Em 1928, na busca de um concorrente para o Gato Félix, Walt Disney passou a trabalhar com seu primeiro animal animado antropomorfizado: o lendário Mickey Mouse. O camundongo criado por Disney e Ub Iwerks foi o estopim para o intenso trabalho do estúdio com historinhas, histórias ou fábulas contando com a presença de peso de animais diversos de todas as espécies – uma visão de empreendedorismo impor, pois assim como eu era fascinado por bichos na minha infância, imagino que diversas outras crianças ainda nutrem, até hoje, essa paixão por animais.
Para citar alguns títulos de longas metragens, contando ou não com a participação de Disney, temos obras maravilhosas que aqueceram a infância de muita gente como 101 Dálmatas, O Rei Leão, A Dama e o Vagabundo, O Cão e a Raposa, Bolt, Selvagem, O Rei Leão, Nem que a Vaca Tussa, Irmão Urso, Dumbo, Aristogatas e Robin Hood. E olha que só citei os filmes onde os animais são os verdadeiros protagonistas da obra completa. Se formos analisar por um escopo maior, praticamente todas as animações da Disney contam com um personagem-animal.
Desde 2008, com Bolt, que a Disney não se aventurava novamente em um longa original inspirado em bichos para animar a garotada. Mas a verdade é que Byron Howard concluiu a produção de Bolt, já começava a rascunhar as ideias que dariam origem a Zootopia, retomando mais uma vez a incansável fascinação do estúdio com os animais.
Além de dirigir, Howard e Rich Moore dividem os créditos de roteiro com mais cinco pessoas e, por incrível que pareça, conseguem construir uma história bem amarrada apresentando a vida da pequena coelhinha Judy Hopps. Desde a infância, Judy sonha em se tornar policial da fantástica metrópole Zootopia, um lugar onde tudo é possível, onde predadores e presas vivem em completa harmonia enquanto tocam os afazeres de cada dia. Com muito esforço e dedicação, Judy supera as adversidades e consegue realizar seu sonho.
Porém, ao chegar na utopia dos bichos, Judy se depara com diversas frustrações: é enganada por uma raposa ardilosa, além de ser designada para a vigilância de trânsito. Com muitos casos de desaparecimentos pela cidade, além de boatos que antigos predadores estarem voltando ao estado selvagem e irracional, Judy acaba por conseguir entrar na investigação do sumiço de uma lontra. Para conseguir entrar no submundo do crime da cidade, Judy acaba convencendo Nick Wilde, a raposa golpista, a ajuda-la na misteriosa busca.
A começar, Zootopia não estabelece profundas explicações sobre como presas e predadores conseguiram superar a cadeia alimentar e viver em harmonia na cidade – e nem deveria. A boa exposição no início do longa já consegue nos atingir com a finalidade única de compreendermos a motivação implacável de Judy Hopps e, obviamente, nos simpatizarmos com a personagem. De fato, o que os sete roteiristas conseguem elaborar quase impecavelmente é a construção da protagonista. O modo para desenvolver Hopps é simples e manjado – uma singela variação do underdog seguindo o sonho de uma vida, porém funciona com muita eficiência. A obstinação da personagem nos encanta, porém o que realmente brilha, além de engrandecer a personagem é a relação muito divertida com seu parceiro Nick. A ardilosa raposa não se limita apenas como alívio cômico nas tentativas de sabotagem na investigação de Hopps, mas acaba criando um vínculo emocional com a coelhinha – como o esperado em narrativas como essa, ainda mais em animações Disney.
Gosto bastante como o filme se preocupa em estabelecer um backstory satisfatório para a dupla os conectando com um trauma vindo da infância, porém com cada um trilhando caminhos diferentes, afinal ele vira um trapaceiro enquanto Hopps mantém o sonho em ser policial. Diversos outros personagens secundários aparecem durante a investigação e cumprem o papel clássico: servem como muletas ou obstáculos contando com algumas piadas ótimas – como no caso do Departamento de Trânsito repleto de bichos-preguiça ou a casa de nudismo, e outras que não funcionam tão bem por já terem sido exploradas milhões de vezes antes – a gag com o diminuto veículo de Hopps ou com a apresentação, mesmo que seja funcional, de Mr. Big, um musaranho inspirado em Don Corleone de O Poderoso Chefão.
Mesmo com alguns tropeços, é inegável quando os roteiristas param de investir na apresentação da cidade para então lançar a investigação, o filme nos fisga exatamente por manter nosso interesse sempre aceso graças a diversas inserções destes personagens carismáticos, por não deixar pontas soltas na narrativa, da comédia inteligente que explora a natureza e anatomia dos animais, contando até mesmo com piadas restritas aos adultos e boas reviravoltas que se tornam mais intensas no terceiro ato. Muito disso também vem no festival de referências que é Zootopia. O público pode se deleitar ao reconhecer trechos que se assemelham com O Grande Lebowski, Vício Inerente, O Silêncio Dos Inocentes, Breaking Bad, Sicario, Incontrolável, Batman Begins, Os Simpsons, O Poderoso Chefão e até mesmo outras obras recentes da Disney como Frozen.
Aliás, o filme inteiro pega o manual de roteiro de filmes policiais/espionagem e o segue – apenas desconstruindo alguns estereótipos no caminho até o fim da jornada. Por se tratar de uma grande investigação, a figura do antagonista sai arranhada na superficialidade ainda que a motivação seja genuína. Simplesmente não é explorada satisfatoriamente nos levando ao teor um tanto panfletário da mensagem final do longa – só é salva pelo ótimo jogo de contrastes gerado com Nick e Judy. Os valores contra o racismo, estereótipos e sexismo certamente são bem-vindos para as crianças, só que poderiam ter resolvido o conflito de modo menos preguiçoso abarrotado de clichês tanto na catarse quanto no clímax que se assemelha muito, mas muito com Monstros S.A. Enfim, não deixa de ser decepcionante após uma ótima aventura.
Outro ponto que não consigo digerir muito bem é essa ausência perturbadora em novas animações da Disney de um momento dramático de grande impacto que consegue tocar nossos corações. Recordem comigo de cenas exemplares de filmes do estúdio. Lembrem da morte da mãe de Bambi, do fim de Mufasa, da quase morte de Baloo, de Tarzan entrando pela primeira vez na cabana de seus pais (um adendo: Tarzan é uma obra-prima), de Dumbo visitando sua mãe confinada na jaula, quando Totó é abandonado em o Cão e a Raposa, de Pinóquio se transformando em burro, quando Kenai conta para Koda a verdade sobre a morte da mãe do urso. Note que todos os longas que citei foram feitos em animação tradicional, alguns muito antigos.
Me pergunto onde está o espírito dos realizadores da Disney em conseguir criar momentos tão memoráveis e tocantes como esses? Será que estão todos nos estúdios da Pixar? Pois eles sabem usar a liberdade visual que a linguagem tridimensional proporciona para conferir esses momentos brilhantes vide Monstros S.A., Up, Toy Story 3, Divertida Mente ou até mesmo com O Bom Dinossauro. Não digo que falta personalidade em Zootopia, mas certamente falta esse calor emocional.
A tentativa de sacar um golpe da lágrima existe até, porém, parece que os diretores têm medo de continuar com a sequência, a cortando rapidamente. Isso tem início com a repercussão que a investigação traz à tona para a cidade afetando os heróis, inclusive. Uma pena.
Na verdade, Zootopia brilha mais em quesitos técnicos mesmo contando uma boa história com jogadas espertas que mantém seu interesse vivo. Os méritos da direção do filme concentram-se mais na criatividade em criar essa cidade fabulosa do que propriamente na técnica cinematográfica no que tange a movimentação da câmera ou nos enquadramentos que são apenas adequados. Eles investem mais em ótimas sequências em montagem que conferem o vigor absurdo do filme como a dedicada à rotina de Hopps como guarda de trânsito, ao golpe de Nick ou com a apresentação da cidade. Também há maior atenção em conferir boas cenas de ação e da condução exemplar da cena do departamento de trânsito.
O design de produção deste longa é absolutamente fantástico. Não somente pela criatividade em dividir a cidade com habitats diversos onde os bichos possam viver adequadamente. Desde climas áridos para polares – é genial a inserção do uso do ar condicionado gigante para formar os climas tão opostos, com construções de prédios enormes para elefantes e girafas como cidadezinhas apropriadas para roedores. O trabalho é focado intensamente em tornar todo o universo de Zootopia em algo crível. Vemos como os animais usam os meios de transporte da cidade, veículos próprios, uso de suas características anatômicas para realizar tarefas cotidianas, como eles se alimentam, seu consumo em bancos, lojas, restaurantes, seu uso próprio e individual com as tecnologias que nós temos acesso hoje como smartphones, redes sociais, uso da nuvem, ipods, aplicativos, etc. Cada uma dessas tecnologias ou referências de filmes da empresa recebem nomes originais baseados sempre em trocadilhos como Google por Zoogle, entre outros.
Não somente por essa atenção aos detalhes e em explicar como a cidade comporta mamíferos de pequeno e grande porte, mas também pelo capricho nos cenários diversos, na vegetação de cada habitat, na roupa que cada bicho veste. É de uma criatividade ímpar que só poderia ter vindo da Disney.
Outro ponto brilhante da técnica é a animação do filme. Os animadores estudaram a movimentação de mamíferos reais por anos para então imaginar como seria essa física do movimento com os animais antropomorfizados, andando em dois pés. Digo que funciona e muito bem. Vemos camelos saltando durante sessões de jogging, leões andando com peso e graciosidade, girafas trotando ao ligeiro passo, elefantes, rinocerontes e hipopótamos com passos trôpegos e lentos entre diversos outros. Com os protagonistas o trabalho é ainda mais delicado.
Judy saltita como uma coelha diversas vezes, bate os pés quando está excitada, agita o nariz quando intrigada, levanta e abaixa as orelhas para expressar alegria e frustração, além de ser extremamente ágil e ter uma postura ereta e vigilante. Hopps definitivamente se sente uma heroína. Já com Nick, os contrastes são claros. A raposa é tranquila e mansa, por vezes lenta, sempre muito relaxada, repleta de olhares cínicos e maldosos que se transformam conforme a afeição de Nick por Judy aumenta. A gama vasta de expressões não limita de modo algum as emoções que os personagens transmitem. A dublagem brasileira também não fica atrás do excelente elenco original. A essência dos personagens permanece intocada com as boas performances de Mônica Iozzi e Rodrigo Lombardi.
Exalto ainda o trabalho de modelagem, textura e física dentro do departamento de animação. Cada pelo dos animais é diferenciado da raiz até a ponta, desde pelos mais crespos, curtos e duros como de Judy, das giradas e dos roedores, até os mais longos, delicados e leves como de Nick, dos lobos, ursos polares e leões. O vento e a água não afetam somente o cenário com as árvores. Os pelos recebem essa dedicação exclusiva na criação de padrões de animação ao reagir ao vento e a água. A iluminação também é respeitada na reação dos pelos e é bela. Sempre adequada e atmosférica com raríssimas vezes onde ela recebe um sentido mais metafórico.
Uma delas é quando determinado personagem se reconcilia com outro saindo da escuridão de um túnel que representa não somente a transição e amadurecimento dele, mas também a ignorância e a solidão, caminhando diretamente para o lugar mais iluminado onde o outro personagem fica recolhido. Um desperdício os diretores não arriscarem mais momentos espertos como essa cena do perdão sincero.
Zootopia é um excelente filme, não tenho dúvidas disso. Ele diverte na dose certa, emociona com o pouco que arrisca, conta uma boa história de investigação cheia de comédia e ação onde adultos e crianças podem apreciar igualmente, apresenta dois personagens que serão muito queridos pelo público, possui uma infinidade de referências audiovisuais, design de produção de criatividade única, uma animação estelar, além de bom trabalho de Michael Giacchino que consegue dilatar cenas e similar melodias de Nino Rota em sua trilha musical. O filme apenas perde por arriscar pouco e trabalhar muito na margem de segurança, apressar o terceiro ato ao resolver conflitos de um modo que já é batido e muito previsível, limitar seu antagonista, inserir flashbacks desnecessários e apostar pouco no drama certamente tiram um pouco do brilho desse novo clássico. Porém, perto da relevância de sua mensagem importante e necessária, esses pontos são pequenos perto desta excelente realização cinematográfica. Fico ávido por ver mais histórias com estes personagens apaixonantes que a Disney não cansa em nos apresentar.