CINEMA E FICÇÃO
Na primeira estrofe de “Autopsicografia”, Fernando Pessoa afirmava: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Trata-se de uma lição a respeito do funcionamento da literatura, destacando que essa arte lida com dois mundos. O primeiro é representado pela dor que o artista de fato sente. Está-se no plano da realidade imediata. É essa que o inspira a criar. O segundo é representado pela dor que ele finge sentir. Está-se no plano da ficção, que não necessariamente está relacionado ao falso, ao mentiroso. Na verdade, o ficcional realiza-se por meio da criação de um universo pertencente à linguagem. É desse que é feito sua arte, sua criação.
Em cinema, forma de manifestação literária, o embate entre realidade e ficção também ocorre, como vemos em Estrelas Além do Tempo. O roteiro desse filme baseia-se em fatos do passado dos Estados Unidos, mas a maneira como seus elementos narrativos e históricos fora
m manipulados cria um jogo estético-ficcional. Em outras palavras, essa película vale não só pelo que diz, mas – talvez principalmente – pelo como diz.
DUALIDADES: REPETIÇÕES, CONTRASTES E CONFRONTOS
Dentro desse mecanismo de forma que também é significado – característica essencial da arte – destaque deve ser dado, para se perceber valor em Estrelas Além do Tempo, ao trabalho com dualidade, num esquema de repetições, contrastes e confrontos. Esse procedimento – e aí está a magia do cinema – acaba muitas vezes se manifestando em imagens visuais. Basta lembrar, para tanto, a cena, no início do filme, em que Mrs. Vaughan, abatida, está refletida em uma parede polida. Introduz-se um símbolo que aparecerá em vários momentos-chave: o reflexo.
O REFLEXO: QUESTÃO DE IDENTIDADE
A repetição simultânea de imagens visuais instaura o tema do duplo, o que, permitindo à personagem o contato consigo mesma e com o outro, representaria a busca do conhecimento e, portanto, da integridade, da totalidade. Por isso os reflexos vão gradativamente em Estrelas Além do Tempo do fosco ao nítido, este último funcionando como representação final da plenitude.
Coincidência ou não, a obtenção da totalidade de caráter está encarnada em outro símbolo antiquíssimo em nossa cultura: o número três. Vemo-lo nos três porquinhos, nos três pedidos ao gênio da lâmpada, nos três mosqueteiros. Mas o vemos mais recentemente, por exemplo, nos três agentes em Matrix (1999) que lutam contra os três heróis, Trinity (seu nome quer dizer “trindade”!), Morpheus e Neo. E vemo-lo, por fim, em Estrelas Além do Tempo, já que suas protagonistas são três: Katherine Goble, Dorothy Vaughan e Mary Jackson.
CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL
O trabalho com o duplo terá como pano de fundo a Guerra Fria, que reverberará na Corrida Espacial, jogo de confrontos que opôs os soviéticos aos estadunidenses. Os comunistas são descritos como incapazes de fabricar geladeiras, mas estão ultrapassando os capitalistas na conquista sideral. Esse paradoxo (figura de linguagem que resulta também de trabalho com dualidade) serve para destacar outro que é o motor da narrativa: como esses vilões podem se mostrar mais avançados que os mocinhos? Para solucionar esse problema, as melhores mentes dos Estados Unidos são reunidas para trabalhar na NASA.
No entanto, o ambiente de busca pela solução de um paradoxo – o atraso na Corrida Espacial – acaba ressaltando outros contrastes que são também contrassensos, frutos do maior dos paradoxos: progresso científico não significa avanço moral. Assim, no desajeitado primeiro discurso do Coronel Jim Johnson a Katherine Goble, vemos o machismo. Notamos de forma ainda mais gritante o racismo, já que o sul dos Estados Unidos, onde se passa a história de Estrelas Além do Tempo, ainda vivia à época uma política segregacionista que contrariava a própria constituição federal.
A discriminação contra os afro-americanos é o ingrediente vital de Estrelas Além do Tempo, sendo abordada sem maquiagens, sem idealizações. Estão ali os discursos de Martin Luther King e os protestos pelos direitos civis dos negros. Estão presentes os slogans chavões que funcionam como palavras de ordem ainda presentes hoje nos textões do Facebook. Mas tudo isso é materializado visualmente no filme: vê-se o lugar que é discriminatoriamente reservado aos negros em bebedouros, ônibus, bibliotecas. Pior: Katherine não pode beber o mesmo café que os brancos, sequer pegar na mesma garrafa deles. Mais agravante: não há um banheiro para ela na ala em que está trabalhando, o que a obriga a correr desesperadamente por 800 metros.
Entretanto (Eis a magia do cinema!), a segregação está metaforizada visualmente em um aspecto mais sutil. A ala leste, dos brancos, tem paredes brilhantes, espelhos nítidos, limpos e conservados, muita luz artificial e natural. Seus ocupantes têm direito à reflexão e, portanto, à identidade. Já a ala oeste, ocupada pelos negros, tem paredes foscas de tijolos pintados, espelhos manchados e descascados, iluminação pobre e claustrofóbica. Seus ocupantes não têm direito à reflexão decente e, portanto, a uma identidade íntegra.
AS REPETIÇÕES
Percebe-se, portanto, que o filme grita visualmente por justiça social, por isso carrega nas tintas em seu discurso, em nome da garantia da eficácia de sua comunicação. Daí o trabalho com outra espécie de dualidade: a repetição. Vemo-la, por exemplo, na utilização de atores que ativam a memória do espectador. Octavia Spencer recarrega em Estrelas Além do Tempo o clima de injustiça de segregação racial vindo de Histórias Cruzadas (2011), com direito ao questionamento a respeito do uso de banheiro. Kirsten Dunst recarrega a falta de noção do que se passa ao redor, mesmo sendo agraciada pelas benesses de seu sistema, características também vistas em Homem Aranha (2002), Maria Antonieta (2006) e Melancolia (2011). Jim Parson recarrega a cômica arrogância praticamente autista de quem se acha o dono do conhecimento, o que já interpreta em The Big Bang Theory (2007).
Um caso nesse campo merece cuidado especial: Kevin Costner. Outrora ícone sexual, ainda reverbera no imaginário do espectador um perfil ao mesmo tempo poderoso e protetor, características consagradas em Os Intocáveis (1987), Dança com Lobos (1990), O Guarda-Costas (1992). Em Estrelas Além do Tempo, age na mesma área semântica, funcionando como o grande pai: é Al Harrison, o big boss responsável pelo programa espacial norte-americano. Nesse sentido, não é exagero ver na cena em que ele introduz Katherine aos figurões federais, mais precisamente no close de sua mão passando giz para a mão de sua subordinada, uma repetição da Criação de Adão (c. 1511), de Michelangelo.
No entanto, Al Harrisson atua como um deus, ou pelo menos grande pai, é mostrado como ineficiente – sinal provavelmente da maturidade de nossos tempos. O poderoso da NASA só vê números (curioso como na Idade Média Deus era visto como um matemático…), sendo incapaz não só de escolher um presente decente para sua pupila, como de enxergar as injustiças de que ela é vítima e que estão à sua frente: a segregação no uso de café e de banheiro.
Essa incompetência vai fazer eco (mais dualidades) no comportamento dos demais brancos de Estrelas Além do Tempo: não acertam contas, não sabem esconder dados, não sabem planejar a configuração de um cômodo, compram equipamentos que não passam pela porta, não sabem nem ligá-los. E quem é que vai finalmente pôr em funcionamento os poderosíssimos computadores IBM? Negras.
O EMPODERAMENTO DE GÊNERO E DE RAÇA
Nosso raciocínio continua a girar de tal forma em dualismos, combustível de Estrelas Além do Tempo¸ que corremos o risco de cair em uma chave maniqueísta: tudo de errado ocorre no lado dos brancos, donos do stablishment, enquanto os negros, dotados de virtudes salvadoras, estão exilados no campo dos outsiders. Dentro desse código, o filme parece ser um esforço para remediar o mal do Oscar 2016, em que a ausência dos afrodescendentes era por demais presente.
Nesse sentido, Estrelas Além do Tempo chega muito perto da assepsia do politicamente correto: não se escondem os problemas da condição étnica, ouve-se o discurso de revolta como o de Levi Jackson, discute-se com ele – mas as protagonistas não buscam o confronto violento. Elas sempre se mostram educadas, cultas, altivas. No máximo, lançam mão da ironia, como na explosão – há muito esperada, diga-se de passagem – de Katherine, que pede desculpas por ter de usar o banheiro em alguns momentos do expediente.
Se há uma mensagem a se levar do filme (entre tantas), é a de que o empoderamento social se dá por meio da educação. Não é à toa que as cenas iniciais são numa escola. Mas essa prática cognitiva vai ter de se processar por toda a vida. As protagonistas de Estrelas Além do Tempo não se entregaram, portanto, ao “mimimi” diante das injustiças de seu meio. Lutaram contra elas. Mesmo com emprego garantido, continuaram aguerridas. Chegaram máquinas que vão substituí-las? Mrs Vaughan e suas subordinadas estudam para poder programá-las – e garantir o emprego e até mesmo o respeito das brancas. Os engenheiros não acham uma fórmula que ligue uma trajetória elíptica a uma parabólica? Katherine Goble volta aos livros da matemática antiga e obtém sucesso.
Com todos esses procedimentos, Estrelas Além do Tempo, coerente com sua música incidental que busca revelação, grandiosidade e libertação (eis a mão de Hans Zimmer!), expressa o melhor do espírito estadunidense. É um filme sobre a vitória do indivíduo, do selfmade man diante de todas as adversidades. Notável como foram muitas! Mary Jackson, que luta por ser a primeira engenheira negra na NASA, expressa muito bem essa dificuldade: “Toda vez que a gente tem chance de chegar lá, eles movem a linha de chegada. Sempre.” Assim, a vitórias das três protagonistas é o reforço da crença, tão necessária, em uma sociedade mais justa. E como se trata de uma narrativa baseada em história real, mostra-se que esse sonho é alcançável.
DOIS CONTRASTES EDIFICANTES
No entanto, trata-se de cinema, o que significa que todos esses valores edificantes não se circunscrevem ao plano verbal. Estão também no imagético, do qual se podem extrair dois belos exemplos que mais uma vez trabalham com contrastes e confrontos. O primeiro refere-se à caneca de café de Katherine. No começo, a matemática havia escandalizado seus companheiros de trabalho ao enchê-la com bebida que era destinada só para os brancos. Como silenciosa advertência, aparece, cenas depois, um bule só para ela, negra. No fim, após a heroína ter conquistado respeito e, consequentemente, espaço, vemo-la ser servida justamente pelo seu mais recalcitrante oponente, Paul Stafford. E justamente com a mesma caneca.
O segundo evento é mais engrandecedor e refere-se ao constante embate entre Vivian Mitchell e Dorothy Vaughan. No decorrer do filme elas constantemente estão em posição especular, havendo sempre um desnível: a negra clamando por ter sua competência reconhecida e a branca respondendo com descaso, ancorando-se nos costumes arraigados do sistema. Essa assimetria de tratamento manifesta-se até mesmo na forma de tratamento: Dorothy sempre chama sua superior respeitosamente pelo sobrenome (Mrs. Mitchell), enquanto esta no começo usava apenas o prenome (Dorothy). Quando a matemática conquista também respeito e espaço, garantindo até mesmo o futuro empregatício das brancas, inclusive o de Vivian, passa a ser tratada por sua insossa oponente como Mrs Vaughan.
O MAU TÍTULO: Estrelas Além do Tempo
Por fim, um último ponto merece ser observado. O Brasil tem um histórico de má tradução de títulos de filmes estrangeiros e Estrelas Além do Tempo entra nessa galeria. Assim como está em português, garante o trabalho com dualidade, recorrente no filme. Mas seu escopo se dá de forma rasa. Nesse sentido, a palavra “estrelas” está ligada ao trabalho dos astronautas da NASA (viajantes das estrelas) e ao heroísmo das protagonistas Katherine, Dorothy e Mary. Já a expressão “além do tempo” tanto faz referência a uma época passada, os idos dos anos de 1960, quanto ao fato de as heroínas superarem essa fronteira temporal, sendo lembradas até hoje, 2017.
Entretanto, o título original, Hidden Figures, é muito mais rico, pois sua dualidade carrega uma maior polissemia. A ideia de figuras ocultas num primeiro momento é alusão às protagonistas, que, nos bastidores, garantiram a virada de jogo dos Estados Unidos na Corrida Espacial. Pode também indicar que o sentido oculto dessa disputa é a busca pela supremacia dentro da Guerra Fria. Mas é também uma forma de pôr em foco o absurdo de uma sociedade que se dizia avançada, a ponto de se achar no direito de conquistar o espaço, mostrar-se racista. É um problema, uma figura que esse meio quer tornar oculta, por isso não costuma pô-la à tona com todas as letras. Não se diz, por exemplo, que a NASA não admite negras como engenheira; fala-se que só admite profissionais formadas em determinadas instituições – que não admitem negros. Mas – talvez essa seja a leitura mais bela – é também uma referência aos cálculos matemáticos, que precisam ser descobertos, revelados.
Ainda assim, pode-se considerar perdoável essa falha na intitulação, que despreza a expressão “hidden figures”. Há uma lógica razoável para tal ato. O vocábulo equivalente em português a “hidden” é “oculto”, termo que traz uma carga de significado fantasmagórica a ser evidentemente evitada no filme Estrelas Além do Tempo.
Texto escrito por Laudemir Guedes Fragoso