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Crítica | The Handmaid’s Tale – 1ª Temporada – O Lado Negro da Religião

Independente de sua mensagem, seja de amor, inclusão ou elevação espiritual, a religião costuma vir acompanhada de um lado negro – não importa o que é dito em seu livro sagrado ou afins, existe a possibilidade de alguém deturpar ou utilizar segmentos de religiões para construir algo verdadeiramente aterrador. Infelizmente, tal desfiguração de crenças continuará a existir, pois não foi um deus ou entidade que criou tais religiões e sim o Homem representado por pessoas que, supostamente, tiveram contato com o divino (ou similar) e decidiram criar “livros de regras” para a sociedade. Ao longo da história, acompanhamos como grupos seletos, utilizando a Fé ao seu favor, moldaram a vida de milhões, seja através das Cruzadas, da Inquisição e sua caça às bruxas ou o fundamentalismo islâmico e sua guerra santa.

The Handmaid’s Tale, série da Hulu criada por Bruce Miller e que adapta o livro homônimo (O Conto da Aia, na tradução brasileira) de Margaret Atwood, que, por sua vez, já ganhara um longa-metragem, A Decadência de uma Espécie, em 1990, lida justamente com essa questão. Como o título já sugere, acompanhamos uma handmaid, uma jovem fértil que, contra sua vontade, é designada a um casal a quem deve servir até que o dono da casa, intitulado de Comandante, consiga engravidá-la. Após a criança nascer e desmamar, a garota é levada para a moradia de outra família e assim por diante. Offred (Elisabeth Moss) é a protagonista, que tem até mesmo seu nome tirado de si, já que seu novo nome significa “De Fred”, ou seja, ela é definida por seu “dono”. Nesse regime teocrático de escravidão, estupro e submissão da mulher, ela, que conhecera o “mundo de antes”, deve arranjar uma forma de sobreviver a tudo aquilo e, de alguma forma, reencontrar sua filha, que fora tirada dela quando tudo isso começou.

O mais assustador da série é justamente o quão real ela soa. Os elementos que compõem esse novo país, a República de Gilead, que tomou conta dos EUA, são claramente a união de elementos que encontramos em nosso próprio mundo. A mulher é tida como um mero objeto, algo com o único propósito de gerar vida, visão motivada, claro, pela infertilidade que tomara conta dos seres humanos nesse universo distópico. As handmaids utilizam trajes similares às protestantes no início da história americana, escondendo o corpo e o cabelo totalmente como uma mulher muçulmana e com uma gigantesca viseira que a permite apenas olhar para a frente, simbolizando perfeitamente seu papel dentro dessa sociedade. Não existe mais prazer ou entretenimento, apenas a dita família tradicional em que a mulher é apenas servil a seu marido, sendo proibida de ler, ter relações sexuais sem o fim de procriação ou até mesmo de sair de casa sem ser acompanhada por outra pessoa.

E se isso soa tão irreal para você, basta lembrar que vivemos em um estado laico com uma forte bancada religiosa, um país em que determinados políticos ainda defendem essa família em que o homem é o dono da casa e que a homossexualidade, por exemplo, é uma abominação. Se expandirmos os horizontes, inevitavelmente nos lembraremos de um certo estado islâmico que metralha, explode e atropela inocentes somente porque eles acreditam na literalidade das palavras de um dito profeta nascido há mais de 1440 anos. The Handmaid’s Tale, portanto, é mais do que uma série, é um alerta, um aviso gigante em letras garrafais vermelhas, dizendo-nos que a separação entre o Estado e a religião não é uma escolha, mas sim uma necessidade, é um tratado de como podemos reverter à Idade das Trevas, com o poder sendo mantido nas mãos de alguns poucos e o mais irônico é que esses próprios reconhecem a grande farsa e a utilizam para controlar as massas de fiéis, que ajudam a manter essa nova ordem.

Mas não é somente o fundamentalismo que é criticado na série de Bruce Miller. O machismo é outro alvo de suas críticas; afinal, ainda vivemos em um mundo em que as mulheres recebem até 70% de nosso salário, quando isso. Vivemos uma sociedade em que mulheres com roupas curtas são vistas como vagabundas, ouvindo as mais variadas ofensas simplesmente por andarem nas ruas. Uma triste realidade em que qualquer pessoa do sexo feminino não pode andar tranquilamente em qualquer lugar (principalmente após certo horário) por ter medo de ser estuprada. A selvageria que vemos no seriado, pois, é apenas um reflexo de quem nós somos e eu realmente espero que esse espelho assuste a todos.

Felizmente, ao assistir The Handmaid’s Tale, é praticamente impossível não se sentir incomodado com aquilo que vemos, não somente pelas situações aterrorizantes retratadas, como pela sua forte identidade visual, tão bem definida pelo foco quase que exclusivo em Offred. Somente pontualmente acompanhamos outros personagens e, mesmo assim, na grande maioria das vezes nos vemos em cenários fechados, criando uma forte sensação de claustrofobia, algo que inclusive reflete a “viseira” da protagonista, que fecha seu mudo ao redor de seus olhos. Quando a protagonista vai para as ruas, isso é mantido através de planos próximos que transformam o ar livre em mais uma prisão, certamente simbolizando de forma perfeita a situação atual da personagem principal. Além disso, é importante notar como esse foco na protagonista influencia o suspense da obra, deixando-nos incertos sobre todos os outros indivíduos, que podem ser espiões ou similares. Offred é a única que conhecemos de fato, pois o restante pode ou não ser enxergado como inimigo, havendo sempre a possibilidade de a jogarem na fogueira.

Essa sensação de estarmos aprisionados é amplificado pela montagem que introduz constantes elipses em cortes secos ou cortes para o preto, recursos utilizados a todo o momento na série. Mesmo os flashbacks, que, em geral, nos mostram o mundo antes dessa nova sociedade, conseguem nos aterrorizar de forma contundente, revelando o quão rápido o normal pode se transformar nessa abominação. Graças a isso, instaura-se uma atmosfera opressora, que perfeitamente dialoga com o texto, fazendo dessa uma obra que não deve ser apenas assistida e sim sentida, vinculando-nos inevitavelmente com a protagonista.

Outro aspecto contundente para a formação dessa identidade visual, que, naturalmente, foi herdado do próprio livro de Margaret Atwood, são os figurinos e não somente os das handmaids. O vermelho muito bem representa a violência que todas elas sofrem, estupradas mensalmente e forçadas a trabalharem sem ganhar nada e viverem aprisionadas na casa de seu senhor. Além disso, a cor simboliza o desejo, no sentido mais carnal da palavra – elas são férteis, objetos sexuais com a  função única de gerar filhos. A viseira branca, por sua vez, que limita o olhar à essa estrada única e apaga, de uma vez por todas, a identidade de cada uma, reflete a deturpação dessa crença, que acredita que elas serão elevadas caso gerem uma criança – isso sem falar na dificuldade de conversarem entre si sem que sejam observadas, já que são forçadas a virarem o rosto de forma evidente para enxergar e ouvirem melhor umas às outras.

Não podemos falar da série, claro, sem abordar o excelente trabalho de Elisabeth Moss, que já demonstrara ser uma das melhores atrizes da televisão atual em Mad Men. Não podendo fazer grandes movimentos, sequer mover suas mãos como gostaria, a atriz revela todas as suas emoções pelo olhar, que transita entre horror, desespero, raiva e resignação. Unicamente por meio de sua expressão, ela possibilita que enxerguemos a alma de sua personagem, algo que, claro, é facilitado pela narração em off ocasional. Mas não é somente ela que compõe esse complexo e assustador cenário. Yvonne Strahovski, que vive a esposa da casa onde Offred serve é o retrato do mistério – jamais sabemos o que ela fará a seguir, se explodirá em ira ou se tratará sua handmaid como um ser humano. Joseph Fiennes, por sua vez, como o comandante Fred, é o resumo do homem tradicional, distante, sempre levando em conta suas necessidades e ignorando os outros quando quer. Ann Dowd, como a “tia” Lydia, responsável pelo treinamento e comportamento das handmaids, também é um destaque: ela vive uma pessoa que verdadeiramente acredita no que faz, que odiamos, mas que nos surpreende ao mostrar que se importa com essas mulheres, ainda que à sua própria maneira, claro.

Tudo isso faz de The Handmaid’s Tale não somente uma excepcional série, como uma obra verdadeiramente necessária, que expõe os podres de nossa sociedade de maneira contundente. O lado negro das religiões é colocado em evidencia juntamente com inúmeros outros aspectos negativos do mundo, funcionando não como mero entretenimento, mas como alerta para que atentemos às nossas próprias atitudes do dia-a-dia que são reunidas, de forma assustadora, em uma sociedade que leva o ser humano de volta à Idade das Trevas. Trata-se de uma série que nos oprime, nos faz nos sentir claustrofóbicos e que nos faz odiar qualquer um que ouse tirar de outra pessoa a sua liberdade.

The Handmaid’s Tale – 1ª Temporada (idem, EUA – 2017)

Criação: Bruce Miller
Showrunner: Bruce Miller
Direção: Reed Morano, Mike Barker, Kate Dennis, Floria Sigismondi, Kari Skogland
Roteiro: Bruce Miller, Dorothy Fortenberry, Leila Gerstein, Lynn Renee Maxcy, Kira Snyder, Wendy Straker Hauser, Eric Tuchman, Ilene Chaiken (baseado no livro de Margaret Atwood)
Elenco: Elisabeth Moss, Yvonne Strahovski, Max Minghella, Amanda Brugel, Joseph Fiennes, Madeline Brewer, O-T Fagbenle, Ann Dowd, Samira Wiley, Nina Kiri, Tattiawna Jones, Alexis Bledel
Episódios: 10
Duração: aprox. 55 min.

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Publicado por Guilherme Coral

Refugiado de uma galáxia muito muito distante, caí neste planeta do setor 2814 por engano. Fui levado, graças à paixão por filmes ao ramo do Cinema e Audiovisual, onde atualmente me aventuro. Mas minha louca obsessão pelo entretenimento desta Terra não se limita à tela grande - literatura, séries, games são todos partes imprescindíveis do itinerário dessa longa viagem.

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