias Herskovits) literalmente corta sua árvore genealógica, de um plano para outro, ele passa para o corpo de Adan Jodorowsky, filho do diretor. Agora, fora da casa da família, refugia-se numa morada para artistas dos mais diversos tipos e prova para si mesmo e para o pai incutido em sua consciência que não é homossexual. São dois parágrafos muito importantes nessa sua virada.

Nesse novo cenário, encontrará artistas, como seu ídolo Nicanor Parra (Felipe Ríos), encontrará musas, como a poetisa Stella Díaz Varín (Pamela Flores, que também interpreta Sara, sua mãe) e fará amigos como o poeta Enrique Lihn (Leandro Taub). Alegrias, festas, manifestações, teatro de marionetes, poesia, sexo, rebeldias, desilusões amorosas, amizades conturbadas, dúvidas internas, enfim, anos de formação. Tudo tratado com a mesma misé en scene de A Dança da Realidade: um estilo teatral, com cenários sobrepostos aos elementos atuais da cidade, o uso de homens de roupa preta fazendo aparecer e desaparecer objetos de cena, criando interessantes transições.

E desse Jodorowsky mais novo, há muito para se duvidar. Mas, felizmente, o Jodorowsky velho, o que relembra sua vida e torna esse filme possível, não entra em cena como um moralista, nem pretende esconder seu ego inflado à época. E fica muito claro que o filme não é uma autocongratulação, quando no final o Jodorowsky de 88 anos entra em cena e monta uma reconciliação que ele tanto deseja ter sido real. E o filme é primorosamente encerrado com uma cena tocada de trás para frente, de maneira quase imperceptível.

Poesia Sem Fim é a dança que se repete, no sentido que a redundância adquire nos bons cineastas. Sincera como transformação poética da memória, a obra consegue dar continuidade linear ao projeto iniciado com A Dança da Realidade. O que é muito bom, porque, até o momento, esse projeto traz uma coesão que parece faltar à sensibilidade de seus outros filmes. Ao mesmo tempo, Poesia Sem fim parece ser também um aviso de que o diretor pretende pintar, até o final de sua vida terrena, os cinco painéis do seu projeto autobiográfico com as mesmas tintas. Vejamos para onde vai o barco da dubiedade jodorowskiana. Por enquanto, nessa rota calculada, navega bem.

Poesia Sem Fim (Poesía sin fin, Chile – 2016)

Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Jeremias Herskovits, Adan Jodorowsky Brontis Jodorowsky, Pamela Flores, Leandro Taub e Felipe Ríos
Gênero: Biografia, Fantasia
Duração: 128 min

Redação Bastidores

Publicado por Redação Bastidores

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