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Crítica | Samurai Jack – 1ª Temporada

Pergunte-me o nome do melhor realizador de animação infantil ocidental que lhe respondo no mesmíssimo segundo: Genndy Tartakovsky. Ele não só colaborou criativamente com clássicos como As Terríveis Aventuras de Billy e Mandy, As Meninas Super-Poderosas e A Vaca e o Frango, mas como criou obras que viraram marcos para as animações infantis feitas para televisão.

Tartakovsky é responsável por criar um dos desenhos que virou um bastião para o Cartoon Network nos anos 1990: O Laboratório de Dexter. O sucesso foi tanto que o canal permitiu a produção de um projeto antigo e extremamente autoral: Samurai Jack. O resultado? Uma obra eterna extremamente adulta e violenta que somente poderia ter acontecido no começo dos anos 2000 antes que desenhos cínicos, nonsense e coloridos dominassem a grade do canal.

O Limite é a Imaginação

O pitch de Samurai Jack é extremamente audacioso: calcar sua série em uma première com um longa-metragem mostrando a jornada tortuosa de um samurai que enviado ao futuro por um demônio malandro que joga a Terra em desgraça por milênios.

Pela união dos cosmos e do espirito corajoso dos diretores do canal, o desenho foi aprovado. Em 2001, foi iniciada a longa história de Jack que só terminará agora em 2017.

Após um eclipse despertar o antigo demônio Aku, aprisionado por décadas graças a um feitiço poderoso, o Japão cai em desgraça. Com o ataque do furioso demônio invulnerável, o Imperador pede que sua mãe fuja com seu filho dando início ao antigo plano em tornar a criança o herói que tem o destino de destruir a poderosa criatura com a ajuda da única lâmina que pode feri-lo.

Fugindo com sucesso, o pequeno menino aprende artes marciais em diversas regiões do mundo inteiro dominando montaria e diversos estilos de luta. Mestres de Roma, Noruega, Zimbábue, Mongólia, China, Egito, Rússia trabalham para fazer do garoto sem nome o melhor dos guerreiros que a história já testemunhara. Completado seu treinamento de uma vida inteira, o homem parte de volta para o Japão já completamente destruído por Aku que escravizou a todos incluindo o Imperador.

Partindo para a luta de sua vida, o samurai triunfa, porém, antes do golpe derradeiro, o transmorfo Aku abre um portal dimensional mandando o herói diretamente para um futuro distópico no qual o demônio virou o lorde supremo da Terra que, agora, virou um porto comercial galáctico repleto de alienígenas e bandidos de todo o universo. No futuro, o samurai encontra seu nome: Jack.

Imbuído pelo destino e somente com a espada como aliada, Jack parte para encontrar algum modo de retornar ao seu tempo e dizimar Aku de uma vez por todas. Porém, sua determinação encontrará muitos obstáculos neste futuro ingrato e repleto de malícia.

Sutileza brutal

Logo no segundo episódio de Samurai Jack é possível perceber a quão ambiciosa e genial é essa realização de Tartakovsky. O contraste imediato do futuro dominado por Aku com o longínquo passado é imediato, assim como já percebemos uma das primeiras referências da animação: Akira. O design da grande metrópole, a marginalização, as vestes e hábitos dos personagens vem diretamente do anime sensacional de Katsuhiro Ôtomo.

Já na cena seguinte, Tartakovsky começa a explorar verdadeiramente a ação do desenho com uma luta grandiosa em uma rave ao trabalhar com linguagens de western spaguettis no melhor molde de Sergio Leone. Tartakovsky quer que comparemos Jack com o Estranho Sem Nome e realmente consegue causar esse efeito para o justiceiro silencioso.

Findada a luta, três cachorrinhos falantes clamam pela ajuda de Jack para que os libertem da escravidão de Aku. Com Jack partindo para o campo de escavação que os cães trabalham, arquiteta um plano e aguarda pela luta prometida contra uma legião de drones que avançam para matar todos ali.

Novamente, há outra ótima homenagem nessa pequena estrutura do forasteiro contratado por populares para salvá-los da tirania de um opressor muito mais poderoso que eles. Não reconhecem? Trata-se de Os Sete Samurais de Akira Kurosawa. Em apenas três episódios, Tartakovsky já consegue homenagear mestres supremos do cinema como uma forma de agradecimento pela inspiração no auxílio da criação de sua obra.

No terceiro episódio, totalmente concentrado na elaboração do plano e execução da luta, praticamente não existem diálogos. Tartakovsky vira um mestre visual ao conseguir aliar pequenas doses de humor, tensão, sacrifício, dor e perda com imagens extremamente simples, mas muito elaboradas – como o olhar incrédulo de Jack para os cãezinhos crucificados punidos por Aku.

Ao mesmo tempo que calca o estilo narrativo fortemente baseado no poderio visual da contemplação e da simbologia, Tartakovsky dá um show animado para o clímax de sua première: a luta é estupenda e uma das melhores da história do desenho. Ressalto a importância das cores aqui – e também no seriado como um todo.

Nessa sequência, o vermelho amarronzado predomina. O deserto maldito de Aku só oferece desgraças e seus minions totalmente pretos representam a extensão de sua vileza. Jack é contraste perfeito para quebrar a hegemonia tirânica: um cavalo alienígena albino e sua roupa branca simbolizam a esperança que todos residem em sua figura.

Brutalidade para Crianças

A arma de um samurai é sua katana. E armas brancas geralmente fazem um estrago sanguinolento. Como raios colocar tanta violência em uma animação dita infantil? Novamente, essas coisas mágicas de 1990 e começo dos anos 2000 acontecem. A violência gráfica é velada trocando os personagens que seriam orgânicos os transformando em robôs, ciborgues ou androides.

Mesmo assim, Tartakovsky é inteligente e sabe-se lá como, conseguiu convencer o Cartoon a aprovar as cores internas de muitos dos oponentes que Jack trucida e mutila. Já nessa grande batalha do terceiro episódio, toda vez que Jack corta os besouros mecânicos, litros de graxa inundam o cenário – substituindo sangue, obviamente. Entretanto, Tartakovsky vai além e consegue fazer desenhos de figuras humanoides sendo mutiladas.

Repare que toda vez que isso acontece, a parte interna dos robôs é bastante avermelhada, além de alguns fios e estruturas serem semelhantes a ossos e órgãos. Ou seja, há um gore muito disfarçado, mas há! E isso agrega espetacularmente ao seriado.

Sobre a ação, é impressionante o trabalho dos animadores de conferirem um estilo muito próprio de luta para Jack, além de se inspirarem em lutas de animes muito famosos como Yu Yu Hakusho e Dragon Ball Z. A influência de Dragon Ball é tamanha que consegue render um dos melhores episódios da série inteira: Jack vs Mad Jack.

Tomando como referência o poder desse episódio, é impressionante como Tartakovsky consegue sintetizar um conflito poderosíssimo através das imagens e da cor. O olhar do diretor é fundamental nesse episódio que merece uma análise por si só. Em seu lance mais genial, conforme a luta avança, Tartakovsky sabiamente faz o espectador confundir o mocinho Jack com o vilão Mad Jack, os transformando em uma coisa só, já que o ódio passa a consumir o Samurai. Simples, mas genial.

Importante ressaltar aqui a principal assinatura de Tartakovsky para Samurai Jack: o uso excepcional de Split screen, a tela dividida. Mesmo limitado com a razão de aspecto 4:3 dos televisores da época, o diretor consegue picotar a tela de diferentes formas. Seja para canalizar a atenção do espectador para uma porção da tela, para mostrar diversas reações de um mesmo acontecimento ou, mais comumente, para reiterar a ação. O estilo casa organicamente com a proposta do seriado o tornando extremamente ritmado e fluído na montagem.

Acredite, o tempo voa quando assistimos a Samurai Jack.

Uma narrativa de eras

Samurai Jack também aborda temas complexos seguindo a simplicidade característica da série. Nessa primeira temporada, apenas a season finale deixa a desejar e ainda assim se trata de um episódio importante com referências que atingem até O Iluminado. Apesar de parecer ter um caráter episódico, que fecha em si mesmo, a trama da primeira temporada sempre avança aos poucos a cada novo episódio.

Muitos deles se concentram na procura de Jack por um artefato ou magia que possam fazê-lo retornar para seu tempo a fim de destruir Aku impedindo a realidade do futuro que ele vive. Na maioria das vezes, mesmo que involuntariamente, Jack acaba em um povoado o libertando da tirania de Aku ou de outros seres – há até mesmo um episódio fenomenal sobre escravidão e desarmamento.

Em outros, já centrados somente na busca de um artefato – clássicos mcguffins, há sacadas estupendas como os excelentes episódios no qual Jack se apaixona por uma companheira suspeita chamada Ikra – uma das belas homenagens aos filmes noir e femmes fatales, ou o antológico episódio dos arqueiros cegos onde vemos uma pegada Frank Miller ainda mais poderosa e inteligente.

Estruturas muito simples que exigem poucos diálogos do protagonista que apenas escuta a exposição de personagens verborrágicos como o Escocês no ótimo episódio que pega influências dos clássicos Acorrentados e Amargo Pesadelo. Os coadjuvantes cativam bastante, mas é interessante como conquistamos rápida empatia com Jack, um personagem tão calado. Os momentos silenciosos, seus valores e os gestos delineados pela escrita e direção de Tartakovski conseguem gerar a empatia necessária deixando a mensagem de cada episódio extremamente pura para os espectadores.

Experiência Cinematográfica

Com Samurai Jack, temos um dos primeiros desenhos verdadeiramente cinematográficos feitos exclusivamente para a televisão. A preocupação com poderio visual aliados a uma decupagem de ação impecável é algo que não se vê mais atualmente. Não somente por isso, mas pelo cuidado de cores e traços diferentes para cada novo ambiente, além da criatividade exímia dos desenhistas na concepção de novos personagens, alienígenas e veículos.

A história de Jack não conquista apenas por sua qualidade inquestionável, mas também pelas referências tão bem sacadas que vão de Quentin Tarantino até mesmo a Stanley Kubrick e George Lucas encaixadas muito organicamente por Genndy Tartakovski. Foi, é e sempre será uma criação estupenda que merece estudos muito mais aprofundados do que essa mera crítica pode oferecer.

Samurai Jack – 1ª Temporada (Samurai Jack – Season 1, EUA – 2001)
Direção: Genndy Tartakovsky, Randy Myers, Rob Renzetti, Robert Alvarez

Roteiro: Genndy Tartakovsky, Paul Rudish, Chris Reccardi, Chris Mitchell, Mark Andrews, Bryan Andrews, Charlie Bean, Carey Yost, Mike Manley
Elenco: Phil LaMarr, Mako, Jennifer Martin, Danny Mann
Duração: 300 minutos.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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