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Crítica | The Night Of – 1ª Temporada

Foi um ano turbulento para a HBO. Claro, a badalada emissora de televisão a cabo teve seus números estratosféricos e a fanbase habitual com a sexta temporada de Game of Thrones, mas sofreu com a decepção de sua caríssima e ousada principal estreia, Vinyl, que acabou cancelada mesmo depois de ser renovada. A ausência da terceira temporada de True Detective, que no momento encontra-se em uma caixa de Schrödinger que parece nunca ser aberta, também deixou a HBO com algo a mais faltando. Ainda há a estreia da promissora adaptação de Westworld para Outubro, mas até o dia chegar, a minissérie The Night Of surge para salvar a programação e oferecer uma das mais eficientes e inteligentes peças audiovisuais de 2016.

Inspirado na minissérie britânica Criminal Justice, a história começa com o estudante paquistanês Nasir Khan (Riz Ahmed), que certa noite pega escondido o táxi de seu pai para uma festa. No percurso, dá carona para a jovem Andrea (Sofia Black-D’Elia), com quem acaba eventualmente saindo para um passeio e acaba em uma noite de sexo e drogas. Algumas horas depois, Nasir acorda e a garota está morta, e ele não tem lembrança alguma do que aconteceu, sendo preso com a arma do crime e embarcando em uma longa e tortuosa jornada pelo sistema judiciário americano.

É uma narrativa que explora minuciosamente cada etapa do processo, desde a prisão de Nasir até a condenação, os exames, transferências, julgamentos e custódias. É normalmente a porção de histórias que seriados de “caso da semana” e filmes policiais costumam eliminar por elipses e passagens temporais, e são elementos que definitivamente podem cair na monotonia caso não executados de forma engajante. Felizmente, temos o guru Steven Zaillian como diretor da maioria dos episódios e Richard Price na função de roteirista. Juntos, a dupla também é responsável por tocar o barco no setor criativo da série; em outras palavras, showrunners.

Zaillian, nome que normalmente associaríamos a um cargo de roteiro, é responsável pela direção de 7 dos 8 episódios (o outro crédito vai para James Marsh, que comandou o 4º episódio), e eu sinceramente espero que ele mantenha atuação no ofício. A mise em scene de Zaillian é clássica e elegante, com um uso mínimo de câmera na mão e uma abundância de planos longos onde encontramos o fundo desfocado para concentrarmo-nos em seus personagens. A paleta de cores frias e cinzenta da fotografia de Frederick Elmes, Igor Martinov e o grande Robert Elswit (que fotografou o primeiro episódio) é eficiente também em transportar o espectador para esta Nova York claustrofóbica e opressora.

Todos os episódios foram escritos por Price, cuja prosa é inteligente e envolvente, trazendo um trabalho de criação e desenvolvimento de personagens virtualmente perfeitos. A começar por Naz, que protagoniza o arco mais transformador da narrativa. De garoto assustado e ingênuo, o processo criminal o faz esperar o julgamento em uma prisão, onde o ambiente e as diferentes figuras ali acabam forçando-o a adaptar-se para sobreviver, fazendo com que aquela figura frígida e indefesa de Naz no início da série torne-se algo mais ameaçador e durão. Aliás, essa metamorfose é pivotal para o grande senso de dúvida que a série provoca no espectador: nem nós nem o próprio Naz têm certeza de sua inocência. Tudo o que havíamos visto até então apontava para um caso de injustiça, mas as mudanças físicas e psicológicas do personagem revelam uma natureza interior muito diferente e perigosa. 

Todo esse núcleo na cadeia transformam The Night Of em uma série diferente. Quase uma variante de Oz, tais cenas revelam o incrível talento de Riz Ahmed, ator britânico com origem muçulmana que rapidamente vai conquistando espaço em Hollywood (começou como o assistente de Jake Gyllenhaal em O Abutre e agora é um dos rebeldes de Rogue One: Uma História Star Wars). Seu Naz é uma figura cativante e pela qual é fácil de se torcer, mas a transformação na cadeia que provoca a ambiguidade no espectador é o principal mérito do ator, favorecido pelas tatuagens e a cabeça raspada. Porém, mesmo diante das suspeitas, Ahmed nunca permite que Naz torne-se um monstro, e nunca paramos de torcer para que o personagem seja de fato inocente.

E então chegamos a John Torturro. Depois de se submeter a participações hediondas nos Transformers de Michael Bay e algumas comédias não muito memoráveis, o ator ganha um personagem sensacional e repleto de camadas para explorar. Jack Stone é um advogado de porta de cadeia que ganha a vida negociando para o menor tempo de pena possível para seus clientes – que em 90% dos casos são culpados. Mas eis que Stone acredita na inocência de Naz e acaba por torná-lo o caso mais importante de sua carreira, e a performance de Torturro é impecável ao balancear a determinação e, ao mesmo tempo, melancolia do personagem. O fato de este passar toda a temporada enfrentando uma infecção nos pés – forçando-o a usar sandálias nada atraentes – é um fator importante para diminuir sua estima, além de ser uma subtrama que constantemente reflete seu progresso no caso; como uma súbita melhora ou uma crise de coceira terrível.

O elenco de apoio não decepciona. Bill Camp explode como o sargento Box, responsável pela investigação de Naz. Descrito pelo próprio como “uma fera sutil”, Camp é eficaz ao explorar os anos de experiência e o cansaço de Box, mas também seu compromisso ininterrupto com o senso de justiça, que o mantém ativo na investigação mesmo após sua inevitável aposentadoria. Quem ganha o rótulo de fera sutil é Box, mas não tenho dúvidas de que a figura mais afiada e ácida ali seja a da promotora testa-de-ferro Helen Weiss. Jeannie Berlin lhe injeta muito sarcasmo e uma segurança quanta a facilidade de seu caso (reparem como ela nunca se exalta e jamais parece cogitar a possibilidade de sua derrota) que chegam a provocar pavor pelo destino de Naz. E, novamente, Weiss também não é reduzida a um mero estereótipo antagônico – sua ação durante o final do julgamento é absolutamente brilhante, além de provocar um irônico paralelo com o arco de Jack Stone.

Temos ainda a surpreendente Amara Karan, atriz novata que interpreta a igualmente novata advogada Chandra Kapoor, designada como advogada de defesa para Naz ao lado de Stone. Se a Weiss de Jeannie Berlin traz toda a segurança de forma natural, vemos nas expressões delicadas de Kapoor seu esforço para manter-se à altura de seus colegas de trabalho e sua determinação para triunfar no caso, em um trabalho realmente memorável de Karan. E ainda que tenham papéis menores, Peyman Moaadi e Poorna Jagannathan têm ótima presença como os pais de Naz, que ganham um tempo considerável para desenvolverem seus pequenos dramas – a mãe com o medo de seu filho ser culpado, o pai com a preocupação de garantir a estabilidade da família após uma onde de ataques racistas.

Por fim, um pouco sobre um dos melhores e mais complexos personagens da série: o Freddy de Michael Kenneth Williams. Líder de uma das gangues mais poderosas da penitenciária Rinkers, Freddy logo acolhe Naz e o guia para tornar-se um de seus companheiros e ajudá-lo a sobreviver em um ambiente hostil. Freddy é uma figura sábia e inteligente, sempre trazendo citações de obras como A Arte da Guerra e oferecendo pequenas palavras de sabedoria que ajudam a envolver o espectador durante o arco da prisão. Definitivamente um personagem que gostaria de rever, e a performance de Williams é chave para que Freddy torne-se uma figura tão fascinante.

The Night Of funciona como um longo e eficiente longa-metragem de 8 horas. Há um desenvolvimento narrativo e estrutura de atos essencialmente cinematográficos, beneficiando-se de um elenco inspirado, personagens marcantes e um cuidado estético impressionante.

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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