Akira Kurosawa era um homem atento. Sabia que um bom cineasta precisava se renovar de tempos em tempos e, para isso, estava sempre ligada nos grandes sucessos do cinema mundial, principalmente do americano. Com a ascensão absoluta do western e o congestionamento de títulos muito parecidos, Kurosawa se sentiu inspirado ao ver Os Brutos Também Amam e decidiu traduzir o western para o gênero do cinema samurai que ele já estava muito acostumado a realizar e injetar elementos novos.
Garantido pelo sucesso agradável da comédia de aventura A Fortaleza Escondida, o diretor novamente conseguiu driblar a Toho para realizar um novo blockbuster que, apesar de popular, seria muito violento. Com Yojimbo, o cineasta provaria mais uma vez o quão essencial é para o. Cinema mundial já que seu faroeste adaptado inspirou Sergio Leone a fazer a trilogia do Homem Sem Nome de um modo tão descarado que até mesmo o cineasta japonês se sentiu ofendido chegando até a processá-lo por plágio.
A medida drástica não é por menos, afinal Yojimbo pode ser considerado como outra grande obra prima na carreira prolífica do cineasta.
O Samurai Desconstruído
O fato do longa ser tão fascinante é muito por causa da mudança substancial de estilo narrativo e estética cinematográfica que Kurosawa propôs aqui. Na narrativa, acompanhamos a jornada do ronin (um samurai sem mestre) andarilho sem nome, que se auto intitula falsamente como Sanjuro. Sem destino em sua jornada, ele decide na sorte para qual lugar deve ir.
Trilhando às cegas, o ronin encontra uma cidadezinha rural perdida no interior do Japão. Outrora um lugar amigável, mas agora, sob domínio de dois chefões do crime organizado que controlam o comércio têxtil e de bebidas, o lugar virou um completo caos devido a guerra entre os dois criminosos que tentam roubar o campo de comércio um do outro, lançando a cidade em um estado permanente de guerra civil. Se hospedando no restaurante local, Sanjuro vê uma boa oportunidade de enriquecer e livrar a cidade dos problemas causados pela violência endêmica, mas de modo inteligente na tentativa de também salvar sua pele, após se meter em algumas enrascadas.
A diferença de Yojimbo já se encontra na abertura do filme. Com câmera na mão, trilha musical repleta de estilo e energia, Kurosawa acompanha seu samurai sem nome andando repleto de marra à caminho da cidade até ser bem-vindo no lugar ao se deparar com um cachorro mordendo uma mão decepada. A abertura é simplesmente genial por dar todo o tom que o diretor deseja: humor negro e violência declarada, além de desconstruir firmemente a postura do samurai que havia feito nos filmes anteriores.
É só reparar no modo que o excelente Toshirô Mifune se porta ao logo da narrativa, sempre torto, desbocado e preguiçoso lançando olhares cínicos e risadas cruéis ao notar a estupidez que o cerca. Ele foge do padrão altivo e honroso dos samurais elegantes, pois é sujo e maltrapilho, sempre chacoalhando os ombros em um tique nervoso como se expulsasse pulgas do próprio corpo. E, ainda assim, o ronin é um gênio completo na arte do combate e da estratégia, o tornando um dos anti-heróis mais improváveis de todo o cinema. É um trabalho de caracterização genial.
A moral estética presente em todos os filmes do cineasta também se faz valer em Yojimbo. Aqui é bastante claro que a inteligência sobrepuja a violência, além de infiltrar outras mensagens honradas sobre justiça, honra e lealdade, além de elaborar uma crítica genial sobre confiança cega já que temos Sanjuro engenhando seu jogo psicológico com os dois chefes para que ambos intensifiquem o combate. Na primeira vez que testemunhamos essa guerra, vemos como o protagonista é excepcionalmente esperto ao ficar no topo do terreno, se divertindo como os dois lados são covardes em se enfrentar em uma cena bastante cômica principalmente pelo desfecho esperto.
A narrativa é forte o suficiente para sustentar o longa e todas as viradas bastante lógicas. O diretor finalmente compreende o valor de uma duração mais objetiva de um longa-metragem, acertando em cheio no ritmo das cenas. Também colabora o fato de finalmente testemunharmos alguma espécie de desenvolvimento de personagens nesses longas samurai de Kurosawa.
Apesar de passar longe do excepcional, o diretor compreende que Sanjuro é uma figura tão misteriosa e fascinante que não pode ser simplesmente um totem de moralidade. O personagem carismático é certamente difícil, pois ele é sádico, beberrão e aproveitador, mas ao mesmo tempo apresenta lealdade para com o lado certo do conflito, protege quem ama e exibe compaixão através de uma linha narrativa paralela envolvendo a tragédia de um casal separado após uma aposta errada em um jogo de azar.
É exatamente por esses retratos contrastados de Sanjuro que Yojimbo é um filme incompreendido a ponto até mesmo de Kurosawa ter se arrependido de o realizar quando mais velho. O motivo é bastante simples e até bem evidente dentro do longa: ele nunca visou engrandecer a violência ou glorificar a matança, mas sim criticar as consequências de um conflito violento. Afinal, no clímax do longa, vemos como a cidade está destruída, além de seu comércio e seus habitantes.
O lugar se torna completamente fantasmagórico por conta das ações de Sanjuro incitar a guerra. Com o cinismo final do personagem, Kurosawa mostra como ele sempre foi indiferente a tudo aquilo que o cercava, não dando a mínima para o futuro dos poucos cidadãos sobreviventes da desgraça.
Porém, como o filme é tão cheio de estilo, com coreografias maravilhosas nos duelos, além de ter um protagonista extremamente habilidoso com a katana que consegue se livrar de todas as situações adversas de modo crível, outros cineastas só preferiram ver o glamour da história, inspirando uma torrente de filmes samurai na mesma linha estética glamorosa e violenta de Yojimbo.
Porém, no que faltou de sensibilidade em outros cineastas, temos em enorme quantidade em Kurosawa. Sempre fascinado pelo movimento da encenação mesmo em enquadramentos estáticos, ele não aposta somente pela aglomeração grande de pessoas para preencher o poderio visual do Tohoscope, mas principalmente por conta da abordagem com o vento e a poeira ao longo de todo o filme. É através desses elementos simbólicos que Kurosawa trabalha a crescente escalada de caos que acontece na cidade, utilizando tempestades de areia com ventania moderada a extrema em picos dramáticos simbolizando a degradação plena que ocorre no lugar.
Aliás, por mencionar isso, é preciso apontar como o diretor se revoluciona em termos de atmosfera com o clímax inesquecível da obra, com Sanjuro enfrentando uma gangue inteira, incluindo um pistoleiro antagônico muito marcante ao longo do filme. É aqui que finalmente começamos a ver a origem da clássica linguagem dos filmes samurai em duelos catárticos que influenciam até hoje a franquia Star Wars. Sem apostar em closes, Kurosawa injeta toda a força através de planos abertos contrastes com a caminhada de Sanjuro e da gangue até culminar no início da rápida matança. É um momento histórico, preciso e emocionante.
O Samurai vagabundo
Conseguindo equilibrar perfeitamente questões problemáticas em sua carreira como o intenso jogo moral, o desenvolvimento de personagens e o alicerce narrativo, Kurosawa criou uma de suas melhores histórias em um filme com senso estético apaixonante. Ele nos convida a assistir e espiar a vida desse ser tão misterioso do mesmo modo que o protagonista espia a ruína humana na profundidade de campo das janelas de sua morada provisória.
Um exercício fantástico repleto de humor, sem tirar a dimensão trágica da morte e do sofrimento de um povo sem medo de caminhar nas trevas sombrias. Um conto de um samurai vagabundo que tem o poder de trazer o céu e o inferno conforme for sua vontade. Yojimbo é realmente tudo isso que falam.
Yojimbo – O Guarda-Costas (Yôjinbô, Jápão – 1961)
Diretor: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Ryûzô Kikushima
Elenco: Toshirô Mifune, Tatsuya Nakadai, Yôko Tsukasa, Isuzu Yamada, Takashi Shimura, Katamari Fujiwara, Ejirô Tôno
Gênero: Ação, Drama, Western, Samurai
Duração: 110 minutos