Muita gente deve gostar de algumas obras cinematográficas independentes americanas nos dias de hoje. Porém, poucos devem se perguntar quando que esse modelo inspirador de produção se iniciou. Com alguma segurança, é possível afirmar que John Cassavetes foi o primeiro cineasta independente americano com a realização de Sombras em 1959, seu primeiro filme, com apenas quarenta mil dólares de orçamento.
Também é bastante seguro afirmar que Cassavetes seria um correspondente americano do que ocorreria na Nouvelle Vague com Jean-Luc Godard e François Truffaut. Cassavetes simplesmente transpôs a linguagem teatral do improviso para o Cinema o que certamente rende um experimento interessante e bastante vanguardista, além de ser um filme que desafia os limites do controle de um diretor/produtor já que tudo era “um improviso com os atores tentando superar problemas e rapidamente encontrando outros ainda maiores”, segundo o próprio diretor.
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Com a inexistência de um roteiro completo, Sombras é um punhado de cenas com um punhado de pessoas conversando sobre cultura, arte e jazz enquanto experimentam conflitos amorosos intensos. Essa vibe de diálogo corrido improvisado e imprevisível em bares, festas e nas charmosas ruas da Nova Iorque dos anos 1950 conferem sim uma atmosfera muito similar aos filmes de Jean-Luc Godard realizados em 1960 como Masculino-Feminino, Bando à Parte e Viver a Vida.
O interessante é que Cassavetes foi totalmente original na criação dessa atmosfera urbana que flerta com as coisas mundanas do cotidiano enquanto apresenta algumas verdades sobre a vida em conversas intelectuais. Entretanto, apesar da dedicação em diversas cenas desconexas que mostram as opiniões desconjuntadas dos personagens beatniks, é possível identificar um fiapo narrativo para Sombras.
No caso, novamente vemos o estilo pioneiro e corajoso do cineasta em focar justamente em relações amorosas entre brancos e negros em pleno momento de segregação racial nos Estados Unidos. Lelia, uma garota branca, irmã de dois homens negros, se envolve romanticamente com Tony, um racista velado que não faz a menor ideia que sua namorada pertença a uma família afro-americana.
Porém, como Sombras é puro improviso textual, isso logo sai de foco apesar do tremendo potencial de desenvolvimento. Aliás, essa constante mudança narrativa deixa o longa verdadeiramente caótico e confuso mudando da água para o vinho em questão de apenas uma cena. Então é impossível compreender de fato esses personagens que surgem e vão embora assim como… sombras. Tudo se torna esquecível e superficial por conta da escolha estética. Aliás, o esquema do improviso entra em contexto com a pegada firme sobre o jazz que Cassavetes evoca com os irmãos de Lelia, a “protagonista”.
Como o jazz é um estilo musical marcado pelo improviso no qual cada músico tem seu momento de brilhar e criar livremente no meio da composição, o mesmo ocorre nos diálogos de Sombras e na estrutura narrativa. É curioso que o “conteúdo” do longa então seja livre enquanto Cassavetes se impõe bastante como autor com a câmera.
No caso, apesar de usar o filme muito granulado de 16mm e ter nítidas dificuldades com a iluminação e montagem abrupta, o diretor preserva enquadramentos bastante “quadrados” pouco condizentes com as invenções e experimentos corajosos demonstrados até então. Cassavetes trabalha bastante com a câmera no tripé, encenação simples para as conversas, quase nunca se arriscando a movimentar o instrumento e conferir dinamismo visual para o filme pouco atraente nesse sentido.
O pesadelo técnico de Cassavetes é compensado pelo trabalho razoável de alguns bons atores estreantes que, às vezes, acidentalmente olham para a câmera, e também pelo bom gosto musical bastante presente na obra. Também já temos intensa presença dos closes muito próximos dos atores que seria uma marca registrada do estilo de sua direção.
Pioneirismo é sinônimo de Qualidade?
No caso de Sombras, a resposta é um retumbante e sonoro, não. Há sim muita importância histórica para essa estreia pioneira e corajosa de Cassavetes como diretor de cinema, mas sua marca autoral do improviso não teve um início minimamente razoável pela narrativa caótica, montagem grosseira e um desleixo técnico notável que certamente não vai conseguir capturar a atenção de diversos espectadores.
Fica o respeito pela abordagem de um tema tratado como tabu pela Hollywood da época que demoraria anos para realizar o estupendo Adivinhe Quem Vem Para Jantar que trata de um conflito similar ao de Sombras, mas com muito mais substância e firmeza. Largado ao destino, Cassavetes realiza uma estreia histórica que não chega nem perto de apresentar a qualidade que conferem para sua grandeza no cenário do Cinema Americano. Seja visto em 1959, seja visto hoje, Sombras ainda é uma obra totalmente desconexa, mas que deu origem a um novo frescor cinematográfico permitindo que outros realizadores executassem suas ideias com mais competência. Nem todo mestre, infelizmente, nasce genial.
Sombras (Shadows, EUA – 1959)
Direção: John Cassavetes
Roteiro: John Cassavetes
Elenco: Ben Carruthers, Lelia Goldoni, Hugh Hurd, Anthony Ray, Dennis Sallas, Tom Reese
Gênero: Drama, Romance
Duração: 81 minutos