É difícil ser categórico em relação ao talento cinematográfico de alguns diretores. Às vezes, as obras do sujeito são experimentais demais para afirmar decisivamente sobre a sua capacidade. Em outros casos, trata-se um esteta desprovido de todo o resto. Porém, há uma maneira, quase sempre infalível, de resolver essa questão: basta ver como ele se sai dirigindo um filme mais narrativo. Afinal de contas, antes de propor uma revolução formal ou uma experiência inteiramente estética, o cineasta precisa dominar as ferramentas elementares de sua arte. No que diz respeito a Alejandro Jodorowsky, essa regra se aplica perfeitamente. Se os três longas-metragens iniciais de sua carreira deixam um ponto de interrogação na cabeça do espectador, Tusk oferece a resposta definitiva: ele é, na maior parte das vezes, um enganador.
E, como tal, para sair ileso do verdadeiro julgo crítico, se aproveita de seu “talento” para criar simbolismos óbvios e, principalmente, da relativização que afunda a arte num lamaçal onde os padrões objetivos de avaliação foram todos indevidamente eliminados. Assim, dizendo nada e gerando somente repugnância e ojeriza, consegue posar de artista genuíno. Era de se esperar que um homem chamado de genial em razão de suas primeiras incursões no Cinema fosse capaz de contar a simples jornada de escravidão e libertação de um elefante sem que houvesse muitos percalços no meio do caminho. Mero engano. Em seus três primeiros filmes, é quase impossível encontrar algo característico de um gênio. Dessa maneira, dificilmente, as coisas mudariam tão abruptamente no seu projeto seguinte.
No entanto, antes de afundar completamente, Tusk até tem um início promissor. Começando com um plano que dura vários minutos e é construído a partir de uma alteração complexa de zoom in para zoom out, Jodorowsky estabelece competentemente tanto o universo em que a história se desenrolará quanto o paralelo que une a inocência das crianças com a dos elefantes. Depois disso, através de uma comovente montagem alternada, ele também cria um elo entre o nascimento de Tusk (o elefante que dá nome ao filme) e o de Elise (Cyrielle Clair) – corretamente, são reforçados no restante da narrativa a ligação emocional entre os dois e o fato de não só a mulher, como também os animais, serem oprimidos. Por fim, ainda no primeiro ato, há uma precisa abordagem documental para relatar o cotidiano da Índia, e a generalização feita em cima dos personagens – John Morrison (Anton Diffring), vestindo branco e com cabelos e olhos claros, é o típico europeu colonizador, e Richard Cairn (Christopher Mitchum), o americano ganancioso e bélico – é bem realizada.
Porém, tudo o que foi mencionado acontece nos primeiros minutos de um filme que tem quase duas horas de duração. No desenrolar da história, torna-se evidente que Jodorowsky não conseguiu achar um meio termo entre a abordagem alegórica e uma trama linear. Todas as vezes que alguém trabalha com personagens cuja existência representa um conceito – no caso de Tusk, o elefante representa a liberdade do povo indiano, que estava sob o jugo dos britânicos, Elise é a encarnação da inocência e compreensão, e os papéis de Morrison e Cairn já foram mencionados -, é necessário que esses conceitos sejam aprofundados. Se isso não acontecer, o que se tem é a repetição vazia de ideias que já foram estabelecidas, numa sucessão insuportável de reiterações.
Infelizmente, o último caso é justamente o que acontece neste filme. Como Jodorowsky criou uma narrativa direta, porém, personagens conceituais, o público passa a acompanhar os seus dramas, mas nunca chegando a se importar com eles. Na tentativa de gerar um conteúdo intelectual e reflexivo, erroneamente, o diretor chileno apelou aos sentimentos e não às ideias. No fim, não atiçou o coração nem a mente. Pois, praticamente, por uma hora e meia, o espectador fica ouvindo falas sobre coisas que já foram suficientemente assimiladas e acompanhando personagens acerca dos quais nada de realmente profundo é conhecido. Sendo assim, não se recebe nada mais além da retórica “os ocidentais são maldosos e os nativos, bondosos” e a trajetória de seres cujos dramas ressoam muito pouco em nós.
Além disso, é adicionada à história geral uma subtrama composta por personagens que só existem para movimentar os trinta minutos finais, agindo sem motivações claras ou justificáveis; um relacionamento amoroso forçado e que, amadoristicamente, não é sequer vislumbrado na primeira hora de filme; e, no fim, personagens mudam de postura de uma maneira inverossímil e apressada. Já a condução de Jodorowsky, assim como a trilha sonora (idêntica às que eram usadas em produções da década de 1980) e a fotografia naturalista de Jean Jacques-Flori (embora a iluminação sem vida seja essencial para retratar a Índia como ela é e não exótica como os ocidentais a enxergam) não possuem muita personalidade.
Dessa maneira, se colocando na pele do espectador que só assistiu aos primeiros quatro longas-metragens de Jodorowsky, como há se de chegar a conclusão de que o diretor chileno merece, sim, ter as suas próximas obras conferidas? Quando se pretende experimental, entrega filmes esteticamente poderosos, mas vazios de conteúdo. E, no momento em que busca fazer um cinema mais clássico, não consegue contar uma simples história sem cometer inúmeros erros durante o processo. Será que errei em pensar que artistas geniais dominam a técnica de suas respectivas artes?
Obs: ainda em tempo, que estranha obsessão Jodorowsky parece ter com tortura de animais, não?
Tusk (Idem, França e Índia – 1980)
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky, Nicholas Niciphor, Jeffrey O’Kelly (baseado num romance de Reginald Campbell)
Elenco: Cyrielle Clair, Anton Driffing, Serge Merlin, Christopher Mitchum, Michel Peyrelon, Sukumar Anhana
Gênero: Fantasia/Drama
Duração: 119 min