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Crítica | Watch Dogs 2

Creio que nenhum jogo sofreu tanto backlash quanto o primeiro Watch Dogs em seu lançamento em maio de 2014. Anunciado na E3 de 2012, a IP da Ubisoft gerou gigantesco hype no público que reconheceu o potencial audacioso de um sandbox manipulado inteiramente através de hackeamentos comandados pelo smartphone. Além disso, a apresentação era de encher os olhos.

Enfim chegava o potencial da nova geração. Ou não. Watch Dogs começou bem com sua antecipação tremenda e aprovação de público, porém assim que os adiamentos de seu lançamento começaram e mais prévias em vídeo foram liberadas, o jogo virou.

Algo de errado estava acontecendo na produção do game. De um ano para o outro, o jogo tornou-se mais feio, de texturas mais porcas, iluminação aquém do que foi prometido pela prévia feita na revelação ao público. Esses constantes downgrades se tornaram a polêmica que assombrou a Ubi durante o ano inteiro.

Quando enfim lançado, a recepção da imprensa e do público foi completamente mista. Particularmente, tinha gostado da estreia desta nova franquia, mas era evidente os notórios problemas que foram apontados incessantemente em coméntarios on-line. Ironicamente, a internet tornou-se inimiga de Watch Dogs.

Mas como a própria Ubisoft diz: “não iniciamos uma nova IP sem enxergar um potencial de franquia. ”. E, querendo ou não, o jogo marcou sucesso nas vendas.

Dito e feito. Com pouco espaço entre sua revelação e lançamento, Watch Dogs 2 seria o pedido de desculpas da desenvolvedora com seu público – mesmo que não acredite que fossem necessárias tamanhas desculpas, pois a reformulação aqui é bastante intensa. Impossível crer que se trata da mesma franquia.

Hackers da Nova Geração

A segunda empreitada da Ubisoft no mundo hacker parte através de uma narrativa tão batida quanto a história de vingança do primeiro game. Temos aqui o clássico agente protagonista batalhador da causa vs. Sistema organizado gigantesco maquiavélico. Ou seja, Rebeldes contra Império, na comparação mais nítida possível.

Acompanhamos isso através da ótica de Marcus Holloway, um jovem hacker recém-integrado ao grupo de hackers “iluminados”, Dedsec – sim, o mesmo do game anterior. Depois de invadir uma central da Blume e descobrir que seu nome é classificado em ordem de alta periculosidade, Marcus fica indignado e ao ficar bêbado com seus amigos na praia, motiva todos a acabar com a companhia que faz a manutenção do ctOS da cidade de São Francisco.

De longe, o pior aspecto de Watch Dogs 2 é sua história que considero um tanto inferior à jornada de Aiden Pearce que também não era lá grandes coisas em termos de narrativa. O problema majoritário talvez esteja concentrado no exagero na dose da reformulação da atmosfera da franquia.

Enquanto Watch Dogs era um conto intenso de vingança e descobertas diversas sobre invasão de privacidade que se relacionavam diretamente com a tragédia do protagonista, aqui não há essa intensa correlação para deixar o texto mais coeso, coerente; afinal, na progressão do jogo, só vemos que o software estava correto ao indicar Marcus como uma ameaça em potencial.

O incidente incitante é fraco e, portanto, toda a motivação que cerca o grupo para agir também segue o mesmo rumo decepcionante. É engraçado notar esse desleixo com os personagens e a narrativa em um jogo de 2016, já que toda a indústria se caminha para métodos cada vez mais intrincados de storytelling. Pegue GTA V, Uncharted 4, God of War, Gears of War, Dishonored, The Last of Us, entre diversos outros.

Na contramão da narrativa cinematográfica

É evidente que a indústria sacou o básico: por que o jogador investiria seu tempo se não consegue ter empatia com o personagem? Não à toa é uma revolução de jogos puramente cinematográficos, mais próximos de entretenimento sério do que jogatina despretensiosa proporcionada por outros excelentes títulos das gerações passadas.

A narrativa, apesar de falhar com absolutamente todos os personagens – até mesmo com rostos já conhecidos e com bom backstory, é mais descontraída e festeira. O que é um tanto prejudicial e contrastante com o grau de ameaça que a Blume representa para os heróis. Aliás, nem isso é muito bem transmitido ao jogador, já que o lado antagonista parece nunca se esforçar em deter o grupo hacker mesmo depois de terem prejudicado diversos dos planos maléficos da empresa.

Porém seria mentira dizer que não há algum ponto interessante nesse grupo bastante apático de hackers excêntricos. O protagonista Marcus realmente é uma incógnita gigantesca. Nós nunca o conhecemos de fato, apenas sabemos que é um gênio hacker de bom senso de humor, que gosta de nerdices e tão logo se torna o líder do grupo – mesmo com os roteiristas enfatizando o contrário. No que salva no personagem é a dublagem excepcional de Ruffin Prentiss que faz o possível para tornar críveis a quantidade massiva de diálogos ruins construídos pelos roteiristas – digamos que tentam ser descolados até demais, infantilizando excessivamente a linguagem de pessoas que já estão próximas dos trinta anos.

Aliás, é justamente pela falta de clareza e qualidade nos diálogos que os personagens saem tão prejudicados, os tornando em plenas caricaturas superficiais. Um ponto de drama interessante está concentrado no histérico Wrench – o maluco com a máscara eletrônica que traduz suas emoções através de caracteres de computador. Há um motivo interessante e clichê que explica o motivo do uso do equipamento, porém isso aparece tão rápido quanto desaparece na história. Outro ponto de difícil credibilidade atinge o personagem Horatio que, apesar da escolha corajosa dos roteiristas, ele tão logo se torna esquecível na trama.

Um roteiro esquisito, sem sombra de dúvidas. Mas por que estou enfatizando tanto a narrativa aqui? Simples: o discurso do jogo é muito ideologizado e os roteiristas parecem não notar o quão incoerente e hipócrita é a estrutura de sua escrita. Há um intenso debate sobre privacidade, liberdade e vigilância sendo que os heróis batalham para “abrir os olhos” da população de São Francisco, os informando sobre como são manipulados, da venda de dados privados coletados por redes sociais, empresas de crédito, bancos, ferramentas de busca, etc para a companhia Blume, administradora do ctOS.

Porém, constantemente, os protagonistas têm poder superior ao da Blume, além de utilizarem métodos incoerentes para a causa iluminadora que batalham tanto. É uma história que lembra bastante sobre os bastiões da virtude durante a plena Revolução Francesa que depois se tornaram déspotas ainda mais violentos. Enfim, é incoerente e pouco se salva na narrativa de fato – o melhor a se fazer e ignorar a pretensão do jogo em sua mensagem mal formulada e justificada.

Paródias, memes e referências

Onde os roteiristas acertam é o tom mais light que permeiam a maioria da narrativa. Watch Dogs 2 usa constantemente o humor da paródia para fazer críticas ácidas a elementos reais. Um dos melhores exemplos é o excelente conjunto de missões do arco sobre a igreja New Dawn que na verdade se trata de um mecanismo intenso de lavagem de dinheiro.

E um ator fictício de ação é o principal promoter da igreja até questionar sua fé e ser encarcerado pelos sacerdotes da religião. Para quem não associou ainda, trata-se de uma representação da história controversa de Tom Cruise e John Travolta com a igreja da Cientologia – a modelagem do nariz do personagem é igual ao formato do de Cruise. Como a carga é cheia de humor, a paródia funciona muito e já marca o melhor conjunto de missões do jogo – são muito divertidas mesmo!

Em seguimento, Marcus entra em combate com diversos outros simulacros de empresas reais como a Nudle – que seria a Google, a Invite – facebook, entre outras diversas companhias. Enquanto o humor da paródia rapidamente decresce, alguns diálogos entre Wrench e Marcus acabam rendendo momentos excelentes na jogatina: obviamente, o melhor se trata da discussão entre a treta monumental entre Aliens e Predadores.

Um hacking bem sucedido

O design de jogo é o melhor ponto de Watch Dogs 2. A Ubisoft corrigiu os milhares de críticas que os fãs e especialistas direcionaram ao primeiro jogo. A apresentação certamente é um dos pontos mais trabalhados. O visual do jogo é belo, consegue atingir alta draw distance, com poucos pop ins, quase nenhum atraso no carregamento de texturas e poucas quedas de quadros por segundo.

O jogo é estupendo no visual e se mantém assim. Abandona totalmente o tom sóbrio de cores frias do anterior para mergulhar em uma experiência colorida, contrastada e muito saturada para combinar com o estilo colorido dos personagens. É a melhor representação de São Francisco em jogos até agora. Detalhes de arquitetura característicos e pontos turísticos foram recriados com muita acuidade que inspiram o jogador a parar sua jogatina apenas para observar a beleza e o movimento orgânico da cidade e arredores. Definitivamente é um sandbox vivo lotado de NPCs que agem com independência entre diversas atividades distintas: tirando selfies, mexendo com óculos de realidade virtual, passeando com animais domésticos, dirigindo, comendo, flertando, namorando, etc. Atividades infinitas que mostram um cuidado raro com NPCs nos jogos atuais.

O visual fotorrealista estupendo também acompanha a qualidade do gameplay e de diversas mecânicas recicladas e aprimoradas. Uma das adições mais interessantes é a impressora 3D. Através dela que compramos armas e os dois dispositivos que ajudarão muito o jogador na jornada: um drone e um carrinho de controle remoto.

Ambos são equipamentos cruciais para te auxiliar em completar as missões do jeito mais stealth possível. O carrinho consegue hackear servidores que bloqueiam o acesso de portas, além de conseguir chaves de acesso portadas por guardas que rondam os diversos locais que teremos de invadir durante a campanha. Já o drone é adquirido depois de certo progresso devido seu custo alto de recursos. Ao contrário do carrinho, ele não consegue hackear servidores, mas mapeia todos os inimigos do mapa, te ajudando a evitar contato com as rotas de patrulha dos guardas.

Acredite, a abordagem em stealth é a melhor e a mais encorajada. O jogo é extremamente punitivo e difícil quando Marcus entra em combate direto com guardas, bandidos ou policiais. Além de o grau de dificuldade ser alto, a mecânica dos tiroteios é precária, até pior do que a do jogo anterior já que toda a influência de Splinter Cell desapareceu aqui. O armamento é pouco satisfatório, já que não há possibilidade de desenvolver armamentos aprimorando suas peças – para armas mais fortes, é preciso comprá-las na impressora 3D e juntar dinheiro em Watch Dogs 2 é algo custoso para quem focar somente na campanha.

O mapeamento da roda de armas também não colabora já que é nada intuitiva – é preciso segurar seta para cima e então selecionar outra arma. Em um tiroteio intenso, é uma agonia aguardar o jogo reconhecer a solicitação da roda de armas. E com uma demora relativa dessas, a passagem para o game over é praticamente certa.

Mesmo que a inteligência artificial não seja muito brilhante, avançando sempre em berserk, eles tentam te flanquear infligindo dano alto a cada bala. De certa forma, deixando o escopo do tiroteio e do combate corpo-a-corpo menos refinado, é adequado a figura de Marcus que certamente não tem aquela pegada militar e de casca-grossa. Por outro lado, é algo restritivo com toda a certeza.

O grosso das missões da campanha é sim muito repetitivo. Temos diferentes variações da mesma coisa: dirigir até o destino, ter uma conversinha simpática e ganhar o objetivo, invadir o local, hackear os servidores, coletar dados e injetar vírus para então fugir da área. É sempre a mesma coisa: dirige, invade e foge. Porém há a diferença de objetivos: às vezes explodimos algo, outras libertamos pessoas ou simplesmente hackeamos e enfrentamos oponentes em horda ou temos uma sessão com puzzles de canos para energizar o servidor e então hackeá-lo – design de fase já presente na franquia.

A graça é conceito aberto de abordagem nas infiltrações – algo que louvo, aliás. Na mecânica, Watch Dogs 2 é plenamente um jogo da atual geração. Podemos abordar os objetivos de diversas formas: usando os robôs, hackeando câmeras, montando armadilhas elétricas remotamente, explodindo granadas de soldados, distraindo oponentes com mensagens para então abatate-los furtivamente e, a principal novidade do modo hacker: colocar a cabeça de oponentes à prêmio.

Podemos enquadrar os soldados como fugitivos da polícia ou colocando uma recompensa pela sua eliminação. Assim que criamos essas informações falsas, policiais ou sicários já aparecem atirando para capturar ou matar o alvo criando a distração perfeita para você caminhar até seu objetivo sem muitas dificuldades.

Mesmo com o combate aprimorado e das opções de hacking, a Ubisoft não conseguiu acertar na dirigibilidade dos veículos. A maioria deles parecem colados ao chão, se movimentando como carrinhos de bate-bate de tão sensíveis que são os controles. Para mudar a direção que o veículo vai, é preciso dar toquinhos no analógico para o carro não se engambelar todo, derrapando pelas ruas.

Além da dificuldade para dirigir os veículos, muitos dos carros parecem “decolar”, ir de zero a cem quilômetros por hora em questão de segundos tornando a direção totalmente arcade. Os modelos de colisões também deixam a desejar, apesar de ser o segundo melhor dessa geração de consoles.

Mundo conectado

Com a mecânica aprimorada em diversos sentidos, a desenvolvedora deu atenção especial em elementos de complementação do game. Finalmente é possível customizar o protagonista com diversas roupas e acessórios conferindo o look único que cada jogador gosta. Existem lanchonetes, lojas de roupas e diversos pontos para tirar selfies e ganhar recompensas. Há até mesmo aplicativos de carona que você pode utilizar para ganhar algum trocado em tempos difíceis.

São diversos apps que podemos comprar e baixar para o smartphone. Até mesmo há aplicativos de reconhecimento de músicas do jogo para serem incluídas na biblioteca – como um Shazam. Além das missões principais da campanha, há conteúdo adicional para os jogadores entusiastas. Existem missões cooperativas online, missões secundárias com narrativas exclusivas, além de corridas diversas com drones, carros e veleiros. Também existem missões de caça-recompensas, eliminando criminosos e outras gangues.

Evidente que todo o hacking envolvendo a cidade também se faz presente – sejam apagões, explosões de canos de gás, desligando semáforos, etc. Inclusive, agora, podemos controlar remotamente carros diversos com comandos simples. Os perfilamentos continuam funcionais e revelam os segredos inusitados de alguns transeuntes. É uma das expressões artísticas sobre a extensão humana mais interessantes que já vimos em obras audiovisuais.

O modo multiplayer é robusto como sempre contando novamente com as invasões de outros jogadores na sua jogatina. O destaque é a adição do modo pega-pega que ainda irá ao ar. Caso você mate gente demais no free roam, torna-se instantaneamente um alvo para outros 3 jogadores que invadirão seu jogo para te caçar junto com a polícia.

Vigilantes renascidos

Apesar de tantas fraquezas, falhas e desinteresse na narrativa, Watch Dogs 2 é um game divertido rendendo até trinta horas para fechar o jogo completamente. A Ubisoft mostrou respeito com seus consumidores corrigindo praticamente tudo que incomodou no título original. Se aproveitando de forte identidade visual a la pixel art, pegando conceitos de Mr. Robot e da histeria cômica colorida vinda de Sunset Overdrive.

A baia de São Francisco nunca fora retratada de modo tão vivo e belo. É um deleite se aventurar na cidade e descobrir novas atividades. Watch Dogs 2 tem de tudo um pouco desses títulos sandbox que infestam as prateleiras todos os anos.

Justamente onde o jogo poderia contar com mais presença e identidade, ele simplesmente descarta a alma que moveria a narrativa em troca de afetação, exagero, excentricidade plástica fugaz e histeria através de personagens pouco afáveis em uma narrativa perdida.

Por outro lado, para o jogador que não liga tanto para a história, o game é um prato cheio. A sensação de ter poder nas palmas das mãos do personagem é excelente e acredite, a Ubisoft levou o hacking a patamares nunca vistos antes. Além de gráficos bonitos, bom gamaplay e level design, o jogo conta uma trilha musical excepcional Hudson Mohawke conferindo todo o ar eletrônico necessário para as enervantes músicas.

Watch Dogs 2 é uma notória evolução para a franquia e merece ser jogado. Os vigilantes da Ubisoft podem ficar tranquilos: a franquia caminha para terrenos cada vez mais promissores.

Pontos positivos: Recriação da Baia de São Francisco, ótimos gráficos, ótima paleta de cores, diálogos bem humorados, paródias certeiras, game play inteligente e fluido, trilha musical original, bom tempo de campanha, variedade de objetivos nas missões, variedade de atividades de NPCs, bom grau de customização, diversas missões segundarias e opcionais.

Pontos negativos: Narrativa incoerente, pouco coesa e fraca. Ou seja, narrativa ruim que poderia ser muito melhor. Falta de identidade própria da franquia, personagens mais rasos que um pires, discurso profundamente ideológico que não se justifica dentro da narrativa satisfatoriamente, péssima dirigibilidade de veículos, curva de dificuldade elevada quando combate direto e assim forçando o jogador a escolher a abordagem stealth.

Agradecemos a Ubisoft Brasil pela cópia gentilmente cedida para a análise.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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