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Crítica | Sem Amor – A Doença do Ser Humano

Não é muito difícil nos depararmos com filmes sobre crianças desaparecidas/ sequestradas – a temática já rendeu dezenas de obras ao longo dos anos e, apesar dessa quantidade, poucas foram as que demonstraram abordagens diferenciadas, como foi o caso de Os Suspeitos, de Denis Villeneuve, por exemplo. Sem Amor, mais novo longa-metragem do russo Andrey Zvyagintsev, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no entanto, apenas utiliza essa premissa para trabalhar (e criticar) os relacionamentos modernos e a nossa própria falta de empatia, independente de sua causa.

Enquanto muitos podem enxergar esse filme como uma crítica à Rússia atual, não posso deixar de enxergar nele um reflexo da humanidade nos tempos de hoje, um estudo sobre como temos negligenciado aqueles mais próximos de nós, a favor de ganhos pessoais, seja uma nova paixão, dinheiro, estabilidade, enfim. Temos esquecido o essencial diante de nossos olhos e focado no que é mais atraente e, na maior parte dos casos, dispensável – aqui incluo a constante atratividade da tela do celular, o que não deixa de ser uma grande ironia, se considerarmos que essa crítica pede justamente que o leitor olhe para uma tela e fuja do “mundo real”.

São olhares críticos como esse que se fazem tão necessários nos dias de hoje, nessa sociedade do espetáculo, que tem como auge da importância o próximo filme de herói a ser lançado – e aqui o filme de herói pode ser trocado pelo objeto de seu maior interesse, na maioria das vezes. O roteiro de Oleg Negin e do próprio Zvyagintsev acerta em cheio ao utilizar a figura da criança para criar o impacto de sua mensagem, afinal, que premissa é mais facilmente relacionável do que a de uma criança desaparecida? Como dito antes, porém, esse ponto funciona simplesmente como o veículo da mensagem e não ela em si.

Tal escolha do texto fica bastante clara pela maneira como a narrativa é construída no seu primeiro ato. Conhecemos o casal Zhenya (Maryana Spivak) e Boris (Aleksey Rozin) no meio de sua problemática separação. Ambos já partiram para outras paixões e parecem relegar o filho, Alyosha (Matvey Novikov), a segundo plano, se preocupando mais com seus novos interesses românticos e empregos do que com a criança. A obra gasta um bom tempo de sua duração total para construir esse cenário, mostrando o ex-marido e ex-mulher em seus respectivos ambientes de trabalho e com seus novos companheiros, propositalmente se esquecendo do jovem garoto, que é visto por último indo para a escola, com bastante pressa, diga-se de passagem.

Nesse ponto, no entanto, já foi criada a suspeita de seu desaparecimento – em um trecho de partir o coração, vemos ele descobrindo sobre a separação dos pais, enquanto se esconde atrás da porta. Dessa forma, o texto praticamente obriga o espectador a se perguntar “e a criança?”, enquanto acompanhamos longas sequências exclusivas do pai e da mãe.

Naturalmente que essa escolha do texto, propositalmente burocrático, primeiro mostrando um longo trecho de um personagem, para, em seguida, pular para o outro, é essencial para que seja criada a ilusão de passagem de tempo – de fato, nem um dia se passou, mas, para nós, parece foram semanas desde que os pais estiveram com o filho, evidenciando a negligência para com o garoto, que, especialmente nesse momento, precisava de atenção, justificando, assim, sua fuga e desaparecimento, que, enfim, coloca a narrativa em sua plena velocidade.

A partir daí, o que poderia facilmente continuar como as típicas tentativas dos pais de encontrar a criança, acaba focando ainda mais na relação dos dois, aumentando nosso choque, ao passo que os vemos, aparentemente, continuando a se preocupar com si próprios, ao invés do filho desaparecido. Dessa maneira, gradualmente, Negin e Zvyagintsev criam uma atmosfera não só real, como deprimente, que nos força a pensar sobre nossas próprias ações e aquelas das pessoas à nossa volta. A obra estilhaça por completo a empatia do ser humano e nos retrata como figuras problemáticas, com uma abordagem bastante pessimista, que foge dos costumeiros clichês de filmes sobre casais se separando.

A própria fotografia e as cores mais frias contribuem para esse sentimento, tirando qualquer vislumbre do calor das relações humanas, substituindo pela solidão e o sofrimento. A imagem, como os personagens centrais, parece estar doente, como se estivesse retratando o mais sombrio dos tempos, como se, de fato, não houvesse qualquer esperança – ponto bem salientado pela narrativa, que se torna cada vez mais pesada, enquanto o casal que busca o filho passa a entender plenamente a situação na qual se encontram.

No meio dessa construção, contudo, a obra acaba provocando constantes rupturas no seu ritmo – não se trata da já falada proposital escolha de evidenciar a passagem de tempo e sim uma divisão bastante clara entre os diferentes “estágios” da busca. Tal fator, embora funcione para mostrar o trabalho dessa investigação, acaba quebrando, ocasionalmente, nossa imersão, basicamente pedindo que o espectador se force a continuar atento.

O esforço, porém, não é tão grande assim, visto que toda a atmosfera construída por Andrey Zvyagintsev mais que dá conta desse recado, mantendo uma profunda angústia em nós, enquanto a narrativa assume seu estado mais depressivo. Dessa maneira, Sem Amor mais do que prova que seu título resume a obra perfeitamente, tudo enquanto utiliza a premissa de uma criança desaparecida para evidenciar o quão carente de amor está o nosso mundo. De fato, essa falta de empatia acaba sendo a grande doença do ser humano.

Sem Amor (Nelyubov – Rússia/ França/ Alemanha/ Bélgica, 2017)

Direção: Andrey Zvyagintsev
Roteiro: Oleg Negin, Andrey Zvyagintsev
Elenco: Maryana Spivak, Aleksey Rozin, Matvey Novikov, Marina Vasileva, Andris Keiss, Aleksey Fateev, Sergey Borisov, Natalya Potapova, Anna Gulyarenko
Gênero: Drama
Duração: 127 min.

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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