Quando você acompanha há certo longo tempo, ou é familiar com uma longa carreira no cinema, como é o caso daquela de Woody Allen, você já deve ter notado uma certa…discrepância, no que se refere à qualidade de seus longas e a sua continuidade ou recaída de nível destes. Bom, isso é o destino que todo cineasta com mais de trinta filmes no currículo vai, inevitavelmente, enfrentar. Hitchcock, Godard, Ford e Bergman que o digam (embora esse último não ter sequer um filme abaixo de bom ou mediano). Infelizmente, esse foi o caminho que o melancólico e humorado diretor/roteirista/ator teve que enfrentar na carreira. Mais eis que o cineasta apresentou, na década passada, Ponto Final: Match Point (ou apenas Match Point), que se demonstrou como sendo um dos seus pontos altos criativos que ele volta ou outra, ainda a demonstra ser capaz de fazer até hoje!
Pois, uma coisa que já se deve ter notado na filmografia de Allen, é que desde que ele começou a se dedicar em lançar um filme por ano, e isso já vem desde os seus primórdios, viu-se uma leva de filmes, um atrás do outro, melhor ou abaixo do último, ou não tão bom como esse ou aquele, etc…Por um tempo até que funcionou, entre 83 e 87 tivemos uma leva de alguns dos melhores do diretor, que iam desde Zelig, Hannah e Suas Irmãs à Era do Rádio. Porém, ouso dizer que, desde meados dos anos 90, após os ótimos Um Misterioso Assassinato em Manhattan e Tiros na Broadway, não se viu uma obra a altura de grandes acertos do passado. Com salva exceção do subestimado Desconstruindo Harry, vimos uma leva de comédias pitorescas ligeiras que hoje quase ninguém se lembra como Celebridades, Trapaceiros, Poucas e Boas, O Escorpião de Jade; se você conhece e já viu todos esses, estão de parabéns!
Tendo em conta o aprecio da crítica e do público norte-americano pelo diretor, que nunca foi dos melhores por mais incrível que pareça, Allen entrou em um verdadeiro limbo criativo, sem conseguir novos investimentos de estúdios. Felizmente, Allen conseguiu fazer parte, parcialmente, da leva de diretores americanos esnobados em casa, mas apreciados mundo afora, Europa principalmente. Brian De Palma, Abel Ferrara, David Lynch e James Gray que o digam. Graças a isso, os britânicos foram a salvação do diretor, que lhe garantiram o financiamento, sua liberdade criativa, e apenas pediram em troca uma adição de sua cultura Britânica em seu novo filme, seu melhor em anos e, sem dúvidas, um dos seus melhores, eis que nasce Match Point!
Em Londres, conhecemos Chris Wilton (Jonathan Rhys Meyers), um jovem ambicioso, ex-jogador de tênis, que recém começou a trabalhar como instrutor desse esporte em um clube de elite. Lá conhece e faz amizade com Tom (Matthew Goode), um playboy que apresenta Chris para sua família de milionários, os Hewett. Chris começa a se aproximar e namorar a irmã caçula, a gentil jovem Chloe (Emily Mortimer) e arranja um emprego na empresa de empreiteiros do pai, Alec (Brian Cox), rapidamente subindo na vida como tanto almejava. As coisas se complicam quando Chris conhece e se apaixona por Nola (Scarlett Johansson), a sensual noiva americana de Tom, onde começam a ter um caso extra-conjugal, dando início à um perigoso conflito.
Como já podem notar, já fica de cara a discrepância de Match Point em comparação a outros filmes de Allen. Sua amada urbana e calorosa Nova York dá lugar para uma enclausurada e gélida Londres; seu humor ácido e irônico dá lugar para uma sombria e angustiante aura de suspense contínuo. Ao invés do tom de uma comédia de erros sobre as frustrações da vida, encontramos um digno melodrama novelão sobre os podres enrustidos da vida burguesa, revestido de um exímio estudo de personagem sobre a moral e a lei de causa e efeito dentro do subconsciente humano e suas motivações nas ações de sua vida. Um perfeito palco para Allen vir a lidar novamente com seu autor-muso e aspirante artístico, Fiodor Dostoiévski.
Fiodor e Woody
Talvez seja escuso dizer, principalmente para aqueles que já são bem familiares com a obra do diretor, a grande notável admiração e paixão que Allen tem pela obra de Dostoiévski. Isso que vai muito além do que apenas meras citações ao autor em algum diálogo aqui e ali, isso ele já fez com vários. Mas também como diretor, já chegou a recriar momentos narrativos criados por Dostoiévski, principalmente, do que é pra mim e com certeza também para Allen, o seu melhor trabalho – Crime e Castigo.
Tal brilhante obra que já deu as caras como grande influenciador em seus filmes, de uma obra-prima como Crimes e Pecados, e até em um de seus mais recentes, como Homem Irracional. Mas, ouso dizer que talvez nunca vimos a obra influenciando tão fortemente Allen como aqui. Não só pelo fato de vermos o personagem de Chris, literalmente, lendo o próprio livro estampado de frente para a câmera, como também ao ponto do filme quase se tornar uma adaptação indireta do mesmo.
Recriando momentos chave como o principal evento, de ambos do livro e do filme, o assassinato. Ocorrendo de forma quase exatamente idêntica: a morte da idosa; o suposto roubo das joias; quase flagrado por um dos moradores vizinhos; a morte da jovem; a fuga de supetão esbarrando com pessoas na saída. Claro que nenhuma das ações ocorrendo pelas mesmas motivações como no livro, mas a estrutura é a mesma. Isso já garante ao filme alguns comentários ignorantes como Allen copia do seu autor influente para montar uma cena ou trama, pois não tem mais um intuito criativo ou temático algum, ou pura “reciclagem” por assim dizer. Mas não poderia discordar mais.
É exatamente nessa recriação da obra através do filme, e até mesmo no seu intuito de citar diversas vezes o nome do autor, entre outros, que é criada uma porta de entrada narrativa para Allen juntar ambos os universos literários e cinematográficos que tanto lhe influenciam. Isso permite que seus temas floresçam de forma sutil, mas de fácil identificação e análise. Um convite para entrar no universo da trama que ele cria aqui para os personagens, fazendo com que o público sinta os mesmos sentimentos de angústia e desespero interno que rondam o psicólogo de seu protagonista. Isso serve também como gatilho para Allen poder abordar os temas dostoievskianos que tanto lhe fascinam.
Mas realmente, quem pode culpá-lo por revisitar a obra de Dostoiévski tão constantemente em seus filmes? Ele é o autor que influenciou milhares de autores e filósofos até hoje, desde Freud, Sartre, Kafka, Nietzsche, Proust, enfim. Seus temas invadem o cerne do psicológico e emocional humano e revelam o amontoado complexo que uma pessoa pode carregar dentro de si. Os poderes da fé, da culpa, do amor e do ódio, do livre arbítrio, da ganância, do ego, do ideal de moralidade que move a personalidade e as ações do indivíduo no mundo em que vive. Outros livros do autor como O Idiota, Irmãos Karamazov, O Jogador, Os Demônios e Notas do Subsolo estão aí como perfeito exemplar de todas essas ricas análises temáticas. Mas a obra aqui em questão, talvez seja o maior exemplo da força artística e humana de Dostoiévski representada no cinema de Allen.
Crime e Castigo, de um ponto de vista pessoal, sempre foi para mim o maior estudo de personagem já escrito na história da arte. Que melhor retratou tudo que Dostoiévski prezava em sua literatura. O embate do certo e errado; moral e psicológico; da causa e efeito; das consequências de uma ação para com a própria essência da alma do indivíduo no meio social em que vive e se sente oprimido pelas leis pragmáticas e religiosas dos homens. São questões como essa que adentram nas entrelinhas das composições do personagem de Chris.
Sorte vs Destino
Logo no início, quando vemos Chris apresentando sua analogia de vida, figurada no passe da bola de tênis entre a rede – se bate e ainda cai para o outro lado, ele conseguiu e vence, mas se bater e cair para trás, ele está para sempre condenado em seu feito. Essa é a força motriz que move o protagonista dentro de sua jornada pessoal rumo à crescer no seu status de vida, o poder do destino que para ele não passa de pura sorte, algo que vai lhe calhar muitas vezes ao longo do filme. Isso logo o torna um personagem introspectivo, mesmo quando Allen afasta sua atenção para outros personagens em diferentes instâncias do filme, tudo que se decorre ao longo da trama, vemos a partir dos olhos de Chris, e assim talvez, começamos a compreender suas motivações e frios atos.
Junto a isso, une-se o diálogo com a obra de Dostoiévski, um estranho mas surpreendentemente eficiente casal de temáticas. No caso de Chris, em seu passado de família humilde, ele de certa forma se conecta e relaciona com o personagem de Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo. Onde em seu deplorável estado de pobreza e vivendo às migalhas, se vê com a razão em tirar a vida de uma cruel senhora rica, que enxotava a sobrinha e os moradores de seu prédio. Seus ideias, inteligência e status de pobreza o põe, aos seus olhos, como um ser moralmente superior. Chris é guiado pelo mesmo sentimento, de que seu relacionamento com a família dos Hewett e sua ascensão de status é um direito seu, e ninguém pode lhe tirar isso, nem mesmo sua desesperada amante Nola, que a certa altura no filme, carrega agora seu filho bastardo.
Quando nota-se o início desse conflito dentro do psicológico de Chris, vemos algo que Allen não fazia desde Crimes e Pecados, a criação interna do suspense e o sentimento de antecipação de que algo ruim está prestes a acontecer. Não exatamente pelo o que vai acontecer, fisicamente com as pessoas, mas sim quais decisões, extremas ou não, irão eles tomar. Colocando o próprio público no questionamento interno do personagem de Chris. Até onde ele/nós estamos dispostos a ir? O que faríamos para proteger nossa felicidade e reputação? O quão egoísta seria? Seria nosso conforto íntimo e pessoal mais importante que a vida de outra pessoa?
Agora atormentado e sofrendo por suas questões internas, será justo, então, que outros pagarão por seus crimes, maiores e menores? Exatamente assim como fora com Judah Rosenthal – protagonista de Crimes e Pecados – ao se livrar da amante e salvar o casamento e sua imagem de boa índole e status. Assim como culminou com Chris assassinando Nola, e o velho Raskólnikov assassinando a velha e sua pobre sobrinha que fora uma testemunha acidental, assim como a pobre velha vizinha de Nola servindo como cúmplice de Chris, que invade seu apartamento e forja um assalto, acobertando o seu crime.
Mas enquanto Raskólnikov sucumbe à um sofrimento interno e externo, se corroendo pelo martírio de sua culpa, e encontra o perdão divino no amor de uma jovem religiosa e na sua confissão perante a lei; o mesmo foge de acontecer com Chris. É aí que Allen separa a obra e a sua visão pessoal no filme. Enquanto em Crime e Castigo vemos uma culminação do personagem em um conflito interno de base religiosa e existencialista, seu impasse em atingir a salvação pelo sofrimento. Enquanto outrora, procurou fugir do sofrimento através de diversos prazeres, mas foi incapaz disso. O mesmo aconteceu com Judah em Crimes e Pecados, embora no final ele aprenda a aceitar a culpa e continuar vivendo sua vida normalmente. Com Chris, ele consegue a última instância de Raskólnikov e o intuito de Judah, ignora sua culpa que lhe busca atormentar em forma de visões de assombração, pois mantém seu ego de ter feito o que deveria ter feito, mesmo que isso seja contra as leis dos homens.
Com isso, Allen está dizendo claramente no texto que não há Deus, ou punição, ou amor sequer forte ou existente para entregar essa redenção pelos pecados humanos. A justiça cega e incapaz, onde fé, fidelidade, não passam de brinquedos na natureza humana em seu puro estado de frieza, ou nesse caso do personagem de Chris. Um personagem que em seu estado de crise moral, talvez se aproxime bastante da ideia do existencialismo de Jean-Paul Satre e Albert Camus, que sempre tiveram como ponto de referência Dostoiévski, e suas definições do existencialismo presente em seus personagens. “Se Deus não existe, tudo é permitido!”. Ou na sua definição de “liberdade” como uma necessidade psicológico-moral de todo o indivíduo. Isso é, com certeza, o que Allen parece crer, assim como o personagem de Chris, sua liberdade moral de alguém intelectualmente e moralmente superior aos outros, o que permite o salvo conduto em suas ações. Em outras palavras, um dos melhores personagens que Allen já escreveu em um de seus filmes ou como aqui em um de seus melhores roteiros.
Personagem esse que quase pode se dizer um personagem anti-Woody Allen, ou melhor, talvez tudo que ele queria ser. Alto, charmoso, grande sex appeal, culto, sedutor e livre de impunidade por suas ações egoístas. Mas ainda encontra-se pequenos traços pessoais de Allen na caracterização do personagem. A cena em que ele vê Nola nos amassos com Tom, ele faz uma cara de cachorro sem dono, a frustração do sentimento não correspondido – típico Allen! São em seus ideais e motivações que se encontra a visão pérfida e cínica que Allen quer tanto implementar na construção do seu personagem. Principal motivação essa sendo sua ganância em subir na vida, algo que também parece mover de forma semelhante a também misteriosa e complexa personagem de Nolla.
A Novela da Burguesia
É a velha história digna de um novelão, o proletariado ascendendo à burguesia através da avareza e luxúria, exatamente o caso do casal Chris e Nola, ambos em diferentes formas. Chris sendo um ex-jogador vivendo de quase nada e Nola a atriz fracassada, ambos se conhecem ao adentraram na família Hewett por se envolverem amorosamente e sexualmente com o casal de irmãos herdeiros, Chloe e Tom. Através de Chris, o público é transportado junto de seu embate de grande sofrimento, crime, culpa e engano – se escondendo dentro desse novo mundo de luxo que ele adentra, um cotidiano dócil entre casais e cenas que transmitem um falso conforto físico para uma tempestade caótica em seu interior.
Meyers e Johansson fazem de Chris e Nola um casal com grandessíssimo sex appeal, casal que eu facilmente veria Alain Delon ou Claudia Cardinale interpretando esses exatos mesmos papéis no seu auge das antigas. Ainda mais depois da cena em que eles dividem um apaixonado primeiro beijo debaixo da chuva, cena assumidamente brega digna de um melodrama de Douglas Sirk. O que resulta em uma forte tonalidade erótica ao longo do filme. Mas nunca um erotismo mostrado e sim “pré-demonstrado” (basicamente Allen mostra o início da pegação e depois corta quando o pequeno sinal de nudez está prestes a começar). Exatamente porque não se torna um erotismo gratuito, apesar de ser o mais sensual e sexy do diretor junto de Vicky Cristina Barcelona, e sim o passe livre de ambos para ascenderem nesse mundo de ricaços.
Mas, surpreendentemente, Allen nunca cede ao caricato de suposta frieza, mal caráter assoberbado e distância do mundo na sua construção dessa realidade pomposa da burguesia da família. É exatamente no seu realismo e credibilidade que a obra se torna bem imersiva quando acompanhamos Chris vivendo sua nova vida burguesa. É um perfeito contraste, uma família de muitas posses e que parecem ser as pessoas mais ingênuas e simpáticas do mundo. E assim percebemos como é em Chris que notamos a tendência dessas características de um burguês exacerbado, um ser que se sente como superior, intelectualmente, a todos. Facilmente encaramos os podres que ele cria e esconde por debaixo de toda essa pacata riqueza inofensiva.
E Jonathan Rhys Meyers está realmente bom. Ele cria seu personagem com um charme inegável e segue o roteiro de Allen de forma muito fiel à complexidade moral do personagem de Chris, ao ponto de torna-lo misterioso e até imprevisível. O que torna suas ações no final realmente chocantes e impactantes. O núcleo da família Hewett também estão todos bons. Brian Cox sempre um coadjuvante de luxo e Penélope Wilton vende a persona da sogra preconceituosa e megera sem exageros. Destaque fica mesmo com Matthew Goode que vende muito bem o playboy metido com o nível suficiente de arrogância, e Emily Mortimer como a jovem doce e bobinha mas com um bom nível de ser a filhinha do papai mimada. Você quase nunca encontra uma nota falha em um elenco de Woody Allen, ainda mais o seu prioritariamente britânico. Mas quem rouba a atenção é, inevitavelmente, Scarlett Johanson. Ela não mostra lá grandes expressões com a personagem, mas nem precisa. É na sua naturalidade que ela mostra o quanto está encarnando sua Nola com devida confiabilidade. E entrega um carisma sensual raríssimo de se encontrar em uma atriz hoje em dia.
Mesmo o foco principal narrativo sendo em Chris, todo o elenco é beneficiado com seus personagens bem delineados. Os temas de Allen inseridos nas entrelinhas de forma soberba, mesmo com a trama tomando essa forma de um aglomerado de podres da classe da elite cheio de mentiras, casos extra-conjugais e segredos que formam um perfeito cenário de grande novelão. Onde tudo isso é beneficiado um roteiro dos mais coesos e mais ácidos de Allen, com sua direção classuda fazendo um ótimo proveito da “peculiar” fotografia de Remi Adefarasin, que conta com uma paleta acinzentada casando com o clima seco e frio de Londres. Com uma exploração cuidadosa de iluminação nos espaços internos e externos, e uma captura de luz desde as menos e mais saturadas para acompanhar a evolução emocional dos personagens. Ainda agraciando com o uso de amplo número de apresentações cênicas. Planos fechados, contra-planos, longos takes com zoom in e out, é um show técnico para os mais fascinados por uma estirpe mais clássica de se filmar, de forma tão sutil e amplamente eficiente. Que remonta bastante o próprio período mais dramático do diretor no final dos anos 1980 com pérolas esquecidas como Setembro, A Outra, Maridos e Esposas, Neblinas e Sombras, etc.
O Amadurecimento de um Artista
Talvez o filme apenas falhe em ter sua parte inicial um tanto apressada em certos pontos rítmicos, e na apresentação das motivações dos personagens. Mas essa montagem rápida (proposital) e com diálogos que mais parecem subterfúgios temáticos do que o filme, virá explorar mais adiante na jornada de Chris. Isso se inicia exatamente a partir de sua ascensão social, e começamos ver sua descida ao inferno da culpa. Abrindo espaço para claros temas como o seu repugnante machismo avarento para com ambas sua esposa Chloe e a amante Nola, e os perigos morais que a riqueza pode trazer para algumas pessoas. Claro, o já mencionado diálogo influente do drama psicológico de Dostoiévski, mas em uma estrutura quase episódica de obras teatrais ou óperas com as mesmas tonalidades de destruição ética e moral, tome Macbeth e La Traviata por exemplo.
Aliás, nota-se no filme um claro uso do Teatro e da Ópera como forma de estrutura do cerne do filme. Ao constantemente implantar cenas dos personagens indo ao teatro ou ópera, por apenas ouvir um serena melodia ou um coro bombástico de fundo evocando erupções de emoção que o exterior dos personagens não podem demonstrar, principalmente o de Chris. Sua composição cênica, quase que teatral e episódica remonta uma estrutura muito similar a de uma ópera ao acompanhar o desenrolar dos personagens. No caso de Chris, o vemos quase como um triunvirato de uma ópera, o protagonista que se sente afastado do mundo dos meros mortais, o que relembra exatamente sua visão de introspectividade para com o público, dando assim um desprendimento da plausibilidade e do real dentro de sua história. O que permite assim, a vitória impune do seu crime no final.
É exatamente nesse final, com sua suspeita no crime sendo apagada; sua esposa finalmente tendo o filho que ele nunca conseguiu a dar; com o livramento do fardo da amante Nola e do filho bastardo; sua impunidade vence e só resta um vazio em seu olhar e na sua própria alma agora congelada. É quase a perfeita caracterização lírica do ato infame, digna de uma peça Shakespeariana. Onde o discurso levantado por Chris no início, de que, algumas vezes, a vitória ou derrota de alguém pode ser definida por um simples ato de sorte, realmente é, tragicamente, possível, o que torna Match Point um dos grandes momentos da carreira de Allen.
Trata-se de um filme que veio demonstrar o grande autor que ele consegue ser em seus momentos de grande dedicação artística. Que remonta suas essências dramáticas e filosóficas do passado e a adaptam para o cinema atual com novas caras, sensuais e joviais, mas sem perder um pingo de sua personalidade clássica e cínica por essência. Renova-se em um soberbo estudo dramático e psicológico de personagem que instiga verdadeiras reflexões morais e ideológicas internas, de forma desconfortante e emocionalmente envolvente. Sem mais delongas ou alguma dúvida sobre o assunto, este certamente é um de seus grandes e melhores filmes.
Ponto Final: Match Point (Match Point, Reino Unido – 2005)
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen
Elenco: Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johanson, Emily Mortimer, Matthew Goode, Brian Cox, Penelope Wilton, Alexander Armstrong, Rupert Penry-Jones, Margaret Tyzack, Ewen Bremner
Gênero: Drama, Romance, Thriller
Duração: 124 min