Iniciar um texto tentando exaltar a grandeza de Billy Wilder para o cinema a essa altura da história apenas soaria como “encheção de linguiça” desnecessária, deixo apenas suas inúmeras obras de arte, que fez ao longo dos anos em sua carreira, responderem por si mesmas. O fato é que é muito difícil encontrar em um desses filmes um exemplo onde o brilhante cineasta se deixou tropeçar nos aspectos de ótima roteirização e rica construção de personagens pelos quais ele sempre foi tão bem reconhecido e aclamado. Testemunha de Acusação pode não ser, infelizmente , o mais lembrado, mas com certeza serve de um grande exemplo de sua maestria e um de seus vários ótimos filmes que raramente são mencionados e muito merecem ser conhecidos.
A trama tem início quando Leonard Vole (Tyrone Power) é preso e intimado sob a acusação de ter assassinado uma rica viúva de meia-idade e logo pede ajuda e apoio a Sir Wilfrid Robarts (Charles Laughton), um astuto e resmunguento advogado veterano, que concorda em defendê-lo mesmo estando se recuperando de um ataque do coração quase fatal e supostamente está em uma dieta, que o proíbe de ingerir bebidas alcoólicas e de se envolver em casos complicados. Mas a atração pelas cortes criminais é algo muito forte para ele, especialmente quando o caso é bem difícil. Ainda mais com o único álibi de Vole sendo o testemunho da sua esposa, Christine Vole (Marlene Dietrich), uma mulher misteriosa, fria e calculista. A tarefa de Sir Wilfrid fica praticamente impossível quando Christine Vole concorda em ser testemunha, não da defesa, mas da acusação.
Claro que, mesmo nesse caso, ocorre o triste fato de que alguns, hoje em dia, apenas vem considerar Testemunha de Acusação, injustamente, como apenas sendo uma mera comédia dramática indicada ao Oscar e que seu diretor possa apenas o ter feito no modo automático acadêmico. De fato, o filme pode talvez não se igualar mesmo ao lado de outras de suas obras-primas como Crepúsculo dos Deuses, Se Meu Apartamento Falasse, Farrapo Humano, Pacto de Sangue ou A Montanha dos Sete Abutres. Mas, como já dito, é Billy Wilder em seu melhor estado, então se o resultado sair algo menos do que eficiente, então não se trata mesmo de ser um filme com sua assinatura. Que mostra aqui estar em domínio completo de sua técnica de compor e construir uma história com um roteiro bem estruturado e personagens no mínimo interessantes.
Isso se reflete de tantas maneiras diferentes ao longo do desenrolar da trama. Desde o jeito e forma com que ele constrói o enredo, oras lentamente conciso e direto em seus diálogos quase teatrais. Remodelado com longas e contínuas transições narrativas mantendo um nível impressionante de envolvimento, demonstrando sempre o intuito de Wilder em manter um texto e encenação quase que teatral com trabalho de câmera sempre fluída e suas tomadas longas invisíveis que atravessam os cenário como uma lenta faca de manteiga.
Mas conseguindo variar em momentos pontuais com trechos e passagens em flashbacks e narração em off como no relato de Leonard sobre a velha matriarca que o acolhera como amante, quanto na apresentação do passado da personagem de Christine, com Marlene Dietrich se mostrando como a óbvia representação da femme fatale da vez (fazendo até frente à inesquecível Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue), venenosa em suas palavras e letal em suas intenções, mas com mais camadas mais humanas do que aparentam à primeira vista.
Que relembram assim os toques do cinema Noir, sempre usuais que Wilder implementa em seus filmes. A mais óbvia sendo na forma com que seus protagonistas sempre aparentam estar no meio de uma situação de corrida contra o tempo para salvarem a si mesmos, ou nesse caso a de outrem. Como também a complexidade intrínseca que compõem as características dos personagens em volta do Sir Wilfrid, com uma boa linha tênue de mistério sendo construída progressivamente. Refletido também na sua riquíssima cenografia que se usufrui de lugares fechados recheados de vida nos mais pequenos detalhes no cenário.
Tome o escritório do Sir Wilfrid como exemplo disso, onde quase 75% do filme se passa. Um espaço que define e constrói seu riquíssimo personagem por completo. Desde os pequenos quadros e diplomas pendurados em suas paredes ou os adereços que guarda na mesa como sua bebida e charuto que toma escondido da enfermeira Miss Plimsoll (uma ótima Elsa Lanchester), como também as trocas de farpas e tiradas cômicas que tem com a jovem enfermeira e seus assistentes no escritório. Sempre com um humor orgânico preciso e afiado, a lábia cômica de Wilder nunca se refletiu tão bem em outro de seus personagens como faz em Wilfrid de Laughton, que poupa elogios do quão bem está (como sempre). Que junto de Wilder dão vida e criam a essa espécie de Sherlock Holmes versão advogado e a Miss Plimsoll sendo sua fiel Watson.
Uma perfeita mistura de uma trama de mistério enclausurado no meio urbano, junto de perfeitos toques do humor cínico de Wilder com uma estrutura teatral em sua cenografia que fazem perfeito jus ao tom de uma obra de Agatha Christie, no qual coincidentemente a história aqui é adaptada. E uma excelente prova da forma com que Wilder era um habilidoso nato na construção do suspense e mistério à partir de conceitos tão simples, sem nunca recorrendo à grandes ações mirabolantes e sempre mantendo foco no íntimo narrativo. Uma das grandes diferenças que o separava de seu dito “concorrente” por muitos críticos, Alfred Hitchcock, e sabendo exatamente quando e como revelar seus inesperados segredos e reviravoltas, o que só torna este ser também um dos mais excitantes dramas de tribunal que o cinema já produziu facilmente.
E sejamos honestos, se trata também de ser a sequência para o qual o filme inteiro tem sua antecipação sendo construída. Embora sim a primeira metade sendo dedicada à investigação de Sir Wilfrid e ao resumo dos relatos do casal rival prenda a atenção e seja bem divertida, é quando o julgamento começa que a direção de Wilder brilha. Com a sequência não só ocupando quase a segunda metade inteira do filme, e Wilder não deixando o ritmo desacelerar ou decair. Permitindo finalmente o roteiro a mostrar suas garras mais sórdidas quando mistérios e segredos são revelados, mas sem deixar de manter sua linha cômica sempre ligada, com Wilder fazendo um uso de adereços, trocas de reações e simples gestos que são puro ouro e arrancam risadas instantâneas.
Mesmo que recaia em certas conveniências finais inesperadas e tenha um desenlace quase que completamente repentino logo após sua grande e inesperada reviravolta, nada disso vem a diminuir a grandeza que compõe o excelentíssimo trabalho que Wilder realizou aqui com Testemunha de Acusação. Que demonstra como o diretor consegue criar, mesmo com muito poucas transições de cenário ou desdobramentos em grande escala, um entretenimento profundo e dramatúrgico de forma magistral. Tanto graças a um roteiro soberbo e sua câmera sempre fluída, revelando o melhor de cada membro do seu elenco, e um equilíbrio perfeito de humor e o drama tenso sem um único tropeço, sem nunca deixando o resultado final previsível, mas sim sempre intrigante e muito excitante de se acompanhar até o final.
Em palavras mais simples, este filme pode ser facilmente considerado o perfeito drama de tribunal com uma aura “Agatha Christieana” perfeita, e isso graças por ter um mestre como Billy Wilder no comando e saber liderar cada um dos componentes de seu filme em perfeita forma e executar uma obra com quase nenhuma falha a ser encontrada, mas completamente prazerosa de assistir, assim como todos seus grandes filmes!
Testemunha de Acusação (Witness for the Prossecution – EUA, 1957)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, Harry Kurnitz, Lawrence B. Marcus (adaptado de uma peça de Agatha Christie)
Elenco: Charles Laughton, Marlene Dietrich, Tyrone Power, Elsa Lanchester, John Williams, Henry Daniell, Ian Wolfe, Torin Thatcher, Norma Varden, Una O’Connor, Francis Compton, Philip Tonge, Ruta Lee
Gênero: Crime, Drama, Mistério, Thriller
Duração: 116 min