Nunca antes na história recente das artes, houve uma figura que tenha gerado tanto controvérsia como Bernardo Bertolucci. Antes, indiscutivelmente um artista celebrado, Bertolucci viu seu legado e sua memória como realizador se desfazer diante de seus olhos quando confirmou algo que tanto Marlon Brando e Maria Schneider tinham afirmado de modo escuso ao dizer que ambos teriam “se sentido estuprados” durante as filmagens do infame Último Tango em Paris.
Bertolucci conseguiu realizar um dos exercícios de semiótica mais inescrupulosos ao afirmar que a cena mais famosa de seu filme, envolvendo uma sessão de sexo anal auxiliada pelo uso da manteiga, na verdade fora totalmente realista, sendo um estupro real captado pelas câmeras, já que Schneider não fazia a menor ideia de que aquela cena estava programada para o dia. Antes considerada genial pela crueza da encenação, hoje é a maior mancha na carreira de Bertolucci que o acompanhará para sempre, além de elaborar o questionamento mais válido de todos: qual é o limite da arte?
Na época, o movimento de Bertolucci em conquistar sua primeira produção de peso quebrou certos paradigmas que nem mesmo a Nouvelle Vague e a Nova Hollywood estavam dispostos a fazer. Primeiro, como veremos na análise, é um filme altamente escatológico, desnudando os personagens para uma realidade podre que até então era ignorada solenemente pelo verniz cinematográfico passado em muitas narrativas.
Porém, mais importante ainda, catapultou uma tendência no cinema em narrativas de drama eróticos muito inspirados pelas características de seus personagens refletindo em obras como Perdas e Danos, 9 ½ Semanas de Amor, Instinto Selvagem, Crash: Estranhos Prazeres, O Porteiro da Noite, entre outros. A tendência estava, com toda a certeza, na moda – até que tenha se transformado em uma franquia de péssima qualidade como 50 Tons de Cinza, mas isso não vem ao caso.
A Tortura de Uma Mulher
Bertolucci encontrou Último Tango em Paris uma forma de extravasar seus mais profundos desejos e filosofias. Inspirado por um encontro casual com uma pedestre tão bela que o levou a sonhar que conseguiria transar com ela na mesma tarde, o diretor voltou para a casa sozinho, mas com a ideia que renderia seu filme mais famoso.
Nele acompanhamos a jornada de Paul (Brando), um deprimido homem de meia idade, que cruza com a jovem e bela Jeanne (Schneider) nas ruas parisienses. Em uma jogada do acaso, ambos acabam visitando o mesmo apartamento dilapidado para locação e, inesperadamente, transam no primeiro encontro nada romântico. Chocada pela sua atração incontrolável com o misterioso homem, Jeanne retorna ao apartamento e começa uma rotina de amor doentio com o pervertido senhor. Em um relacionamento tóxico e inusitado, ela terá que escolher o “amor tradicional” oferecido pelo seu namorado cineasta prepotente ou a paixão carnal representada pela brutalidade de Paul.
É um fato concreto que Bertolucci é um dos cineastas mais mão pesada da História do Cinema. Com a sutileza de um elefante, é preciso dormir profundamente para não entender o que ele quer comunicar com Último Tango em Paris. A começar, o nome romântico é um simples joguete para enganar desavisado, já que toda sua intenção é subverter o romance a níveis escatológicos com direito a uma infinidade de monólogos de Brando falando sobre zoofilia, necrofilia e escatologia gráfica enquanto tortura psicologicamente Jeanne.
Apesar de dar luz a um tipo de relacionamento doentio, é particularmente curioso notar como Schneider e Brando funcionam bem contracenando, explodindo tensão sexual e, por consequência, tornando a imagem dessas cenas sombrias amareladas em algo realmente poderoso. Aliás, essas cenas se tornam tão únicas e interessantes que o resto do filme se torna totalmente inócuo.
Bertolucci decide dividir a narrativa em três núcleos sendo que apenas um consegue sustentar o longa: o concentrado no casal. Quando acompanhamos a vida privada de Jeanne e Paul, as coisas desandam rapidamente. Com Jeanne, temos um excesso de cenas envolvendo seu romance com o namorado cineasta mais preocupado em realizar um documentário sobre o passado da namorada do que realmente ser um personagem interessante.
É uma clara provocação de Bertolucci contra realizadores da Nouvelle Vague como Jean-Luc Godard e Louis Malle, mas enquanto isso é minimamente divertido até se tornar uma verdadeira chatice para martelar a mensagem de como o “romance normal” entre os dois é sem graça e artificial, o mesmo pode ser dito com o núcleo concentrado em Paul.
O personagem misógino é dono de um hotel decadente no subúrbio parisiense e, logo, permeado pela ideia da ausência de Jeanne, se tornando levemente obcecado pela moça. Nessas cenas, há mais da filosofia estranha do personagem que faz referência a diversos dos papeis passados de Brando como Uma Rua Chamada Pecado e Sindicato de Ladrões, além de até mesmo contar segmentos pessoais da vida real do ator.
Por ser uma narrativa bastante desencontrada, esses segmentos com Paul servem apenas para mostrar o personagem tentando fechar um capítulo sombrio de sua vida. Rodeado pela morte e da velhice da própria mãe, Paul basicamente se nutre da jovialidade ingênua de Jeanne, se revitalizando e compreendendo como seus relacionamentos sempre são baseados no desconhecimento e no desamor.
É irônico que tenhamos dois personagens complexos que se complementam em um desenvolvimento tão precário, já que Bertolucci aposta em diversos segmentos redundantes até, enfim, concluir o longa com a interessante abordagem sobre as fases cíclicas da vida. De resto, os personagens ficam à deriva enquanto Paul e o namorado de Jeanne a abusam de diversas formas.
Na direção, como sempre, Bertolucci é bastante elegante, apostando ferrenhamente no manejo clássico de sua câmera bem movimentada e estável. A abordagem somente muda nas cenas de paródia com a Nouvelle Vague nas quais o diretor rapidamente adota a câmera na mão e uma montagem mais fluída, além de trabalhar as paixões de metalinguagem pertinentes para tal.
Com a fotografia até hoje atemporal de Vittorio Storaro, é particularmente adequado que o cineasta aproveite da iluminação para sintetizar tanto Paul e Jeanne rapidamente logo em uma cena inicial do longa. Enquanto a moça adentra o escuro apartamento e abre as janelas a procura de luz, Paul se afasta e procura as sombras. Essa não seria a primeira vez que Bertolucci compararia o personagem a uma criatura noturna ou a uma ratazana. Na conclusão da obra que obviamente não compensa o que fora mostrado até ali, o cineasta mostra Brando se encolhendo em uma varanda, exatamente como uma barata abatida.
Arte Morta
Ingmar Bergman sempre estava muito atento ao cenário cinematográfico mundial a tal ponto que colecionou muitos inimigos com suas críticas ácidas. Porém, uma delas é muito pertinente a Último Tango em Paris: é um filme que faria mais sentido caso se tratasse de um casal homossexual assim como Bertolucci desejava nos estágios iniciais do roteiro.
A alteração do texto torna toda a experiência bastante deslocada em um murmúrio antipático de reclamações amarguradas que nem mesmo os atores compreendia. Se trata, sim, do choque entre o desejo sexual em pontos distintos da idade e da morte do romance enquanto envelhecemos na busca do prazer superficial, mas ao mesmo tempo é um exercício pedante e repleto egocentrismo.
Assim como Brando dita durante a cena mais desprezível do longa, o limite da arte é testado nessa ironia cruel “onde a liberdade é assassinada pelo egotismo”. A revolução de um gênero nunca foi tão moralmente errada e medíocre exatamente como esse Último Tango em Paris.
Último Tango em Paris (Ultimo tango a Parigi, Itália, França – 1972)
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci
Elenco: Marlon Brando, Maria Schneider, Maria Michi, Giovanna Galletti, Luce Marquand
Gênero: Drama, Romance Erótico
Duração: 129 minutos