Começar a balbuciar sobre o grande legado que a Pixar tem no mundo da animação no cinema nem chega mais a ser um irritante clichê hoje e sim apenas um atestamento de um fato! Eles, em pouco menos de uma década, já solidificavam seu nome como grandes criadores de perfeita arte da animação moderna até os dias atuais, não importando suas pequenas derrapadas aqui e ali, e que só vieram a inspirar vários outros de seus “concorrentes” ou admiradores. Com filmes que já fazem parte do subconsciente nostálgico de várias gerações, tanto quanto a Disney em seus tempos áureos.
E de todos os grandes filmes que a Pixar produziu até hoje, que os nomes nem preciso mencionar, onde Vida de Inseto se encaixa no gosto geral?
Este foi o segundo longa da Pixar e o segundo filme sob a direção do grande John Lasseter após seu estrondoso sucesso com o maravilhoso Toy Story, e que o fez antes de partir para o ainda melhor Toy Story 2, com a ajuda do jovem Andrew Staton no roteiro e co-dirigindo.
E mesmo tendo visto uma reação bem positiva da crítica, sinto reparar que poucos mencionam ou sequer valorizam o filme de Lasseter e Staton, muitas vezes sendo colocado como um dos “mais fracos” entre os filmes da Pixar. Talvez seja a sempre velha praga que venha assolar vários clássicos com o público de hoje, ou o mesmo que cresceu com esses filmes que é a desvalorização dos feitos passados, e afirmo que Vida de Inseto é um grande feito!
As Formigas Magníficas
Talvez seja pela infame fama do filme ser constantemente, até hoje, comparado com Formiguinhaz, outra bem conhecida animação lançada no mesmo ano envolvendo uma formiga operária querendo se provar perante sua colônia e salva-la de um iminente perigo, quase a mesma coisa que Vida de Inseto, com vários chamando um como cópia fajuta do outro e vice-versa. Mas uma comparação um tanto muito injusta eu diria, por conta das propostas claramente distintas.
Enquanto Formiguinhaz possui uma personalidade característica do seu universo das formigas muito… “humanizado”, com as personagens sempre dialogando em um calão adulto e sua colônia ter a estrutura de uma verdadeira cidade grande com empregos, lojas, etc…; já em Vida de Inseto temos formigas sendo verdadeiras formigas, enfileiradas colhendo seu alimento para sobreviver ao inverno, agindo como a natureza as criou. Uma conseguindo com uma narrativa um tanto adulta com sutis temas existencialistas (quase a versão animada de um filme de Woody Allen), enquanto Vida de Inseto cria sua história, bem familiar, para toda a família se entreter e relacionar.
A narrativa de Vida de Inseto parece ser inspirada na fábula “A Formiga e o Gafanhoto”. Nela, um gafanhoto faminto exige comida de uma formiga conforme o inverno se aproxima. Praticamente, a mesma proposta é posta em pauta na narrativa da obra da Pixar. Aqui, Flik, uma formiga inventora desacreditada, procura ajuda fora da colônia para recrutar insetos a fim de combater a nuvem de gafanhotos liderados pelo tirânico Hopper.
É como sempre dizem (ou pelo menos eu digo), que se Sete Homens e um Destino de John Sturges é considerado a versão americana de os Sete Samurais de Akira Kurosawa no Velho-Oeste, Vida de Inseto com certeza (talvez) merece o status de sua versão em animação, e em todos bons sentidos da coisa!
Seguindo essa lógica, e lá vai eu atestando o talvez óbvio novamente, o filme se solidifica assim como uma verdadeira fábula moderna da lendária história da busca dos heróis sem redenção para salvar seu povo. Mas que segue o foco mais diferente, e deveras muito emocionalmente recompensador do mesmo.
Se Toy Story lidava com a vida ‘imaginativa’ e fantasiosa dos bonecos que possuem vida própria e assumem sua responsabilidade de sua existência que era trazer uma alegria para uma criança; Vida de Inseto é sobre as formigas assumindo e encontrando o real sentido em sua natureza de vida e existência muito maior do que podem pensar, o verdadeiro sentido da vida de um inseto!
“Só imagine que essa pedra é uma semente!”
Os heróis que o protagonista Flik parte para buscar em sua pequena jornada, o divertidíssimo e carismático grupo do circo de insetos, são seres perdidos no rumo de suas vidas tanto quanto ele é na sua busca de se provar de valor perante a colônia devido suas inconvenientes e desajeitadas invenções, e ao mesmo tempo salvá-la desse destino quase escravagista em que vivem sob o domínio opressor dos gafanhotos. E no final, através da sua forte união, conseguem triunfar e encontrar o lugar de cada um e a felicidade que tanto buscavam.
Uma situação da fábula que resume bem as lições morais sobre as virtudes do trabalho árduo e o planejamento para o futuro que vem exatamente do conto da Formiga e o Gafanhoto, só que de certa forma mais ampliada para os temas de união e amizade.
Pode se discutir que por essa perspectiva, o filme possui um certo teor político no que se refere ao tema do “união faz a força” que ecoa no desenvolvimento da trama, assim como Sete Samurais tocou no assunto do sofrido proletariado sendo explorado pela minoria opressora. E de certa forma lembra o que Hayao Miyazaki fizera em Princesa Mononoke com a natureza se unindo contra o domínio do homem, ou nesse caso as forças que os oprimem representado no pequeno bando de Hooper, só que tudo colocado em um tom mais ameno e sutil da leve e concisa narrativa que se constrói aqui.
E as comparações orientais não param por aí!
Uma força da Natureza!
Não é de hoje que Lasseter é um fã confesso de Miyazaki e de como o seu trabalho no Studio Ghibli o fortemente lhe influenciou na Pixar, e aos outros grandes diretores que a consistem. Sua capacidade de contar suas invocativas e fantasiosas histórias de forma tão madura e de mente aberta para tanto o público infantil quanto o adulto. Marca essa que se encontra na maioria dos filmes da Pixar e muito aqui!
Vida de Inseto é, literalmente, um filme pequeno. Sutil. Sem altas pretensões e muito focado na construção da pequena história do desafio que se apresenta à pequena colônia de formigas. E essa talvez seja a grande especialidade de Lassester em sua direção de animações: os pequenos ambientes, as pequenas histórias, explorar o foco de sua trama em uma escala tão pequena e sutil, e assim dessa forma, ressoando sua verdadeira magnitude na essência dramática da história. Basta olharem para as grandiloquências gritantes de Carros 2 onde ele falhou, e na soberba escala tão intima que ele construiu em seus Toy Story pra reparar essa disparidade e do quanto estou certo!
E ao abordar essa pequena escala, o seu Vida de Inseto assume uma vertente de narrativa visual que muitos poucos reparam, algo que ele tira exatamente de Miyazaki e este que já se inspirava nisso em Kurosawa. Contando boa parte da história sim nos diálogos bem estruturados e escritos recheados de um humor afiado e certeiro junto do drama maduro bem elaborado, mas também na sua composição visual e a forma que ele usa e abusa da ambientação desse mundo das formigas aqui.
Com a própria natureza aqui sendo muito usada de forma narrativa em pequenas, mas bem relevantes doses ao longo do filme: irônico que a pequena cidade dos insetos que Flik inicia sua busca pelos heróis se localiza bem perto de um pequeno resquício de civilização humana, um trailer no meio do nada (imagina a quantidade de insetos numa cidade grande); a fuga da pequena Dot no meio do filme, em pleno campo gramado coberto de neblina parece algo tirado de um filme de Kurosawa (como se a natureza estivesse no lado das formigas em seu embate contra os gafanhotos); e no clímax tem o pequeno incêndio indicando o conflito, logo seguido da grande chuva indicando a lavagem do mal e a renovação, assim como um certo Sete Samurais teve em seu icônico clímax não é mesmo?! (e meio que tirado do clímax de Rei Leão também, mas a metáfora tá ali e funciona!).
Sem falar na excelente concepção do passarinho na história. Ao nosso olhar humano um ser tão fofo e puro, mas na perspectiva das formigas um verdadeiro monstrengo faminto e muito intimidador. Que de inicio parece um iminente perigo a vida e no final um salvador ala Deus Ex Machina.
É inventivo, original e inteligentes composições como essas que tanto consagraram Lassester, e que ele só veio a inspirar os seus aprendizes nos futuros filmes do estúdio. E nisso ele só é ajudado e beneficiado mais ainda pelo visual ESTONTEANTE do filme!
Um pitéu de animação!
É apenas embasbacante assistir ao filme hoje e ver como o visual da animação POUQUÍSSIMO se datou, quase ao efeito de nulo. As cores ainda estão tão vibrantes e vivas quanto estavam no final do século passado, e a movimentação 3D dos personagens é apenas perfeita, e o nível de imersão nos ambientes é quase instantânea.
Ver o pequeno mundo das formigas criado aqui, uma pequena ilhazinha em volta de um pequeno lago no meio de um campo esverdeado, se torna aos nossos olhos um mundo gigantesco quando a direção tão exímia de Lasseter consegue nos colocar tão perto dos personagens em um nível tão intimista, ainda mais do que em Toy Story ouso dizer!
Até nas breves, mas excelentes sequências de ação Lasseter mostra um domínio de ritmo, escala e energia que poucos diretores de animação hoje conseguem evocar com tanta sutileza clareza sem seus planos. A perseguição do passarinho final do 1º ato é um exemplo perfeito disso e um verdadeiro manjar visual, sem falar de tão excitante que consegue ser com boa dose de suspense e ameaça.
Onde falha talvez seja nos cenários de grau fundo onde nota-se o efeito desenhado mal acabado e sem a profundidade de campo que podemos ver em animações de hoje, mas isso também acontece em pouquíssimas cenas e apenas são mero pitaco em um trabalho que merece se definir como perfeito.
Outro trabalho a se destacar aqui é a trilha sonora de Randy Newman, com o compositor desde cedo desde sempre, realizando aqui uma trilha vibrante, grandiosa, que evoca o espetáculo e a escala de grandiosidade da pequena história das pequenas formigas. Destaque para o seu belo pequeno single “The Time of Your Life” que merecia ser tão bem lembrada quanto seu “You’ve Got a Friend in Me” de Toy Story, ou pelo menos para mim que vivia ouvindo ambas quase que diariamente de tão nostálgicas que conseguem ser até hoje.
Exatamente o que Vida de Inseto é, um de muitos espécimes de excelentes, inteligentes, divertidas e entretidas animações que a Pixar nos deu e nos dá até hoje com louvor, e que não merece ser esquecida ou desapreciada como é (foquem essa negatividade em Carros 2 povo). E que deixa uma certa saudade de ver John Lassester mexendo nessas histórias em pequenas escalas tão intimistas, bom, vamos ver o que saí de Toy Story 4 vindo num futuro não tão distante. E que crie mais histórias tão profundas, evocativas e nostálgicas como essa.
Vida de Inseto (A Bug’s Life, EUA – 1998)
Direção: John Lassester e Andrew Staton
Roteiro: Andrew Stanton, Don McEnery e Bob Shaw
Elenco: Dave Foley, Kevin Spacey, Julia Louis-Dreyfus, Hayden Panettiere, Phyllis Diller, Richard Kind, David Hyde Pierce, Joe Ranft, Denis Leary, Jonathan Harris, Madeline Kahn, Bonnie Hunt, Michael McShane, John Ratzenberger, Brad Garrett, Roddy McDowall, Edie McClurg, Alex Rocco e David Ossman
Gênero: Aventura, Animação
Duração: 95 min