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Crítica | Projeto Flórida – Sob a sombra da Disneylândia

Mais de uma vez, já estive na Flórida em algumas de minhas viagens. Mesmo que o foco fosse conhecer a Disneyland, uma das coisas que mais me passava pela cabeça era como seria morar em um dos maiores polos turísticos dos EUA, e se a vida teria aspectos peculiares por estarem habitando a terra do Mickey Mouse – por mais que a Disney original resida na Califórnia, é inegável que Orlando receba a maioria dos turistas. Eis que o cineasta experimental Sean Baker sai na dianteira e traz um filme exatamente sobre isso, com o maravilhoso Projeto Flórida

A trama é ambientada em um pequeno motel de modelo inn, onde o síndico Bobby (Willem Dafoe) atua como o faz-tudo para os diferentes residentes ali. Nosso principal núcleo é com a pequena Moonee (Brooklyn Prince), que tenta curtir a infância ao lado de suas amigas, mesmo com uma situação financeira ruim, algo que sua jovem mãe Halley (Bria Vanaite) tenta reverter das mais diversas maneiras.

Não é um filme definido por uma narrativa cheia de eventos ou reviravoltas, mas sim sobre relações de personagens. É quase um documentário povoado por atores interagindo normalmente, quase sem roteiro – que também é assinado por Baker -, capturando o estilo mais natural e espontâneo de cineastas como Richard Linklater. O grande acerto de Baker é manter tudo sob o ponto de vista de Moonee, de uma criança inocente que não tem noção do que realmente está acontecendo à sua volta; sua mãe começa a se prostituir em anúncios online, mas isso nunca é informado de maneira explícita, apenas por suposições e enquadramentos muito bem pensados; aquele que envolve a garotinha brincando na banheira, e um estranho acidentalmente entra no banheiro é um belo exemplo disso, e também pela câmera nunca sair de seu rosto, confuso com uma imagem que o espectador pode facilmente deduzir em sua cabeça.

A estética do pseudo-documentário também se traduz no domínio de Baker sobre a câmera. Raramente temos diálogos cortados no tradicional arranho de plano x contra plano, onde um corte mostra reação ou fala de outro personagem dentro de um diálogo, mas sim uma predominância por planos onde todos os personagens estejam no quadro, captando mais espontaneidade e naturalidade por parte da execução. Uma cena mais intensa como a discussão entre Bobby e Halley, por exemplo, rende um magistral plano sequência onde Baker segue a ação por diversos níveis do conjunto habitacional, passando por escadas, portas e culminando em um desfecho simplesmente sensacional; pensar que tudo isso foi devidamente ensaiado é quase uma surpresa, visto que parece tão natural e realista – sem falar no final, captado todo em iPhone (algo que Baker já havia feito em Tangerine), mas chegaremos a ele em alguns instantes.

Essa decisão garante momentos realmente preciosos em Projeto Flórida. Acompanhar Moonee e seu grupinho de amigos andando pelas ruas, com diálogos roteirizados que fluem como se fossem improvisados acaba fazendo com que o espectador crie um forte elo com aquelas figuras, e também pelo ambiente onde estão. Naquele em que talvez seja o mais bonito momento do filme, Halley e Moonee levam uma das meninas para comemorar o aniversário atrás do estacionamento do parque Magic Kingdom, para que possam cortar um bolinho e acompanhar os fogos de artifício estourando. Um sincero e tocante exemplo de encontrar pequenos momentos de felicidade dentro de um contexto opressor e infeliz, e que fica ainda mais catártico na arrasadora cena final, onde não só a pequena Prince oferece um dos momentos de atuação mais puros e genuínos que eu já vi em qualquer atriz mirim, mas onde Baker quebra todas as convenções e estruturas visuais estabelecidas no filme anteriormente, para uma conclusão memorável e digna de um conto de fadas.

Único ator profissional no elenco, Willem Dafoe também foi – infelizmente – a única lembrança da Academia nas indicações ao Oscar, que o indicou como melhor ator coadjuvante. Merecidamente, visto que o ator entrega uma performance simples, mas genuína e que se encaixa com o contexto naturalista elaborado por Baker. É o sujeito que aparenta ser ranzinza e impaciente, mas que revela momentos de doçura e simpatia que conquistam o espectador. Uma cena específica, na qual Baker até usa um belo plano longo, Bobby encontra um velho pedófilo observando as crianças do motel brincando em um playground, e a construção do ator para contornar a situação e proteger as moradoras é um dos momentos mais inspirados do filme, com Bobby bancando o tipo amigável, até abraçar uma postura rígida e agressiva para espantar o predador – novamente, algo que é apenas sugerido através de ação, principalmente o olhar fixo preocupado de Bobby ao notá-lo pela primeira vez.

Do restante do elenco, quem mais merece créditos – além de Prince, claro – é a também novata Bria Vanaite, que foi descoberta por Sean Baker através do Instagram, vejam só. A jovem não se parece e nem age como nenhum tipo que já vimos antes para essa caracterização, se assemelhando muito com pessoas reais que todos nós já conhecemos alguma vez na vida. É uma mãe irresponsável e despreparada, mas muito amorosa e preocupada com sua filha. É comum que, aqui e ali, Vanaite acabe saindo de uma ação anterior – uma briga, discussão – apenas para olhar sua filha e esboçar um sorriso tranquilizante. Sua química com Dafoe é outro ponto alto, com o veterano síndico agindo praticamente como sua figura paterna, e a já mencionada discussão entre os dois é aquilo que podemos definir como powerhouse, onde Bobby é rígido e mostra-se literalmente de saco cheio da hóspede, mas no fundo parece compreender sua situação.

Não espere uma história elaborada ou grandes malabarismos de roteiro em Projeto Flórida, mas se surpreenda com um filme divertido e que consegue capturar com perfeição um retrato de um nicho populacional muito específico. Mesmo vivendo na terra da Disney, vemos aqueles que vivem à sua sombra, e o mais bonito é ver como uma criança é capaz de encontrar os pequenos vislumbres de felicidade em um contexto tão decadente.

Projeto Flórida (The Florida Project, EUA – 2017)

Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Elenco: Brooklynn Prince, Bria Vanaite, Willem Dafoe, Christopher Rivera, Aiden Malik, Valeria Cotto, Mela Murder, Rosa Medina Perez
Gênero: Drama
Duração: 111 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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