Os anos 1980 seriam generosos para Brian De Palma. Conquistando diversos clássicos como Um Tiro na Noite e Dublê de Corpo, Vestida para Matar seria o primeiro deles. Digamos que sutileza não seja um forte do diretor, por isso é mais fácil tirar o elefante da sala desde já: De Palma quer ser Alfred Hitchcock. Se não quer ser, o amor pela figura do diretor e de seus filmes é nítido em seus filmes.
Com Vestida para Matar, De Palma simplesmente decidiu fazer um “remake” de Psicose, talvez a maior obra-prima de Hitchcock. Evidentemente que não se trata de uma refilmagem descarada como a porcalhada que Gus Van Sant fez em 1998. Aqui, há todo um trabalho para mimetizar as técnicas do mestre do suspense, mas de modo virtuoso, afinal De Palma não é nenhum incompetente.
Personalidade de Matar
Roteirizando, De Palma traz uma história exatamente aos moldes de Psicose, logo, é impossível sentir qualquer surpresa nas reviravoltas caso já tenha visto ao clássico anteriormente. O trunfo é que o diretor só revela isso quando mata a protagonista – assim como Marion Crane bate as botas no filme de Hitchcock.
Logo, a sinopse básica do longa se trata de uma bela farsa: Kate Miller (Angie Dickson) é uma mulher de poucos afazeres, porém frustrada sexualmente com seu segundo marido. Passando por uma rápida consulta com seu psiquiatra, doutor Robert Elliott (Michael Caine), Kate desiste de sua rotina normal para dar um passeio no museu. Ávida por um affair, a mulher conhece um estranho e embarca em uma aventura amorosa extraconjugal. Após satisfazer seus desejos, Kate pega o elevador a fim de voltar para a casa. Porém, é surpreendida por uma alta mulher loira sinistra que a assassina com uma navalha.
O problema é que o elevador para em outro andar fazendo com que a jovem prostituta Liz Blake (Nancy Allen) testemunhe o crime, observando o rosto da assassina. Sabendo que corre risco de morrer, Liz une seus esforços com o filho de Kate, Peter (Keith Gordon), que está sedento por vingança.
É quase um fato que os roteiros originais de Brian De Palma nunca estejam no nível de sua primorosa direção. É o caso perfeito de Vestida para Matar, um filme que basicamente é um exemplar exercício técnico do que uma boa história.
De Palma faz sim o básico e traz motivações genuínas para os personagens, além de manter um ótimo vigor no ritmo das reviravoltas que sempre trazem novos perigos para Liz, além de uma personificação muito interessante para Peter, um jovem inventor que consegue usar sua inteligência favorecendo a investigação. Há até mesmo uma preocupação em tornar Liz uma personagem mais preparada, fornecendo dicas de investimentos financeiros que ela guarda..
O enorme problema disso tudo é a grande previsibilidade da história. Não é preciso ser nenhum gênio para descobrir a identidade do assassino, além de De Palma fornecer dicas em excesso, tanto na imagem quanto no texto. Ao menos, a ideia por trás da assassina é tão interessante quanto a ideia de Psicose. Abordando o tema tabu da transsexualidade, o diretor consegue ser original mesmo tratando a história como um remake leve.
Alguns dos vícios do roteirista também incomodam como o total descrédito às forças policiais que beiram o ridículo de tão caricatas. Os diálogos também sofrem bastante pela escrita medíocre, mas competente em colocar as peças do jogo sempre no lugar certo. O principal problema é uma sequência de epílogo totalmente desnecessária, tornando a referência a Psicose ainda mais óbvia, para conferir um caráter cíclico à narrativa, muito embora ainda se valha de um clichê para concretizá-la.
Autor Psicótico
Nesse enorme frenesi em mimetizar Hitchcock, há de se reconhecer o virtuosismo que De Palma possui na direção. Muitos tentaram replicar o mestre de suspense e muitos falharam, porém De Palma simplesmente consegue o impossível. Assistir a Vestida para Matar é igual ver um filme de Hitchcock em seu auge.
O início do longa já é arrebatador com De Palma criando um contraste muito poderoso para nos aproximar de Kate em questão de minutos. Através de um elegante movimento de câmera, invadimos um banheiro no qual um casal está. Enquanto o marido se barbeia, Kate tenta seduzi-lo em uma sessão de toques eróticos delicados explorando o próprio corpo e De Palma traz tudo isso nos mais minuciosos detalhes com closes íntimos.
Com o marido nunca lhe dando atenção para sua gentileza sensual, Kate é surpreendida por um homem grosseiro, a estuprando em seguida. Os seus gritos são ignorados. A cena onírica rapidamente é cortada para a crueza que revela Kate transando com seu marido que a trata sem a menor paixão, apenas como um objeto descartável de prazer.
Nesse choque absoluto, De Palma nos vende a carência da mulher, além de estabelecer bem suas motivações para ir até o museu a fim de apresentar todo o seu virtuosismo como cineasta. Essa sequência em particular, talvez seja uma das mais brilhantes de toda a carreira do diretor, pois, além dela ir se transformando constantemente, ele consegue prender a nossa atenção por quase nove minutos nunca recorrendo a nenhum diálogo.
Primeiro, De Palma foca em pequenas narrativas da vida dos outros transeuntes do museu – algo que posteriormente serviria de inspiração para a apoteótica cena da estação em Os Intocáveis. Nunca tirando a câmera do lugar que Kate está, o diretor logo estabelece uma relação subjetiva entre personagem e instrumento. Ou seja, somente nos movimentamos quando ela se mexer. O que não demora muito, pois o misterioso amante logo captura sua atenção.
Se valendo de planos abertos, vemos essa pseudo perseguição surgir no museu, com Kate tentando descobrir para quais lugares o homem foi. Como os papeis se invertem algumas vezes em diversas salas do museu, De Palma consegue sustentar tudo com facilidade além de contar com a inserção maravilhosa da trilha musical de Pino Donaggio.
As sacadas visuais do diretor continuam na residência do sedutor. Também mantendo longos planos e até replicando alguma movimentação de câmera da sequência do museu, De Palma consegue iniciar o esquema de condenação da protagonista – assim como acontece em Psicose na qual Marion nunca atinge a redenção apesar de se arrepender do que fez. Com Kate, em primeiro momento ela descobre que o sedutor possui uma doença venérea grave. Abalada, ela foge para o elevador na qual é encarada insistentemente por uma garotinha. Chegando ao térreo descobre que esqueceu sua aliança e decide retornar para o último andar a fim de busca-la. Assim que o elevador para e abre suas portas, a protagonista é brutalmente assassinada nunca conseguindo se redimir, além de não receber a ajuda que tanto necessitava.
Depois, maneirando em termos de movimentação de câmera e decupagem, De Palma inicia outra ótima assinatura visual própria de seu estilo: a tela dividida. Com Kate, ele já tinha utilizado duas vezes com flashbacks banais, mas depois de sua morte, acompanhando o psiquiatra e Liz, vemos os dois assistindo a uma matéria sobre transexuais.
Além de conferir um elegante exercício de montagem muito apurado, sincronizando linhas de diálogo em espaços distintos, serve também como uma ótima metáfora para a personalidade dividida do vilão. Depois, possivelmente a última sequência que seja de fato majestosa e acertada, se trata da perseguição a Liz, na qual ela tenta fugir da assassina, mas também acaba tendo que escapar das mãos de uma gangue nos túneis do metrô. Novamente a assinatura visual explode com criatividade de encenação bastante simples, seguindo à risca as homenagens a Hitchcok que De Palma tanto preza.
Aliás, existem enquadramentos que evocam toda a elegância do mestre do suspense, como lentos movimentos de câmera, alta contraluz e uma relação de olhares muito poderosa. Tudo isso é melhor ilustrado na cena que Elliott vai até a estante na qual deveria estar sua preciosa navalha de prata para descobrir seu completo desaparecimento.
De modo menos genial que visto em Um Tiro na Noite, De Palma também apresenta o uso da objetiva de duplo foco, criando composições interessantes, embora nenhuma seja, de fato, tão marcante quanto as que ele faria no seu próximo filme.
Me Chame de Brian Hitchcock
Brian De Palma é um grande mestre do cinema americano, porém é exaustivo vê-lo tentando mimetizar o estilo de Hitchcock quando é evidente que ele tem talento o suficiente para descobrir sua própria assinatura cinematográfica. Com outra história razoável, De Palma consegue mostrar o quão pródigo e virtuoso ele é com a arte do Cinema.
Vestida para Matar é apenas um bom divertimento repleto de estilo de um gênio cinematográfico. Mas nunca será um de seus melhores longas pela experimentação tão medíocre da narrativa que nem mesmo Hitchcock acreditava ser uma boa ideia.
Vestida para Matar (Dressed to Kill, EUA – 1980)
Direção: Brian De Palma
Roteiro: Brian De Palma
Elenco: Michael Caine, Angie Dickinson, Nancy Allen, Keith Gordon, Dennis Franz
Gênero: Suspense, Thriller
Duração: 105 minutos.