Entre muitos clássicos modernos que a Nova Hollywood ofereceu aos cinéfilos, poucos foram tão significativos com a nossa realidade como Rede de Intrigas, um dos maiores trabalhos de Sidney Lumet. Apesar de já ter mais de quarenta anos, o longa continua atualíssimo com seu discurso satírico apontado sempre como “pura realidade” pelo próprio diretor. De tão falado, é inevitável que em algum momento, o espectador dará uma chance para o que o filme tem a dizer.
Através da história de um grande jornalista em outros tempos, Howard Beale (Peter Finch), vemos como uma simples medida de baixa audiência pode causa uma reação em cadeia que revoluciona – para pior, todo o sistema televisivo americano. A escrita de Paddy Chayefsky é inspirada por toques da Nouvelle Vague, principalmente do cinema dos anos 1960 de Jean-Luc Godard.
A Última Profecia
Desse modo, temos uma narrativa multifacetada, com quatro personagens centrais, carregando uma história visceral sobre as entranhas não só da televisão, mas como sua influência absurda no mundo moderno – até ser substituída pelos smartphones e redes sociais, nos dias de hoje. Se aproveitando do colapso psicológico de Howard Beale ao declarar que iria explodir sua cabeça durante o horário nobre do telejornal apresentado por ele, os dirigentes da emissora e diretores de jornalismo, após assassinarem a ética em favor da audiência, criam um programa exclusivo para o jornalista insano proclamar suas profecias e críticas diárias a tudo e todos: o Show do Beale.
Entretanto, mesmo que toda a origem do desenvolvimento da história parta do Show do Beale, Cheyefsky não trata o insano jornalista como o protagonista. Tudo é multifacetado em um grande quebra-cabeças movido por mãos invisíveis de investidores e bilionários. O roteirista é mesmo centrado no aspecto humano da obra para inserir as pesadas críticas contra a toxidade do meio televisivo e também dos departamentos de jornalismo sedentos por manchetes infelizes e miseráveis para atingir o ápice do sensacionalismo.
Tanto que se o espectador pensar na narrativa, verá que ela é extremamente simples. Esse nítido desinteresse pelo progresso da história é pontuado de modo explícito, já que Chayefsky recorre, de tempos em tempos, a elipses consideráveis, apenas informando as situações para o espectador através de um narrador over onisciente que esmiúça o âmago dos desafortunados personagens – influência notória de Godard para essa escrita.
O roteirista simplesmente assume um estilo descompromissado para a narrativa clássica do cinema, introduzindo uma junção de cenas que se comportariam com perfeição como uma potente peça de teatro. O início do filme já fornece toda uma apresentação sobre o passado de Beale rapidamente, estabelece sua amizade com o editor jornalístico premiado Max Schumacher (William Holden), um dinossauro na mídia que ainda valoriza a ética e o tratamento humano, contra a manipulação intensa da fria e psicótica workaholic diretora de programação da emissora Diana Christensen (Faye Dunaway).
Por se tratar de uma sátira, Cheyefsky faz diversas ironias em Rede de Intrigas. Em suma, o roteirista mostra como essas diversas peças do jogo nunca possuem controle sobre seus destinos, não importando qual hierarquia ocupam ou do quão descartáveis podem se tornar em questão de meras semanas. Esse atestado da relação de poder doentia é o que torna a escrita do roteirista tão fantástica.
Os personagens constantemente exercem algum tipo de opressão/manipulação sobre uns aos outros. Aliás, através do núcleo de Diana, há um comentário ácido genial sobre o quão fácil é desmontar uma ideologia oferecendo luzes no holofote e uma certa quantia de dinheiro. É também através desta personagem, a personificação completa do cenário televisivo, que temos as situações mais interessantes sobre relação humana que o filme oferece. Como a personagem é feita na proposta de ser totalmente gélida e amoral, seu núcleo romântico com Max, já casado, traz diversas catarses poderosas sobre o quão destrutivo pode ser nossa relação com a TV.
Basta reparar a proposta de Chayefksy para o espectador: ele afirma que ela é como a TV no clímax de sua narrativa pessoal. Portanto, basta estudar suas relações com outras pessoas até ali: seu caso amoroso destrói um casamento de anos e desestabiliza a estrutura familiar de Max, ela nunca oferece nada de bom a ninguém, manipula seus colegas, não tem sequer uma conversa com a mina de ouro do programa que dirige (o Show de Beale), é indiferente a dor e a alegria alheia e simplesmente se livra dos outros como se fosse algo tão banal como trocar os canais do televisor.
Mesmo se portando como a verdadeira antagonista e uma mestre do que faz, a personagem também é uma das mais complexas por essa face maléfica e apática tão bem retratada por Dunaway. Já Max é apenas um humano, completamente impelido por suas paixões e totalmente falho por sua falta de cinismo que chega ao ponto de ruir completamente sua posição de referência ética para o espectador – afinal, é justamente ele que trai sua mulher e a faz sofrer durante um diálogo excepcional sobre divórcio.
A diluição da narrativa, subversão da estrutura clássica na função dos personagens e comentário crítico social já seriam mais que suficientes para tornar Rede de Intrigas algo além do memorável, mas a verdadeira pérola é sempre abordada pelo roteirista de tempos em tempos: o jornalista insano Howard Beale. Com Peter Finch absolutamente inspirado e enérgico para trazer à tona a característica apocalíptica do personagem, temos diversos pequenos shows que mostram a força manipuladora da televisão.
Beale de fato é o personagem mais trágico do filme e nele reside a crítica mais poderosa. Beale acha que foi “tocado” por uma força maior e logo se torna um profeta vociferando contra a mídia e a televisão. Em primeiro instante, é visto como ameaça, mas logo que a audiência sobre tremendamente, o sistema o abraça para ser favorecido pelo lucro que ele gera. Beale então ganha seu próprio show no meio que tanto crítica e desacredita também conseguindo resultados inacreditáveis ao manipular as massas que assistem a suas profecias diariamente.
Em pouco tempo, o programa se torna um circo completo com cartomantes e outros elementos que flertam com o sobrenatural. O showman só se torna uma ameaça novamente quando coloca em risco uma negociação bilionária do conglomerado que controla a emissor. É justamente nesse ponto de virada que o manipulador se torna manipulado após um homem astuto entrar na mesma sintonia que ele para jogar o talento de discurso à favor dos poderosos chefões ocultos, os verdadeiros ventríloquos.
Com isso, o roteiro se encaminha para o final, criando uma cadeia de manipuladores no qual até mesmo os espectadores são hipócritas, pois são movidos pelo discurso contra indústria de Beale, mas que mesmo assim, sintonizam diariamente para assistir ao profeta em busca de algum entretenimento, mesmo que mais consciente.
Chayefsky constrói um universo tão rico e crível que consegue sustentar o teor de seu discurso até hoje, mas é impossível ignorar as adições absolutamente geniais da direção de Sidney Lumet. É bastante fácil se questionar o motivo do qual tanta gente comenta sobre o trabalho do diretor em Rede de Intrigas, afinal se trata de uma direção sútil e pouco expressiva com a câmera em muitos momentos.
Mas é justamente pela abordagem teatral, tão valiosa em engrandecer as atuações excepcionais do longa, que seus planos se transformam em uma janela para a realidade. O que comanda aqui é totalmente a encenação do movimento dos atores. Lumet apenas cria fatidicamente alguma atmosfera cinematográfica quando é preciso.
Esses momentos são elevados imediatamente que conseguem tornar as cenas simplesmente assustadoras de tão poderosas. Em particular, duas me deixam mesmerizado: a do discurso definitivo de Beale que consegue tirar reações espontâneas dos espectadores que se colocam a gritar a plenos pulmões que “estão putos com tudo isso” e a do encontro de Beale com o chefe supremo da emissora.
Ali, Lumet busca trazer planos absurdamente abertos para afastar Beale da “divindade” do sistema e do capital feroz enquanto o homem tutela seu empregado sobre o mecanismo verdadeiro do mundo que pouco se importa com ideologias, mas sim com o lucro das relações comerciais. O diretor utiliza uma iluminação verdadeiramente sombria, se valendo da contraluz para inferir algo diabólico se instalando no lugar, enquanto o pobre jornalista é pouco a pouco iluminado pela “palavra”.
O último momento cinematográfico acontece justamente na cena final do longa, envolvendo uma montagem paralela pouco atraente em um efeito proposital, tratando o ocorrido com uma banalidade completa. Isso logo é justificado quando Lumet retoma o mesmo plano que abre o longa: uma tela preta dividida em quatro televisores que exibem canais simultâneos.
O efeito devastador da completa falta de foco do ruído imagético e sonoro evoca o quão triviais as maiores tragédias podem se tornar a ponto de tornar a humanidade tão indiferente e apática quanto Diana, mesmo que tenhamos plena consciência do nível absoluto da intoxicação causada por esses meios.
A Imbecilização do Espectador
Muitos clássicos podem atingir esse status injustamente, mas não se trata do caso de Rede de Intrigas. Essa comédia de erros escrita com elegância e muito afinco criativo por Chayefsky e dirigida de modo realista por Lumet conseguiu inspirar uma geração inteira de cineastas e roteiristas que estavam por vir em anos posteriores.
Nesse comentário crítico e, ironicamente, premonitório sobre o meio televisivo e a cultura de massa que mortifica o espectador, rapidamente uma epifania verdadeira será causada. Ao término do longa, não é preciso afirmar que está puto da vida e cansado de tudo isto. Isso já está bem claro. A segunda catarse que precisa ocorrer é justamente a mais sutil do longa: todos esses estímulos rasos nos tornaram completamente imbecis. E não há absolutamente nada que podemos fazer para reverter a situação. Ainda mais hoje.
Rede de Intrigas (Network, EUA – 1976)
Direção: Sidney Lumet
Roteiro: Paddy Chayefsky
Elenco: Faye Dunaway, William Holden, Peter Finch, Robert Duvall, Wesley Addy, Ned Beatty
Gênero: Drama
Duração: 121 minutos.
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