A tagline que seguiu a campanha publicitária de Zodíaco trazia a seguinte frase: “há mais de uma forma de perder sua vida a um assassino”. É uma tag genial e que, não só provoca calafrios na espinha pelas suposições que instiga, mas também perfeitamente sintetiza o núcleo do filme de David Fincher, que completou 10 anos de seu lançamento na semana passada. Aproveitando essa data muito especial, nada mais justo do que relembrar essa poderosa obra-prima, que facilmente merece um espaço como um dos melhores filmes do gênero suspense da última década.
A trama se inspira nos eventos reais que assombraram São Francisco, Vallejo e outros condados da Califórnia na década de 1970. A redação do San Francisco Chronicle recebe uma carta misteriosa assinada pela figura do Zodíaco, que se diz responsável por dois assassinatos diferentes na região, e que iniciaria agora um ciclo de mortes em uma espécie de provocação à mídia. Enquanto toda a cidade desespera-se para decifrar a identidade do assassino, o cartunista Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal) inicia uma investigação particular que o coloca no melhor e mais detalhado caminho para encontrar a verdade, em uma jornada que lhe custará anos de dedicação e renderá uma psicótica obsessão, resultando no revelador livro que serve de inspiração para o roteiro de James Vanderbilt.
É assustador pensar em Zodíaco. Não só pelo fato de termos uma história amendrontadora contada com absoluta maestria, mas em especial pelo fato de ser um relato verídico de eventos nunca concluídos de forma concreta; o Zodíaco nunca foi capturado, e a polícia nem ao menos conseguiu identificar o suspeito definitivo por trás de suas cartas, tendo apenas alguns palpites – uns mais fortes do que outros. Por tais motivos, assistir ao filme provoca um grande desconforto, por sabermos que a história que acompanhamos não tem um final, que o próprio assassino do Zodíaco poderia estar escondido em algum lugar; em determinado momento do filme, ele até menciona que gostaria de um bom ator para interpretá-lo em uma suposta adaptação cinematográfica dos eventos (na época, o primeiro Dirty Harry de Clint Eastwood). Dessa forma, já seria um filme sinistro por si só apenas pela natureza de seus eventos. É ainda melhor quando temos um mestre assumindo o navio.
Assassinato
Podendo ser descrito como um cruzamento entre O Silêncio dos Inocentes e Todos os Homens do Presidente, Zodíaco beneficia-se dessa mistura incomum graças ao controle absoluto de David Fincher. Tão obcecado pela perfeição quanto seu protagonista, o diretor traz uma fantástica reconstrução de época e uma fidelidade às características mais minuciosas do caso, desde o retrato falado do “uniforme” do assassino até os diversos eventos midiáticos que se desenrolaram durante a época, como o infame programa de TV de Jim Dunbar. É um trabalho primoroso de toda a equipe do design de produção e figurino, que mantém uma estética realista e ao mesmo tempo expressionista para todos os elementos visuais; a bagunça “organizada” da redação do Chronicle reflete o desespero e os esforços dos jornalistas, assim como o porão de um projecionista transforma-se em um verdadeiro calabouço graças à nossa percepção e a construção do clima do ambiente.
Especializado no suspense graças ao aterrador Se7en: Os Sete Crimes Capitais e até obras menores – mas eficientes – como O Quarto do Pânico e Vidas em Jogo, Fincher usa toda sua habilidade para criar alguns dos momentos mais impactantes da sua carreira. A cena que abre o filme, com o Zodíaco atacando um casal em um carro, é excepcional em sua habilidade de lentamente construir a tensão: acompanhamos o diálogo do casal, à medida em que a presença de um estranho os seguindo vai se tornando mais forte e sua presença passa a ser notada pelos personagens; e o trabalho de fotografia do falecido Harris Savides é primoroso ao manter o ambiente sombrio o bastante para que não vejamos o rosto do assassino, mas bem iluminado pelos faróis dos veículos e a lanterna do antagonista.
Tal habilidade em arrepiar o espectador permanece nas seguintes cenas que reconstroem descrições e relatos dos ataques do Zodíaco. A primeira delas surpreende pelo assombroso contraste: um casal apreciando um belo dia no lago, com uma paleta de cores viva e permeada por elementos da natureza como flores, grama e um céu azul… Até vermos o Zodíaco trajando uma roupa e máscara exageradamente pretas, passando a impressão visual de termos um elemento descolado do cenário ali, algo que exacerba o cruel ato de violência que se segue; e a ausência de música, substituída pelos distantes cantos de passarinho e sons da natureza, só contribui para o tremendo desconforto da sequência inteira. É uma perfeita representação do Mal invadindo um ambiente sereno.
É algo que se mantém até o restante do filme, mas em especial durante sequências que mantém esse desconforto. Temos o ataque do assassino a uma mulher dirigindo em uma rodovia (o silêncio e o fato de nunca vermos o rosto do assassino são fatores determinantes) e o assassinato de um taxista, retratado de forma mais estilística graças a um elaborado plano sequência que acompanha o percurso do veículo em um plano plongée sensacional – e o grande choque é que não sabemos que o assassino está ali até o momento em que dispara a arma contra o motorista. E até mesmo cenas sem a presença de violência tornam-se sinistras graças a essa condução, principalmente a antológica entrevista dos policias com Arthur Leigh Allen (John Carroll Lynch), o mais forte suspeito de ser o assassino, que torna-se praticamente um exercício de investigação; já que Fincher enquadra os rostos em planos centrais que obrigam o espectador a observar cada detalhe de sua expressão fria durante as respostas.
Obsessão
Então, temos a porção do filme que se identifica mais com Todos os Homens do Presidente (ou melhor, uma versão sinistra da obra-prima de Alan J. Pakula), marcada pelo desaparecimento do assassino e a tomada de Graysmith em sua própria investigação particular. É aqui que o texto de James Vanderbilt revela sua eficiência ao exibir e relatar os fatos do caso real com clareza e eficiência, de forma que o espectador sinta-se ao lado do protagonista enquanto este vai fazendo suas descobertas; todo o diálogo e exposição dos eventos é acessível, e nunca perde seu caráter cinematográfico, fruto também da primorosa montagem de Angus Wall, que organiza a cadeia narrativa e oferece um fluxo palpável para a passagem do tempo – considerando-se que os eventos do filme se alastram por mais de duas décadas.
Porém, Zodíaco também deve muito fantástico trabalho de seu elenco.
Jake Gyllenhaal apresenta uma composição perfeita para Robert Graysmith, que é descrito como “um escoteiro esquisitão” por seus colegas, algo que já é bem transposto nos minutos iniciais quando o vemos caminhando pelos corredores da redação com os ombros encolhidos e timidamente comendo uma rosquinha. À medida em que cresce seu interesse pelo caso do Zodíaco, é como se Graysmith finalmente saísse da concha, e o discurso de Gyllenhaall torna-se mais acelerado e empolgado, assim como exibe sinais de uma obsessão quase psicótica; não é por um desejo de servir à justiça, mas sim porque Graysmith simplesmente precisa saber o segredo que o mantém distante de sua família e consome praticamente todas as horas de seu dia.
Ainda que Gyllenhaal seja o protagonista, ele raramente está sozinho em cena, contando com a presença de um elenco coadjuvante de peso. A começar por Robert Downey Jr, em um dos grandes papéis que marcaram sua “renascença” nos cinemas (um pouco antes do lançamento do primeiro Homem de Ferro) que diverte com a sagacidade e ironia do jornalista Paul Avery; a dicção com que diz “Eu quero uma arma” em determinado momento é um misto perfeito de clareza, pânico, medo e naturalidade, algo que Downey Jr viria a realizar muito bem em seus próximos papéis. Provavelmente o papel mais forte depois do protagonista, Mark Ruffalo faz do detetive Dave Toschi uma figura determinada e carismática, sendo divertido notar sua mania de comer biscoitos quando em direção a uma cena do crime.
Um verdadeiro clássico moderno que é tão importante quanto Arte quanto pela exposição de um caso indecifrável, Zodíaco é uma das jóias douradas na carreira de David Fincher. É uma narrativa pesada na forma como reconstitui fatos e oferece novas pistas, ao mesmo tempo em que mergulha o espectador em uma atmosfera assustadora e imprevisível. Inesquecível.
Zodíaco (Zodiac, EUA – 2007)
Direção: David Fincher
Roteiro: James Vanderbilt
Elenco: Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo, Robert Downey Jr, Anthony Edwards, Brian Cox, Chloë Sevigny, John Carroll Lynch, John Getz
Gênero: Suspense
Duração: 157 minutos