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Crítica com Spoilers | Mogli: Entre Dois Mundos – A mais fiel adaptação de O Livro da Selva

Filmes cujo seu devido valor nunca são bem reconhecidos pela primeira vez já se tornou um fator recorrente em certos filmes hoje em dia que tentam ir contra a maré de estruturas e tons tão familiares e similares entre si, não importa de qual estúdio ou gênero possam os diferir. Mas isso você já deve ter se cansado de ouvir e já decidiu se acostumar à essa situação de desgaste no cenário atual como uma situação irremediável. Onde mesmo filmes como o recente Mowgli de Andy Serkis que tenta trazer várias coisas novas e diferentes consigo, críticos já tendem a ver isso como pura e simples falha por ir contra o modelo de qualidade atual pré-concebido.

Mas também não ajuda o fato de que muita coisa já ia contra o filme de Serkis. Seja desde o início de sua produção e agora com seu lançamento prematuro. O que não impede claro do resultado final do filme mostrar várias qualidades do talento de Serkis como um digno artista conseguiu trazer para sua versão da clássica história de Mogli, ou O Livro da Selva se preferir. Qualidades estas que podem ter sido mal interpretadas ou completamente terem passado despercebidas.

Isso se deve tanto ao fato do preconceito sempre precocemente levantado hoje em dia sobre filmes que são vendidos dos estúdios para a plataforma Netflix, e claro ao fato de que talvez tenha sido sim cedo demais para o público ver outra recente versão da história de Mogli quase um ano depois da Disney ter arrecadado um sucesso retumbante de público e crítica com o seu remake live-action de Mogli: O Menino Lobo dirigido por Jon Fraveau. O que inevitavelmente vai levantar comparações entre as duas versões.

No entanto, comparações essas que até agora se mostraram um tanto chulas por apontarem sempre nos mesmos quesitos técnicos, de qual filme tem o melhor visual e efeitos. Ou no que tange ao tom, um sendo acessível e um filme família, enquanto o outro é pretensioso e exagerado sem um tom certo e misturado.

O filme de Serkis está longe de ser infalível ou sequer excelente, mas muito do que até agora apontaram como falhas, são marcas e traços que seu diretor buscou sim trazer para sua adaptação e extrair o melhor dela. E esse texto busca exatamente mostrar o que o filme fez de tão certo e que o colocou como o filme que talvez melhor compreendeu O Livro da Selva de Rudyard Kipling até hoje!

A Adaptação

Em questão de adaptação, o que faz a versão de Andy Serkis se diferenciar dentre tantas outras da mesma história (mais particularmente as da Disney, claro) é como o próprio diretor já disse e almejou realizar aqui, em procurar ser muito mais fiel à história original de Rudyard Kipling. E é aí que entra a grande questão do desafio de todas as adaptações, sobre o que exatamente se trata a obra em que estão se inspirando.

A animação original da Disney, ótima em sua própria maneira, se contentava em pegar pequenos elementos chave e rasos da história no qual estava adaptando, onde víamos um filme mais focado na jornada do jovem Mogli em fuga do temível Shere Khan, auxiliado pelo seu protetor a pantera Bagheera e seu amigo Baloo o urso, ao mesmo tempo em que ele busca o seu verdadeiro lugar no mundo.

Enquanto a versão de Jon Fraveau trazia alguns pequenos elementos da narrativa do livro e focava a história de Mogli, mesmo que ainda próxima da animação, mas como sendo uma busca de sua real natureza no mundo que vivia, ser um lobo ou um homem, o Mogli de Serkis compartilha disso em boa parte, mas mostra querer ir um pouco além para o que representa tanto a estrutura da obra quanto sua essência.

O Livro da Selva de Kipling não é a mais fácil das obras de se adaptar também, tendo em conta que só as histórias de Mogli ocupavam apenas quase metade do todo narrativo. Variando entre diversos temas que passavam muito além de uma simples alegoria ecológica ou uma jornada darwiniana pela sobrevivência, isso não é A Revolução dos Bichos. E sim, temas que iam no cerne na exploração de relações e ações humanas através dos seus personagens animais. Desde o abandono, adoção, e crise de identidade refletidos na história de Mogli. E passando ainda por temas sociais como lei e liberdade, onde o puro comportamento animal, se refletia como sendo arquétipos humanos.

Onde cada um dos contos buscavam ensinar respeito pela autoridade, obediência e conhecer o próprio lugar na sociedade. O grande discurso recorrente, tanto no livro quanto nos filmes, a “lei da selva”, é esse discurso de ensinamento e evolução do indivíduo respeitando o espaço em que vive, ao mesmo tempo que também ilustra a lei do livre arbítrio de se mover entre diferentes mundos, como Mogli que se move entre a selva e a aldeia humana, sendo o equilíbrio entre ambas.

Ou querem uma melhor metáfora sobre uma sociedade organizada e politizada em união estável e com leis a obedecer como a alcateia de lobos em que Mogli convive, e Shere Khan sendo a presença anarquista e letal desrespeitando e destruindo essas leis, movido por puro ódio e revolta. E a aldeia humana ao longe que se expande cada vez mais e que os animais temem sua influência, não se diferem tanto de uma cultura e sociedade estrangeira aos poucos adentrando no território dos animais. Sem falar claro da subclasse marginalizada vista como puramente selvagem e de linguagem incompreensível como o povo macaco.

Mowgli do Serkis com certeza tenta se adequar à esses elementos em sua grande parte, e os adota recorrentemente no filme com essa visão alegórica muito sutilmente embutida dentro da história do menino lobo. O que faz a pegada do filme à muito se assimilar com a de filmes como Greystoke: A Lenda de Tarzan de Hugh Hudson ou o recente (e também mal aceito) A Lenda de Tarzan de David Yates, que se mantiveram muito próximos do material fonte de seu personagem em suas respectivas adaptações.

E por consequente, são versões de tom bem mais adulto e maduro da história ao contrário da pegada familiar das de outrora. Claro que mais “sombrio e realista” não são sinônimo de qualidade instantânea, os próprios filmes citados tem seus vários deslizes. Mas que quando bem feito, podemos ter um filme que tem a dizer muito mais à dizer tematicamente, do que o filme voltado para crianças que acabava conquistando adultos graças ao sentimento de nostalgia como fora a versão de Jon Fraveau. Seja através de seu visual ou, principalmente, através dos personagens.

Os Personagens

Isso é um fator que as duas principais versões aqui em questão (três contando animação clássica) conseguiram muito bem priorizar ao conseguirem trazer ótimos nomes para o seu elenco. Se de um lado você tem nomes como Bill Murray, Ben Kingsley, Idris Elba, Scarlett Johansson, Lupita Nyong’o e Christopher Walken no outro temos Christian Bale, Cate Blanchett, Benedict Cumberbatch, Naomie Harris, Peter Mullan, e o próprio Andy Serkis. Ambos ótimos elencos cobertos de talentos, agora, qual filme faz melhor uso do seu elenco é outra história.

Pode ser uma opinião mas não popular, mas o grupo com os melhores nomes no elenco com certeza mostra quem vence essa rodada, e esse mostra ser o de Serkis, tanta pela forma com que o diretor se usa do elenco, como também as inovações que alguns deles dão as características dos seus personagens que até então já eram familiares ao ponto de fazer o público saber exatamente o que esperar.

A pantera Bagheera sendo a sábia voz da razão; Baloo sendo a versão urso de Hakuna Matata; a serpente Kaa, a vilã que hipnotiza suas vítimas; e Shere Khan sendo o vilão Shere Khan, sendo o básico do básico. Todas essas personalidades que aqui são ou modificadas ou personalizadas com um ar diferencial e, novamente, bem próxima das suas personalidades no livro.

Mogli é o mesmo que podia se esperar, uma alma inocente e pura que cresce em maturidade quando se defronta com as consequências da sua existência na selva e as leis que tem que obedecer e desobedecer para sobreviver, ao mesmo que resguarda um conflito interno sobre onde ele pode pertencer entre os dois mundos. E o ator Rohan Chand convence MUITO melhor todo o drama pelo qual o personagem passa com verdadeiras emoções. E ao contrário de Neel Sethi na versão de Fraveau que fazia o seu melhor atuando para o nada, Chand passa o ar convincente de que ele está mesmo olhando assustado, feliz, curioso ou borbulhando de raiva para um animal bem na sua frente.

A pantera Bagheera por exemplo que, ao contrário da versão de Kingsley que demonstrava expressão alguma além de sua atuação vocal, vemos na versão de Bale uma ternura jovial e pura da pantera para com Mogli que se tratam como irmãos. É sábio, mas ao mesmo tempo ansioso e imaturo em certas decisões e que fazem o público se questionar se ele fizera mesmo o que era certo em um momento chave. É certamente outro dos interessantes papéis variados que Bale sempre trabalha e mostra encarnar muito bem qualquer tipo de personagem, e agora também uma pantera.

Até o Baloo de Serkis, embora não tão carismático quanto o de Bill Murray, surpreende com essa versão mais “brucutu” do personagem que mais parece um sargento treinador do que amigo de Mogli, e que no início pouco se lixa para a adoção do bebê na alcateia, mas constrói sentimentos pelo garoto ao longo da história. E ver as expressões de Serkis em um urso gigante é impagável.

Outros como a cobra Kaa que ou havia fama de ser o alívio cômico afeminado da animação ou apenas uma cobra gigante hipnotizadora, aqui é atuada por uma sempre ótima Cate Blanchett e trazida à vida como uma espécie de entidade viva da floresta, e que quase se torna uma espécie de oráculo e protetora espiritual para Mogli. E o Shere Khan de Benedict Cumberbatch, mesmo sendo mais do mesmo da presença vilanesca, é novamente beneficiado pelo imenso carisma do ator e que realmente entrega uma presença temível com seu tom de voz realmente parecendo a de um tigre rosnando para falar.

E aí está outro das razões que levantou certo estranhamento com o público, o uso de performance capture na criação dos personagens animais, algo que Serkis sempre foi um mestre no ramo e aqui consegue levar sua tecnologia para um novo nível ao permitir que vejamos aqui claramente o rosto dos atores integrados às feições dos animais. Pode até parecer um design cartunesco dado ao tom mais sério e sombrio que o filme leva, mas não o impede de, propositalmente, construir assim esse ar de fábula dentro da história, sem restrições em querer ser mais ousado e maduro em mostrar certas coisas e consequências que os personagens defrontam.

Uma visão própria

Andy Serkis lutou mesmo pra conseguir por as mãos em trazer a história de Kipling à vida e de forma especial e diferente de tudo que já tínhamos visto até então. Sendo sim mais o sombrio e realista que Serkis almejava e prometia entregar, mas é um filme que está longe de ser um banho de exageros estéticos criados para impactar e chocar, embora parte disso esteja presente, mas sempre em favor da história.

Vide e compare por exemplo a cena do covil dos Macacos entre as duas versões. Enquanto na de Fraveau vemos o Rei Louie de Christopher Walken realizando um musical sentado no mesmo espaço, e que tornava tudo um tanto enfadonho, e quando Bagheera e Baloo chegam para o resgate a luta mais parece uma brincadeira de cócegas e pique pega com os macacos. Já na versão de Serkis, não só vemos os macacos como esses seres primitivos, violentos e literalmente canibais, quando o resgate dos mesmos personagens chega se torna algo próximo de um banho de sangue onde vemos realmente os personagens sangrando em seus esforços de sobreviver à violenta luta, e que ocasiona uma crescente tensão bem construída.

É sombrio e sem pudor algum em certos momentos realmente feitos para chocar, mas sem perder seu tom de conto fabulesco e sabendo dar o ar mais puro e doce na criação dos laços entre Mogli e os animais, e até inesperados como quando logo após Mogli ter seu primeiro contato com os humanos e o fogo, ele tem esse diálogo sóbrio com a hiena Tabaqui de Tom Hollander, o comparsa de Shere Khan. E, com frases tiradas direto do livro, ele brevemente conta sobre seu sonho de ser um tigre mas que sempre acorda como hiena, com o roteiro do estreante Callie Kloves sutilmente revelando o cerne de subserviente frustrado e covarde do mero personagem coadjuvante.

Não só ele, como também a mãe lobo Nisha de Naomie Harris em certa cena mostra sua angústia e medo pelo inevitável destino do jovem menino lobo que ela aprendeu a amar, assim como Bagheera com seu papel de irmão mais velho protetor e Baloo como o mestre. Mas tudo isso ainda mais no arco dos humanos quando Mogli começa a se acostumar e a se encantar com a vida na aldeia, criando laços maternais com Messua, uma muito breve Freida Pinto. E o relacionamento paterno com o caçador Lockwood de Matthew Rhys que se de início mostra ser confidente e amigável, mostra ter segredos letais em uma das cenas mais chocantes do filme.

Demonstrando o grande embate moral que o texto atira nos personagens constantemente, com Mogli em sua jornada vendo que nada é cinza pelo cinza, ninguém é complemente bom mas também ninguém é complemente ruim. O sentimento de raiva e frustração por ter sido expulso da alcateia em certo ponto é compreensível, mas ao mesmo tempo em que ele vê que a aldeia humana está em tal similar caso de caos e violência movido pelo pior da natureza. Por isso até mesmo o fim de Shere Khan no final tem um impacto emocional mais de forma redentora e apaziguadora que um fim ao mal.

Toda a alma e coração da obra original se mostra presente graças à grande dedicação e admiração do diretor. E tudo ainda ser construído em um desenvolvimento dramático que consegue ser envolvente do início ao fim graças à um ritmo muito bem acertado e a momentos pontuais bem delineados na narrativa que segue de forma bastante fiel os acontecimentos do livro, com algumas ligeiras mudanças aqui e ali.

Que resulta em um ritmo muito melhor trabalhado do que o remake da Disney que se apressava em certos pontos e se arrastava em outros, e tirando aqui de uma intro e conclusão entregues de forma um tanto abruptas, o resto do filme é bem ritmado e construído, com uma hora e quarenta minutos passando a sensação certa de mais de duas horas de uma história sendo bem contada.

No meio disso Serkis também não deixa a desejar na direção, mesmo que ele ainda tropece em uma câmera tremida ou outra em algumas cenas de ação, mas nada tão distrativo, e consegue imprimir bastante criatividade visual em vários momentos. Seja na boa mescla de cenários práticos com o green screen criando a vasta selva que passa a sensação de gigantesca e imersa, ou no design da cobra Kah que parece um animal sem fim, com todo o seu corpo cobrindo e passando pela tela em suas cenas com a câmera a seguindo sem cortar, passando sua imponência intimidante.

Todos os animais, como já ditos, são muito bem criados e atuados. Não à toa o diretor de cinematografia do filme é Michael Seresin, o mesmo da recente trilogia Planeta dos Macacos onde cujo Andy Serkis estrelou como o icônico César em uma das melhores performance motion-capture de todos os tempos. E faz total sentido Serkis o ter querido aqui, Seresin sabe filmar muito bem os seres em CGI dentro dos cenários.

Fazendo uma costura perfeita e palpável entre os animais e os cenários, ainda com a presença de Mogli sendo o único personagem humano na maior parte do tempo, e todos parecem naturalmente como seres vivos daquele espaço. Mesmo que o green screen derrape em qualidade em certos momentos como na vergonhosa cena inicial e alguns dos planos mais abertos no meio da floresta. Mas são pequenos deslizes em um todo que mais agrada o suficiente para fazer o filme estar longe do desastre que críticos o colocaram.

O que se pode tirar disso?

Recapitulando o óbvio, o Mowgli de Serkis pode ser mesmo imperfeito aos olhos de todos. Mas na forma com que é realizado e construído, com certeza é um filme muito mais interessante como cinema e até complexo em sua história bem mais que a versão da Disney e muitas outras que já tentaram trazer a obra de Rudyard Kipling à vida, cujo tem sua alma presente em cada momento do filme.

Se leva à sério e não tem de mostrar com maturidade as consequências das ações dos personagens no mundo em que vivem. E acessível ao mesmo tempo para que seja uma boa e inspiradora história à ser vista e admirada por todas as idades. Uma daquelas pequenas pérolas que vão com certeza passar por um bom tempo despercebidas por muitos, mas sempre estará ali para ser admirada.

Mogli: Entre Dois Mundos (Mowgli: Legend of the Jungle – EUA, 2018)

Direção: Andy Serkis
Roteiro: Callie Kloves, baseado no romance de Rudyard Kipling
Elenco: Christian Bale, Cate Blanchett, Rohan Chand, Andy Serkis, Naomie Harris, Peter Mullan, Jack Reynor, Freida Pinto
Gênero: Aventura, Drama
Duração: 104 min.

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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