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Crítica | Roma – Coração aberto

Da intimidade de Y Tu Mamá También, passando pelos estrelares Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (provavelmente o filme da série com melhor requinte estético) e Filhos da Esperança, até o espetaculoso Gravidade, Alfonso Cuarón trilhou, até agora, uma carreira notória. Mas é com Roma, ganhador do Leão de Ouro em Veneza que será distribuído pela Netflix que o mexicano consegue reafirmar a versatilidade e a potência da sua câmera.

Para quem se impressionou com as técnicas de Gravidade, mas não aguentou as “partes faladas” do filme, pode conferir em Roma um balé melhor orquestrado. Sai o ambiente espacial, reproduzido com verossimilhança pelos efeitos digitais, para entrar uma ficção realista, baseada nas memórias do próprio diretor sobre o México, em 1970. Realidade essa, inclusive, que retoma um presente contínuo próximo ao do Brasil, na maneira como são representadas as relações de classe.

Ao contar a história da doméstica e babá Cleo (Yalitza Aparicio) que trabalha para uma família de classe média, Cuarón experimenta misturar a grandiosidade memorialística de Fellini (em Amarcord e também em seu próprio Roma) e o olhar social de Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicleta) com requintes contemporâneos.

Essa visão mais fresca surge na observação dos gestos cotidianos, principalmente no ambiente doméstico. Do pai que sai para uma viagem à trabalho para o Canadá (mentira deslavada), as rivalidades entre os irmãos à mesa, ao recolhimento das fezes do cachorro no quintal, Cleo atravessa as situações como personagem principal e, ao mesmo tempo, testemunha das mudanças na sociedade. Ao trabalhar com essas duas aberturas, o diretor permite que acompanhemos uma história emocionante e pessoal (dos seus passatempos, da sua gravidez inesperada ao seu papel de mãe na casa em que trabalha) e uma outra, expandida, ligada à efervescência política do país.

O principal mérito do filme é saber desconstruir uma visão muito forte das relações empregada-patroa, em que aquela é sempre dita como “parte da família”, só para que os pequenos gestos de violência possam ser ainda mais latentes (Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, explora isso).

Em certa altura do filme, porém, a patroa, abandonada pelo marido, chega bêbada em casa e afirma para Cleo: “Não adianta o que eles falem, estamos sempre sozinhas”. Roma prioriza uma questão pessoal (há um reconhecimento entre as mulheres, destaque para o senso de maternidade – outra ligação irônica com Roma, a cidade) filtrada pelos comportamentos sociais. São momentos bem evidentes, como o fato de Cleo conversar com outra empregada da casa misturando o espanhol à língua indígena mexicana, ou o da protagonista manter-se quieta durante a maior parte do filme (conversando apenas com seus olhares), ou ainda da prova de fé que realiza sem alarde em meio a uma multidão.

As imagens límpidas, em preto e branco, são conduzidas com suavidade e rigor, por planos com uma média de duração grande. Predomina, por todo o filme, movimentos horizontais, como se a transmitir um status quo, ironicamente, da verticalidade das políticas cotidianas. Em uma cena, por conta de uma estripolia de um dos garotos, Cleo tem que percorrer todo o andar térreo da casa em que trabalha e ir apagando uma por uma as luzes da casa. A câmera acompanha seus passos, fazendo uma trajetória em 360 graus.

Mas nem só de delicadeza vive Roma. Cuarón sabe usar da imersividade do cinema (a potência do som, principalmente) para montar cenas de violência desesperadoras, que evocam o horror do massacre de Corpus Christi. O diretor, que também assina a edição e a fotografia, sabe alternar entre planos gerais (da massa) para close-ups que conversam perfeitamente com o tom épico do filme. Outros momentos, como o de um tiro ao alvo esportivo e o incêndio na floresta no dia de Ano Novo, retomam uma grandiosidade felliniana, atravessada pela melancolia monocromática.

Nesse filme que se constrói pela superposição do grandioso e do cotidiano, da esperança que ainda vive entre as ruínas de um terceiro mundo em ebulição, diga-se, sobram alegorias gritantes. Mas sobra, em ainda maior evidência, a performance austera de Aparicio, seus olhares e frases lacunares, sempre reveladoras. Para acompanhar uma figura tão rica, a câmera de Cuarón surge enérgica, disposta a quebrar a ordem das coisas e dar a chance da personagem “ascender”, para que, finalmente, nós possamos firmar uma relação mais horizontal com ela, nossa Roma.

*Esse filme foi visto durante a 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Roma (idem, Mexico, EUA – 2018)

Direção: Alfonso Cuarón
Roteiro: Alfonso Cuarón
Elenco: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García e Verónica García
Gênero: Drama
Duração: 135 min

https://www.youtube.com/watch?v=ZSI2VLwPFWw

Redação Bastidores

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