A ficção científica faz parte de umas temáticas mais elogiadas pelos fãs de cultura pop ao redor do mundo. Existem relatos do gênero desde o século II. Muitos consideram o romance Uma História Verdadeira do escritor satírico grego de Luciano de Samósata como uma obra de ” proto-ficção”, por já abordar temas que seriam características da ficção científica. Porém é por volta do século 19, com a Revolução Industrial trazendo diversas mudanças econômicas e sociais para a sociedade, com os grandes avanços em ciências como física e química, e com o advento do romance como forma literária, é que a ficção científica teve suas bases fincadas. Escritores como Mary Shelley, Julio Verne e HG Wells moldaram o gênero, e trouxeram para ele características que até hoje são encontradas em obras literárias.
As obras de ficção da época abordavam questões como viagem no tempo, invasões de outros planetas, universos paralelos mexiam com a imaginação popular, e além do fato de que havia um certo conteúdo de critica social nessas historias. Tudo isso contribuiu para que gênero ficasse famoso, e fosse levado para outros mídias. O cinema foi uma das artes que tratou de explorar essa temática, e desde seus primórdios vimos filmes de ficção científica sendo produzidos. O diretor George Meliés foi o pioneiro em filmes do estilo, com seu filme Viagem à Lua, lançado em 1902 e baseado em um livro do escritor Julio Verne. Sendo um ilusionista, o francês trouxe diversas inovações para a recém nascida sétima arte, e abriu caminho para os diversos cineastas que iriam explorar o gênero.
A partir de 1950, o mundo vivia em grande aflição devido ao confronto ideológico entre Estados Unidos e União Soviética. A corrida armamentista fez com que o interesse pela ciência ficasse ainda maior, entretanto fez com que o mundo temesse um futuro apocalíptico ocasionado por alguma guerra atômica. Como sempre aconteceu na história, as questões culturais do período teriam grande influência na arte predominante da época, no caso o cinema. Diversos filmes foram influenciados pelas questões políticas vigentes na década, com destaque para os filmes de ficção científica, que usavam seus roteiros fantasiosos para criticar o que estava acontecendo no mundo afora. Um dos filmes mais conceituados lançados no que foi chamada a ” Era de Ouro da Ficção Científica” foi Vampiros de Almas, dirigido por Don Siegel e que se tornaria famoso pelos filmes policiais de ação que iria dirigir durante o período da Nova Hollywood. Apesar de ignorado no início pelos críticos, com o tempo seria revisto e hoje é considerado um dos maiores clássicos do gênero.
A trama começa dentro de um hospital psiquiátrico. O médico Dr Hill (Whit Bissel) é chamado para atender a um homem (Kevin Mcarthy) que está aos gritos, afirmando que não é louco e que precisa contar uma história. Hill decide ouvir o que o paciente tem a dizer. O homem se revela sendo também um médico,chamado Miles Benneth, e então começa a relatar o que aconteceu e como chegou ao hospital. Miles revela que na pequena cidade de Santa Mira começou a haver um aparente surto de Delírio de Capgrass, uma síndrome rara na qual as pessoas acreditam que alguém próximo foi substituído por um impostor de aparência legítima. Porém, o grande número de casos faz com que o Dr Bennett comece a questionar um pouco os fatos. Ele então descobre estar presenciando algo inimaginável, uma possível invasão vinda do espaço.
O filme recebeu um curto orçamento do estúdio para sua produção, apenas 350 mil dólares, o que impediu a contratação de grandes atores para o elenco, escolhendo por uma dupla de novatos. A pouca quantidade de recursos também impediu com que muitos efeitos especiais, e talvez por isso não tenha impressionado muito os críticos na época e deixado de lado. Com pouco a sua disposição, e também pouco tempo de filmagem (apenas 24 dias) o roteirista Daniel Mainwairing teve que ser bastante econômico na hora de escrever a história, o que fez com que o longa tivesse apenas 80 minutos de duração. Porém, Mainwairing mostra-se bastante eficiente, conseguindo ajudar muito na construção do clima de terror pretendido, sendo direto e dando todas as respostas necessárias para o público.
Eficiência também é o adjetivo que podemos usar para descrever o excelente trabalho que Siegel faz na trama. Com muito pouco a sua disposição, ele usa o que têm para poder construir um forte clima de paranóia dentro da pequena cidade de Santa Mira. Desde o inicio o diretor consegue fazer o telespectador imergir para dentro da trama. É perceptível para quem assiste que existe alguma coisa de errada dentro dessa pequena cidade, existe um certo mistério no ar, mas não sabemos o quê. Isso faz com que fiquemos ligados do início ao fim em busca de alguma resposta sobre o que possa estar havendo. Existe também um certo clima claustrofóbico que também é bem arquitetado, que deixa parecer que não importa o que está acontecendo, são mínimas as chances de escapar, o que faz com que o medo fique ainda maior.
Siegel é muito bom em contar uma história. Mesmo com pouco tempo para fazer seu filme, ele consegue fazer com o que o ritmo não caia em nenhum momento. Ele sabe construir todo esse clima pesado e misterioso, não fazendo tudo rápido demais, o que poderia fazer com que o público não criasse uma identificação com a película. Para poder construir toda a atmosfera, e fazer com que tudo se tornasse crível a quem assiste, o diretor faz uma ótima construção dos personagens, e todos os seus sentimentos de medo e paranóia com o mistério consegue ser muito bem passado para a tela. O destaque fica para o desenvolvimento de Miles Benneth, que no início se mostrava cético, mas depois sucumbiu diante do que estava diante dos seus olhos.
Vale ressaltar aqui também o belo trabalho de fotografia feito por Ellsworth Fredericks. No inicio usando uma fotografia mais iluminada e serena, ele passa a idéia de tranquilidade dentro da pequena cidade, muito antes dos aliens começarem a tomar as formas da população. Quando a invasão começa, Fredericks começa a usar tons mais soturnos e sombreados, mostrando a escuridão que assolou Santa Mira. Elogios também devem ser feitos a trilha sonora de Carmen Dragon, que intercalando tons mais agudos com tons mais graves, consegue trazer um clima de terror e medo para a trama.
Agora, seria quase impossível falar desse filme sem citar a temática social que se envolve com ele. Na época do seu lançamento, os Estados Unidos estavam vivendo a época do Macartismo. Nesse período, existia uma grande paranoia da sociedade de que os soviéticos poderiam se infiltrar dentro da sociedade, com o intuito de destruir o modo de vida americano que a população tanto prezava. Corriam boatos de que a ” Mãe Russia” mandava agentes secretos para a terra do Tio Sam para que se misturassem a população como americanos normais, para que o plano soviético fosse de dominação fosse realizado. A partir disso, o senador Republicano John McCarthy liderou um movimento de total repressão a todos aqueles que fossem acusados de colaboradores do regime comunista. Fica fácil perceber que toda a paranoia vista dentro da trama, e o roteiro tratando de pessoas sendo trocadas por semelhantes poderia ser vista como uma referência ao que estava acontecendo no país.
Existe também um outro lado, que afirma que o filme é na verdade uma propaganda anti comunista. Um dos aliens afirma que a invasão é feita com a intenção de criar uma população na qual todos são iguais. Vale lembrar que uma das bases das teorias de Marx e Engels era a destruição das classes sociais, e que a sociedade tivesse um pensamento unitário. Tem ainda o fator de que, como já dito antes, os comunistas eram vistos como um grupo que planejava destruir os valores da sociedade, e é isso que os aliens fazem na trama. Eles constroem uma sociedade sem emoção, sem sentimentos, que funciona de uma maneira robótica e extremamente controlada, fazendo uma alusão ao governo soviético, que controlava sua população com mãos de ferro.
É perceptível o quão é multifacerado esse filme. Porém, apesar de todas as interpretações que foram feitas sobre a trama, aqueles que trabalharam na trama afirmam nunca ter visto nenhuma outra conotação além de um simples filme de ficção e terror. Kevin McCarthy afirmou em uma entrevista feita em 1998 que nunca sentiu nenhuma alegoria dentro da trama. Don Siegel afirmou que ao fazer o filme, apenas tinha a intenção de entreter, e que nunca tinha pensado em fazer qualquer coisa mais profunda, mas que interpretações seriam inevitáveis. Por fim, Walter Mirisch, famoso produtor e que supervisionou o filme, afirmou em sua autobiografia que as as pessoas viram coisas que não tinham sido planejadas. Também disse que conversou pessoalmente com os responsáveis pelo filme, viu que não pretendiam fazer nada além de um suspense.
Intencionalmente ou não, impossível negar que o filme ficou marcado pelo seu subtexto, e foi graças a isso que teve seu nome colocado na história do cinema e da ficção. Com um trabalho impecável de direção, roteiro e atuação, Vampiro da Almas é um dos belos exemplos de como foi gloriosa a ” Era de Ouro da Ficção”. Um clássico genuíno, e que serviu como inspiração para diversos outros que se seguiram.
Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers) — EUA, 1956
Direção: Don Siegel
Roteiro: Daniel Mainwaring
Elenco: Kevin McCarthy, Dana Wynter, Larry Gates, King Donovan, Carolyn Jones, Jean Willes, Ralph Dumke, Virginia Christine, Tom Fadden, Kenneth Patterson, Guy WayEileen Stevens
Gênero: Terror, Ficção Científica
Duração: 80 min.