Terminada a primeira fase do diretor, enquanto transitava pelo estudo da narrativa e dos esquetes de stand up, Woody Allen em A Última Noite de Boris Grushenko, começa a aprimorar suas marcas autorais enquanto constrói uma história – ainda que seja bem simples e marcada por diversas paródias e esquetes cômicas separadas que agregam pouco na história.
Aqui, numa das fases mais criativas do diretor, Woody conta a desventura de Boris, um zé-ninguém que vive em plena Rússia czarista. Metido em seus dramas cotidianos e romances fracassados, Boris é convocado para o exército conter a invasão das tropas napoleônicas. Nisso, ele e o amor de sua vida, Sonja, tem a brilhante ideia de matar Napoleão Bonaparte para acabar com a guerra.
Marcando o progresso textual que viria ao primeiro ápice com Noivo Nervoso, Noiva Neurótica, Allen ainda transita bastante entre o stand up e a narrativa, porém, agora os números de stand up contribuem para a narrativa apesar de serem paralelos a ela. Logo nos primeiros minutos de filme, o diretor já insere diversas tiradas cômicas non sense sobre personagens excêntricas que só contribuem para o riso. Aliás, apenas Boris e Sonja são desenvolvidos com clareza durante a minutagem mais que satisfatória do filme.
Aqui, começamos a perceber nitidamente a linha autoral que Allen vai seguir: o humor sempre neurótico com críticas certeiras ao que contemporâneo na época. Woody constrói Boris como um covarde nato, questionador da fé alheia que adora filosofar sobre presepadas. Enquanto com Sonja, investe em um romance absurdo e extremamente engraçado ao dar a roupagem de ninfomaníaca para a personagem enquanto torce para que Boris morra na guerra evitando o matrimônio.
Mas o que mais encanta em A Última Noite de Bóris Grushenko é a habilidade do diretor-roteirista em manipular o humor para diversas formas. O filme é paródico: ora tem humor inteligente e ora parte para a comédia primitiva do slapstick. O fantástico é que a mistura cai muito bem, pois se percebe quando Woody quer trabalhar com a paródia despretensiosa, além de desenvolver seu humor politicamente incorreto.
Allen também brilha quando faz seus personagens quebrarem a quarta parede enquanto confidenciam temores e filosofias redundantes. Em uma variação disso, ele parodia diretamente Ingmar Bergman com enquadramentos certeiros enquanto os personagens balbuciam frases imbecis sobre trigo. Não somente nos enquadramentos, mas também atinge diretamente O Sétimo Selo com a sua Morte repleta de senso de humor e vestida de branco.
As sátiras não se limitam apenas a Bergman. Woody Allen faz piada com praticamente toda a literatura russa clássica como Guerra e Paz, Crime e Castigo, Irmãos Karamazov, O Idiota e Anna Karenina. Como o filme se trata de uma “releitura” histórica, também há diversas piadas brilhantes sobre o período incluindo alguns anacronismos repletos de ironia. Não satisfeito, o humor pastelão vem de mestres como Charlie Chaplin, Buster Keaton e irmãos Marx. Ou seja, se você não conhece muito sobre Bergman, literatura russa, do contexto histórico e dos comediantes clássicos do cinema, certamente perderá piadas fantásticas. Entretanto, apesar de Woody exigir um bom conhecimento do espectador, seu humor é universal. Logo, muitas piadas serão apreciadas por todos, principalmente as diversas cenas que se baseiam apenas na exclamação de diversos provérbios e no trabalho literal sobre diversos deles.
Em termos de história, como havia dito antes, ela é bem simples. Ainda é um fio condutor frágil, apesar de contar com boas reviravoltas entre as excelentes piadas. A grande novidade aqui é que este é o filme de guerra de Woody. Existem algumas cenas de “ação” onde os dois exércitos se enfrentam. Ali, com muito humor negro, ele ainda consegue apresentar o sucateamento do exército russo.
Vale destacar que mesmo com um orçamento absurdamente apertado, três milhões de dólares, para uma obra que pode ser considerada grande vide trabalhar em um tempo diégético de época, além de contar com cenas de batalha com muitos figurantes, Woody faz milagre pela qualidade do design de produção. Desde figurinos a cenários, tudo é muito bem produzido e cuidado. A pena é que Allen explora pouco os cenários ou a fotografia, sempre rudimentar até hoje – alguns filmes como Meia Noite em Paris escapam disso.
No mais, Woody cria enquadramentos bons para descrever a história apropriadamente, mas só brilha de fato nas paródias com Bergaman e no raro uso da profundidade de campa para inserir uma das melhores piadas – dos Napoleões se estapeando ao fundo do salão. Allen também se preocupou a tal com a trilha musical do filme que encomendou peças inteiras de Igor Stravinsky, porém por conta do tom pesado da música, algo que ele não queria para seu filme, acabou descartando.
Para substituir perfeitamente, ele chamou o igualmente ótimo Serguei Prokofiev para montar a trilha musical. Enfim, Prokofiev conferiu o tom leve que permeia o filme.
Apesar do título infeliz em português que estraga o final do filme, A Última Noite de Bóris Grushenko é uma pérola subestimada de Woody Allen. Seu humor aqui é genial tornando este um de seus filmes mais engraçados. Não há erro. Se você gosta de humor inteligente e de qualidade, corra atrás desse filme. É uma das obras mais interessantes que vi em minha vida.