Crítica | Mortal Kombat (2021) - Um fliperama inofensivo
Querem uma perspectiva diferente? Minha visão acerca de Mortal Kombat certamente será bastante rara para quem estiver lendo, e sei o que absurdo que estou prestes a proferir. Ao contrário de talvez 95% da população mundial, minha primeira experiência com este universo de torneios de combate multidimensionais é justamente com este novo filme lançado pela Warner Bros 2021. Isso mesmo. Eu nunca havia assistido ao longa de 1995 dirigido por Paul W.S. Anderson e, pasmem, nunca parei para jogar um único game da extensa franquia da Midway Games - eu sempre fui mais chegado em Tekken, perdão.
Dessa forma, todas as decisões e adaptações criativas tomadas pelo diretor estreante Simon McQuoid chegaram a mim sem qualquer referência prévia; e não é preciso ir muito longe para entender que a maioria delas desagradou bastante aos fãs do material original. Sendo então um leigo no assunto, a grande catarse que tive neste novo e moderno Mortal Kombat foi a de encontrar um longa completamente despretensioso e que, mesmo longe da perfeição, foi bem capaz de me oferecer um entretenimento inofensivo.
A trama funciona como uma espécie de prelúdio para o grande atrativo da saga, onde o jovem lutador Cole Young (Lewis Tan) percebe estar sendo caçado por um misterioso guerreiro com poderes de congelamento, Sub-Zero (Joe Taslim). Tudo isso porque Cole carrega consigo uma enigmática marca de dragão, que a faz ser encontrado por outros lutadores marcados, logo levando-os à revelação de que foram selecionados para um torneio de combate que reúne seres de diferentes dimensões, e que garante o balanço de todo o universo.
Julgando meramente pela premissa, eu nem precisaria adivinhar que trata-se de uma adaptação de games para o cinema. O roteiro de Dave Callaham e Oren Uziel é extremamente simplista nesse conceito, parecendo não se preocupar em levá-lo a sério demais (o seriado Power Rangers veio à minha mente todas as vezes em que víamos os vilões em seu reino maligno), enquanto apoia-se na estrutura básica de um filme de recrutamento de equipe - um heist sem o heist, por assim assim dizer, até porque o tal do torneio titular não chega a ser, ironicamente, a grande atração do longa.
O que acaba, sim, tornando-se um problema aqui é a decisão em torno do protagonista. Não sou conhecedor dos games, mas uma rápida pesquisa afirma que o tal Cole Young é um personagem criado especialmente para este filme - garantindo a velha muleta narrativa do sujeito que, assim como o espectador leigo como este que vos escreve, aprende as regras do jogo de outras figuras mais icônicas do lore original. Uma desculpa aceitável, mas a trajetória de Young é repleta de clichês batidos que, além de não convencerem, parecem querer apostar em um melodrama familiar sério demais para um filme com ninjas congelantes. Toda a construção para a grande revelação em torno da habilidade de Young também é anticlimática, além de visualmente broxante.
Mas quando chegamos ao que realmente importa em um filme chamado Mortal Kombat, o espectador é melhor servido. Mesmo que não seja um Chad Stahelski da vida (há uma insistência em cortes agressivos), o diretor Simon McQuoid sabe como criar momentos iconográficos envolvendo as habilidades e coreografias de seus personagens, especialmente quando o ameaçador Sub-Zero de Joe Taslim está envolvido; e a emergência de sua habilidade evoca o melhor da fotografia de Germain McMicking, que brinca com as paletas de cor de forma inspirada - vide a luta do vilão contra o musculoso Jax (Mehcad Brooks) em um armazém lindamente temperado com luzes azuis em meio a tons quentes, ou o aguardado embate com o icônico Scorpion (Hiroyuki Sanada, infelizmente muito mal aproveitado) que aproveita muito bem a classificação indicativa mais alta e também as batidas intensas da trilha sonora original de Benjamin Wallfisch.
E por falar em classificação indicativa, este Mortal Kombat definitivamente se diverte com sua liberdade em poder quebrar ossos e jorrar sangue pelas paredes. Adotando os famosos “Fatalities" que tornam o game tão icônico, McQuoid abraça o gore espalhafatoso e a violência gráfica permitida, especialmente em um combate envolvendo o carismático Kung Lao (Max Huang) e a asquerosa Mileena (Sisi Stringer), que até mesmo evoca os famosos dizeres do game - eu posso nunca ter jogado, mas todo mundo já ouviu isso ao menos uma vez na vida.
O único elemento negativo envolvendo as cenas de ação encontra-se no trabalho de computação gráfica. Claramente o longa tem um orçamento mais baixo, e isso se reflete na composição de oponentes como o animalesco Reptile e o extremamente capenga vilão Goro, que mesmo sendo utilizado em uma cena ambientada à noite, deixa transparecer a artificialidade de sua composição - algo que ao menos o embate com Reptile consegue contornar ao usar uma luz de flare como fonte principal de iluminação. Bem, o fotógrafo McMicking certamente é a estrela aqui.
Movendo-se com um ritmo bem ágil e sem muitas firulas ao longo de seus 110 minutos, Mortal Kombat é uma diversão inofensiva. Se sai muito melhor quando dedica-se a seu visual inventivo na luta entre personagens humanos, e definitivamente fracassa em suas tentativas de abraçar elementos dramáticos. Mas, tratando-se de uma adaptação de um game de luta originado em fliperamas, o resultado é bem eficiente.
Pelo menos, me fez tirar o atraso e jogar algumas partidas do game como Sub-Zero.
Mortal Kombat (EUA, 2021)
Direção: Simon McQuoid
Roteiro: Dave Callaham e Oren Uziel
Elenco: Lewis Tan, Jessica MccNamee, Josh Lawson, Tadanobu Asano, Mehcad Broosk, Ludi Lin, Ng Chin Han, Joe Taslim, Hiroyuki Sanada, Max Huang, Sisi Stringer
Gênero: Ação
Duração: 110 min
https://www.youtube.com/watch?v=8Tk8sqXlogM
Crítica | Godzilla vs Kong - Um blockbuster genuíno
O que queremos quando vemos um filme com versus em seu título? E faço essa indagação referindo-me exclusivamente a longas cuja proposta é colocar dois personagens pré-estabelecidos na cultura pop para lutar um com o outro - perdão, Kramer vs Kramer. Compreendo perfeitamente que alguns possam desejar uma abordagem mais soturna e complexa como a de Zack Snyder Batman vs Superman: A Origem da Justiça, mas eu pessoalmente estou mais interessado nas bobagens escapistas de Freddy vs Jason ou Alien vs Predador.
Felizmente, o que o apropriadamente entitulado Godzilla vs Kong promove é mais um exemplo do último caso, garantindo um prato cheio de diversão despretensiosa e um verdadeiro espetáculo visual.
Seguindo os eventos que construíram o chamado “Monsterverse" da Legendary com a Warner Bros, a trama envolve um grupo de cientistas da Monarca correndo para levar o aprisionado Kong a uma passagem que lhe dará acesso ao centro da Terra, a fim de comprovar a existência de uma Terra Oca. Ao mesmo tempo, o gigante Godzilla está misteriosamente atacando cidades e instalações da empresa, o que o colocará em um conflito direto com o macaco gigante Kong.
Eu até poderia passar mais tempo falando sobre as entrelinhas narrativas, mas… É realmente isso o que importa em um filme chamado Godzilla vs Kong? O fator humano sempre foi o elo mais fraco dessa nova franquia de monstros, tendo atrapalhado o motor de obras como Godzilla e sua pavorosa continuação, O Rei dos Monstros, ao apostar em conflitos dramáticos nada convincentes e desperdiçar grandes nomes da indústria em papéis rasos e desinteressantes. Os verdadeiros astros dessa franquia são os monstros, e o roteiro de Eric Pearson e Max Borenstein é sensato em reconhecer isso, apresentando linhas de história que são extremamente básicas e dignas de um filme de monstro da década de 50; são meros subterfúgios para levar os dois titãs ao embate, então esqueça aquele drama xarope do filme de 2014 que tentava apostar em daddy issues entre Bryan Cranston e Aaron Taylor Johnson.
O que temos aqui são apresentadores de podcasts conspiracionistas (um carismático Brian Tyree Henry), pré-adolescentes que não têm dificuldade em cruzar continentes inteiros em uma van (Millie Bobby Brown e Julian Dennison) , uma tecnologia de transportes que pode rivalizar com de Star Wars (representada pelos personagens de Alexander Skarsgard e Rebecca Hall) e um grupo de empresários malvados que literalmente desenvolvem uma forma de controlar criaturas gigantescas mentalmente (e a fonte dessa habilidade é a suspensão de descrença definitiva). Tenho perfeita ciência de que os créditos de roteiro trazem nomes de adultos, mas não ficaria nem um pouco surpreso caso esses adultos tenham colocado seus filhos pequenos na frente da máquina de datilografar. E digo isso como um elogio, por incrível que pareça.
E quando finalmente temos os embates que o título promete? Puro espetáculo. Ultimamente, o cinema blockbuster tem sido extremamente decepcionante na forma como lida com escala e, especialmente, a estética em sua fotografia - basta ver o trabalho chapado e cinzento dos últimos longas dos Vingadores. Não é o caso de Godzilla vs Kong, que conta com um inspirado Adam Wingard gastando milhões de dólares com muito gosto: os embates principais valorizam a escala e o tamanho de seus monstros com planos bem abertos e em full cinemascope, evitando a câmera tremida e o excesso de sombras dessaturadas dos Godzillas anteriores.
Wingard também aposta em muita cor, posicionando os duelos entre os protagonistas em cenários visualmente estimulantes, como o pôr do sol em um oceano ou uma Hong Kong dominada por arranha-céus em neon coloridos. Tudo isso ajuda a tornar o trabalho visual rico, além de valorizar o ótimo resultado dos efeitos digitais das criaturas titulares, que têm uma movimentação orgânica e fluida, onde Wingard e seus animadores claramente se divertem ao criar golpes brutais e danos colaterais estrondosos.
O diretor replica essa estética também quando estamos com nossos personagens humanos, trazendo todos os laboratórios e instalações da Monarca igualmente preenchidos com um neon nada natural, mas que a excelente fotografia de Ben Seresin aproveita para nunca nenhuma cena desinteressante - algo que também se aplica ao excepcional trabalho conceitual e de desenho de produção, especialmente nas cenas envolvendo a Terra Oca. É um atestado para Wingard e todos os seus profissionais muito competentes de que sabem exatamente o tipo de filme que estão fazendo.
Godzilla vs Kong é um exemplar imponente do cinema pipoca feito do jeito certo. Não é um filme que ganha pontos por suas decisões lógicas, mas sim por sua habilidade em reconhecer os elementos do ridículo que precisa abraçar, e pela maestria estética capitaneada por seu diretor. Reconhecendo o tipo de filme que é, a diversão está garantida.
Godzilla vs Kong (EUA, 2021)
Direção: Adam Wingard
Roteiro: Eric Pearson e Max Borenstein
Elenco: Alexander Skarsgard, Millie Bobby Brown, Rebecca Hall, Brian Tyree Henry, Eiza González, Shun Oguri, Julian Dennison, Demián Bichir, Kyle Chandler, Lance Reddick, Kaylee Hottle
Gênero: Aventura
Duração: 113 min
https://www.youtube.com/watch?v=aJMfEz2cobI
Crítica | Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio - Detetives do sobrenatural
No que diz respeito à última década de Hollywood, James Wan certamente foi um dos profissionais mais bem sucedidos no viés comercial (e até mesmo artístico, em alguns casos). Não só o cineasta australiano foi capaz de dirigir dois filmes de bilheteria bilionária para estúdios diferentes (sendo o único a fazê-lo até hoje), mas também seguiu desenvolvendo grandes universos para franquias de terror, caso de Sobrenatural e do megassucesso Invocação do Mal, uma das joias da coroa da New Line/Warner Bros.
Após seis filmes que retrataram dois casos reais do casal Ed e Lorraine Warren, uma trilogia de derivados sobre a boneca maligna Annabelle e um spin off sobre a Freira demoníaca, Wan resolve passar o bastão da terceira parte de sua “nave-mãe”, com Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio. Sai o australiano, entra o relativamente novato Michael Chaves, que até faz um trabalho competente, mas não consegue apagar a sensação de oportunidade perdida.
Baseando-se mais uma vez em um caso real investigado pelo agora falecido casal, a trama toma como base a história de Arne Johnson (Ruari O’Connor), que foi a primeira pessoa na história dos Estados Unidos a usar possessão demoníaca como justificativa para um homícidio, rendendo um dos casos judiciários mais documentados da década de 80. Em meio a esse furor midiático, entra o casal Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga), que tentam fornecer base ao argumento de Arnie ao investigar as ações de uma figura sinistra que assola a região.
Há uma clara tentativa de ruptura quando chegamos ao terceiro Invocação do Mal. Uma intenção louvável, afinal, já são 7 filmes em quase uma década de produção, e a ideia de termos mais uma história de casa mal assombrada para o casal resolver soaria repetitiva no casal. Assim, o roteirista David Leslie Johnson-McGoldrick troca aquele subgênero para se dedicar a uma variante inesperada, até por se tratar de um caso envolvendo o sistema judiciário: o de investigação criminal.
Isso mesmo, agora os Warren são literalmente detetives do paranormal, faltando apenas um pastor alemão para se tornarem o novo Scooby Doo. É uma ideia interessante e que imediatamente traça paralelos com obras como O Silêncio dos Inocentes e Se7en - Os Sete Crimes Capitais (e Chaves constantemente emula o visual de David Fincher) e que, se descaracteriza completamente os personagens mais realistas dos dois anteriores, ao menos rende uma trama pulp que entretém durante sua duração rápida, e se diverte com momentos onde, brincando, Lorraine diz ter conhecido Elvis Presley “antes e depois” de sua morte.
Só é uma pena, e aqui temos uma questão de expectativa que pode ou não ser subjetiva, que Johnson-McGoldrick desvie tanto de sua proposta titular. O tal do caso “O Diabo Me Fez Fazer Isso”, que parecia vender um filme de tribunal soturno aos moldes do ótimo O Exorcismo de Emily Rose. Infelizmente, toda essa discussão potencialmente estimulante sobre ciência x religião acaba ficando bem longe do resultado final, que só se lembra do personagem de Arne Johnson para render algumas sequências de terror durante sua estadia na prisão - sendo meramente um joguete narrativo com motivações inexistentes, preferindo manter o foco no CSI Casal Warren durante a maior parte.
Novamente, isso não chega a ser um problema já que estamos investidos nesses personagens. Mas é algo que certamente é mais mérito das performances de Patrick Wilson e Vera Farmiga, que se mostram cada vez mais confortáveis ao espantar entidades malignas, entrar em outras dimensões e também compartilhar alguns momentos de real ternura entre Ed e Lorraine. O texto de Johnson-McGoldrick não traz muito de novo para a relação dos dois - além de uma subtrama envolvendo um ataque cardíaco de Ed - e também carece do investimento emocional genuíno que vimos (principalmente) em Invocação do Mal 2. Mas, repito, Wilson e Farmiga entregam muito além do que têm em mãos.
O que nos leva à grande incógnita da equação: o diretor Michael Chaves. Mais famoso por videoclipes e curtas-metragens, o cineasta foi apadrinhado por James Wan, que produziu o terror irregular A Maldição da Chorona (que é, mas não é parte do universo de Invocação do Mal) e abocanhou a responsabilidade de comandar este importante novo filme. Chaves certamente tem um bom olho estético, já que consegue criar (junto do diretor de fotografa Michael Burgess) uma atmosfera visual diferente dos anteriores e que bebe bem de suas influências, rendendo até mesmo uma bela homenagem ao plano mais famoso de O Exorcista já em seus minutos iniciais.
Infelizmente, Chaves não tem a elegância e nem a paciência de James Wan na hora de estabelecer sua atmosfera de terror. Todas as cenas envolvendo esses elementos carecem de tensão ou pavor, dando espaço a sustos gratuitos e “cenas de ação” que não impactam ou geram desconforto como na dos anteriores, mesmo que Chaves tente inserir mais movimento e agressividade a seus movimentos de câmera e cortes rápidos. É certamente o filme mais tranquilo da saga toda, que apesar de não ser comprometido pela condução do diretor (Chaves é mais inspirado quando desenvolve as habilidades sensitivas de Lorraine), mas que certamente deixa a desejar pelo alto nível estabelecido pela marca da franquia.
Há uma sensação intangível de que Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio poderia ter sido muito melhor aproveitado com uma abordagem diferente. Graças ao trabalho dos sempre ótimos Patrick Wilson e Vera Farmiga, o resultado pende mais para o positivo, rendendo um thriller escapista pulp que não ofende, mas certamente precisa de uma curadoria melhor de James Wan.
Agora, vamos cogitar a ideia do casal Warren ter um cachorro falante...
Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio (The Conjuring: The Devil Made Me Do It, EUA - 2021)
Direção: Michael Chaves
Roteiro: David Leslie Johnson-McGoldrick
Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Ruari O'Connor, Sarah Catherine Hook, Julian Hilliard, John Noble, Eugenie Bondurant, Shannon Kook, Ronnie Gene Blevins
Gênero: Terror
Duração: 111 min
https://www.youtube.com/watch?v=anDtrp34xig
Crítica | Cruella - A Disney abraça o punk rock
Duas locomotivas aceleradas de Hollywood se chocam no mais recente projeto da Disney, lançado simultaneamente nas salas de cinema e no serviço de streaming da empresa.
A primeira delas é o desejo de roteiristas e produtores em apostar na figura do anti-herói, oferecendo histórias de origem para vilões e “simpatias pelo diabo”, como dizia a canção do Rolling Stones. A outra, claro, é a prática agridoce da Disney de reinventar seus grandes clássicos animados em versões live-action que lucram na nostalgia de públicos ao redor do mundo.
Essa colisão de locomotivas nos leva à Cruella, um ambicioso projeto que, em comparação com apostas anteriores, se revela como um dos mais bem-sucedidos.
A proposta deste novo filme começa de forma bem incomum: pegar a icônica vilã de 101 Dálmatas, cuja única motivação encontrava-se em matar filhotinhos de cachorros e confeccionar um luxuoso casaco, e jogá-la em uma história de origem ambientada na Londres dos anos 70, em meio à revolução cultural do punk rock. Assim, acompanhamos a jovem Estella (Emma Stone) e suas investidas no submundo criminoso, culminando em sua batalha de figurinos com a poderosa Baronesa (Emma Thompson), uma magnata influente que tem uma misteriosa conexão com sua mãe.
Guerra de vestidos
Esse elemento de inusitado é justamente o que torna Cruella uma obra tão peculiar. Ao contrário de produções como os recentes O Rei Leão, Mogli - O Menino Lobo, Cinderela, Aladdin ou até mesmo os dois filmes de Malévola (que também apostavam na empatia por uma personagem vilanesca), Cruella não parece nada com um conto de fadas do estúdio, descartando elementos de fantasia, florestas encantadas ou criaturas mitológicas. É, em sua maior parte, uma trama completamente pé no chão que troca os longos vestidos de gala e purpurina por um verdadeiro fashion week cartoon, que evoca o melhor do trabalho de Jenny Beaven (figurinista de Mad Max: Estrada da Fúria que já deve estar preparando espaço para mais um Oscar), e opta pelo caminho comentado lá em cima, de uma jornada em espiral “para o lado sombrio”.
As intenções certamente são animadoras, assim como a maestria de Craig Gillespie na direção. Responsável pelo bombástico Eu, Tonya e produções subestimadas como Lars e a Garota Real e o bom remake de A Hora do Espanto, Gillespie oferece caprichados planos de câmera que claramente se inspiram no cinema de Martin Scorsese, momentos de atuação que realmente parecem quebrar com a “mesmice" que domina a maioria das produções Disney e uma estética radical que, novamente, realmente não é o que costumamos associar com o estúdio de Walt Disney - algo potencializado também pela ótima trilha sonora incidental do filme (ainda que seja um pouco inchada demais, à lá Esquadrão Suicida). Este distanciamento tonal é o segundo maior elogio que eu posso fazer à produção.
O primeiro deles, claro, é Emma Stone. Carismática desde sua pequena participação em Superbad: É Hoje, e que explodiu em performances radiantes como A Mentira, A Favorita e La La Land: Cantando Estações, Stone tem a oportunidade perfeita para se divertir e entreter na pele de Cruella De Vil. A transformação de Estella para Cruella pode soar um tanto apressada (falaremos sobre o roteiro em breve), mas Stone arrebenta em ambas as encarnações, aproveitando-se de um sotaque britânico claramente debochado e cartunesco, conseguindo se distanciar da versão de Glenn Close e criar uma figura que é instantaneamente icônica em todas as suas aparições, que garantem também muitas oportunidades para a equipe de maquiagem e penteados.
Vale apontar também o trabalho do elenco coadjuvante, especialmente do cada vez mais eficiente Paul Walter Hauser. Já tendo tido participações memoráveis em Eu, Tonya e também em O Caso Richard Jewell, Hauser garante um dos melhores alívios cômicos como um dos comparsas da protagonista, adotando uma divertida persona de inglês briguento. Já Emma Thompson não precisa fazer muito para garantir uma presença marcante em cena, e ao fazer de sua Baronesa uma versão (um pouco) mais simpática da Miranda Priestly de O Diabo Veste Prada, garante uma antagonista competente.
Só um manequim
O problema de Cruella é tudo que não envolve seu elenco e toda a questão plástica. Escrito por Dana Fox e Tony McNamara a partir de argumentos de Aline Brosh McKenna, Kelly Marcel e Steve Ziss (vejam só quantas pessoas jogaram diferentes ideias aqui), o roteiro infelizmente fracassa em suas tentativas de elaborar uma história que justifique a origem da personagem e todo seu conflito com a Baronesa. Na metade de suas carregadas 2h15 de duração, me peguei perguntando: “É uma grande competição de moda? As pessoas vão morrer por conta disso?”. Em suma, não é uma história capaz de justificar toda essa transformação e o drama da protagonista, que só fica mais tolo com a reviravolta previsível envolvendo a personagem de Thompson.
E… eu sei que a Disney realmente queria dálmatas nesse filme de alguma forma, mas a forma como são aproveitados no prólogo chega a ser risível, como se os roteiristas estivessem passando tempo demais vendo memes na internet.
Cruella é um excelente incentivo da Disney em evoluir a estética e a casca de suas produções live-action, injetando energia e personalidade em um modelo de cinema carente de estilo. Infelizmente, apesar da ótima Emma Stone, toda a profundidade e história do prelúdio não merecem essa sofisticada vestimenta. Apenas um manequim oco, com um belo casaco.
Cruella (EUA, 2021)
Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Dana Fox e Tony McNamara, argumento de Aline Bosch McKenna, Kelly Marcel e Steve Bliss, baseado na obra de Dodie Smith
Elenco: Emma Stone, Emma Thompson, Paul Walter Hauser, Joel Fry, John McCrea, Mark Strong, Emily Beecham, Kirby Howell-Baptiste, Kayvan Novak
Gênero: Aventura, Comédia
Duração: 135 min
https://www.youtube.com/watch?v=MNzVejYsFhY
Apostas para o Oscar 2021 - Quem vai ganhar e quem deveria
O Oscar 2021 vai acontecer neste domingo (25), coroando uma das temporadas de prêmios mais incomuns de todos os tempos. Em tempos de pandemia, é até difícil se importar com a famosa premiação da Academia, e o estado do mundo claramente se reflete na qualidade dos indicados, mas ainda assim preparamos algumas previsões.
Abaixo, separamos nossas apostas e desejos pessoais para cada uma das categorias do Oscar.
Confira!
Melhor Filme
Quem vai ganhar: Nomadland
Em um ano bem prejudicado pela pandemia, a temporada de prêmios ficou todos esses meses gritando para Nomadland, o drama existencial de Chloé Zhao que conta com uma intimista visão do interior dos EUA. E não parece que isso será diferente, já que o longa da Searchlight faturou vitórias importantes no PGA, DGA, BAFTA e Critics Choice Awards. Apesar de uma possível ameaça de Os 7 de Chicago (pelo contexto político), Nomadland é o franco favorito.
Quem deveria ganhar: Meu Pai
Melhor Direção
Quem vai ganhar: Chloé Zhao - Nomadland
Não existe outra resposta para essa pergunta. O percurso de Zhao ao longo de toda a temporada foi quase que invicto, com a cineasta faturando o DGA, BAFTA e incontáveis prêmios com a crítica desde o final do ano passado. É um trabalho competente, e que colocará Chloé Zhao como apenas a segunda mulher a vencer o Oscar de Direção, e a primeira mulher asiática a fazê-lo. Ninguém tira essa estatueta de Nomadland.
Quem deveria ganhar: Emerald Fennell - Bela Vingança
Melhor Ator
Quem vai ganhar: Chadwick Boseman - A Voz Suprema do Blues
Uma das grandes tragédias de 2020 no mundo do entretenimento foi a morte prematura de Chadwick Boseman, justamente quando o ator entregaria seu trabalho mais poderoso com A Voz Suprema do Blues. É argumentável que Boseman não seja a melhor atuação entre os indicados, vide o estrondoso trabalho de Anthony Hopkins em Meu Pai, mas a Academia certamente homenageará o ator com uma vitória póstuma.
Quem deveria ganhar: Anthony Hopkins - Meu Pai
Melhor Atriz
Quem vai ganhar: Viola Davis - A Voz Suprema do Blues
Esta certamente é a categoria mais imprevisível da noite. Não existe uma atriz favorita, todas as indicadas ganharam prêmios importantes ao longo da temporada e seja lá quem abrir o envelope neste dia 25, será uma surpresa. Porém, pela força do SAG, a aposta aqui vai para Viola Davis, que se tornaria apenas a segunda mulher negra a vencer na categoria.
Quem deveria ganhar: Vanessa Kirby - Pieces of a Woman
Melhor Ator Coadjuvante
Quem vai ganhar: Daniel Kaluuya - Judas e o Messias Negro
Se a categoria de Atriz promete ser uma surpresa, a de Ator Coadjuvante oferece um caminho bem mais claro. Interpretando o revolucionário Fred Hamtpon em Judas e o Messias Negro, Daniel Kaluuya oferece um trabalho notável, e que foi reconhecido com vitórias no SAG, Globo de Ouro, BAFTA e Critic's Choice. Uma vitória fácil para Kaluuya.
Quem deveria ganhar: Leslie Odom Jr. - Uma Noite em Miami
Melhor Atriz Coadjuvante
Quem vai ganhar: Yuh-jung Youn - Minari: Em Busca da Felicidade
Uma categoria que começou cheia de possibilidades no começo da temporada, e até abriu um sorriso para uma possível vitória de Maria Bakalova em Borat, mas que agora está bem direcionada para que Yuh-jung Youn seja coroada. Ela venceu o SAG e o BAFTA na categoria, e é certamente o maior destaque de Minari.
Quem deveria ganhar: Maria Bakalova - Borat: Fita de Filme Seguinte
Melhor Roteiro Original
Quem vai ganhar: Bela Vingança
Quando vemos o nome de Aaron Sorkin entre os indicados, é sempre bom apostar na máquina de escrever humana! E até parecia que Os 7 de Chicago seria o favorito nessa categoria, mas a força de Emerald Fennell com Bela Vingança foi crescendo exponencialmente, com vitórias no BAFTA e WGA. Será uma vitória bem merecida para aquele que, talvez, seja o texto mais original da temporada.
Quem deveria ganhar: Bela Vingança
Melhor Roteiro Adaptado
Quem vai ganhar: Meu Pai
Aqui, o favorito Nomadland pode faturar mais um Oscar para Chloé Zhao (que além de dirigir, escreveu e montou o longa todo), mas há uma curiosa competição. Borat: Fita de Cinema Seguinte venceu o WGA nessa categoria, enquanto o excelente Meu Pai saiu coroado no BAFTA. Creio que a Academia não vai deixar o trabalho de Florian Zeller sem nada na estante, então a aposta fica para essa maravilhosa adaptação teatral.
Quem deveria ganhar: Uma Noite em Miami...
Melhor Filme de Animação
Quem vai ganhar: Soul
Se a categoria de Melhor Filme sofreu com a ausência de outros lançamentos, a de animação é quase uma raspada de fundo de balde. Porém, o ótimo Soul se destaca e deve garantir mais uma vitória fácil para a Pixar, apesar da campanha forte da Apple TV+ pelo belo Wolfwalkers.
Quem deveria ganhar: Soul
Melhor Filme Internacional
Quem vai ganhar: Druk: Mais uma Rodada
O Brasil ficou fora da lista mais uma vez, e ainda que não tenhamos uma força da natureza como Parasita, a corrida está bem apontada para a Dinamarca. Druk: Mais Uma Rodada foi bem aclamado em festivais e ganhou prêmios importantes, e o grande fator está na categoria de Direção: a indicação de Thomas Vinterberg ali já sela a vitória do filme aqui.
Quem deveria ganhar: Druk: Mais uma Rodada
Melhor Documentário
Quem vai ganhar: Meu Professor Polvo
A categoria de documentários sempre apronta algumas surpresas ao longo da temporada, e o favorito As Mortes de Dick Johnson acabou ficando de fora. Ainda assim, a Netflix ainda deve sair vitoriosa aqui, seja por Crip Camp: Revolução por Inclusão (que tem o peso da família Obama na produção) ou o premiado Meu Professor Polvo. A aposta fica no segundo.
Quem deveria ganhar: Collective
Melhor Design de Produção
Quem vai ganhar: Mank
Quando Mank foi anunciado, parecia que finalmente teríamos um grande campeão do Oscar para David Fincher a própria Netflix. Porém, agora parece que essa vitória técnica será a única estatueta que o longa sobre Cidadão Kane vai faturar, visto as vitórias no BAFTA, Art Directors' Guild e outros sindicatos. Uma vitória expressiva.
Quem deveria ganhar: Meu Pai
Melhor Fotografia
Quem vai ganhar: Nomadland
A rapa de Nomadland vai se estender até o trabalho de fotografia de Joshua James Richards, que capturou belas imagens com luz natural no interior dos EUA, sendo reconhecido no BAFTA. Porém, há uma possibilidade do trabalho preto e branco belíssimo de Mank ser reconhecido aqui, já que o longa venceu um prêmio importante no American Society of Cinematographers.
Quem deveria ganhar: Mank
Melhor Figurino
Quem vai ganhar: A Voz Suprema do Blues
Uma categoria que sempre se beneficia de filmes de época, como os indicados indicam. Apesar de Emma ter o trabalho mais tradicional e que geralmente atrai prêmios, A Voz Suprema do Blues impressionou na temporada, tendo colecionados prêmios no BAFTA, Costume Designers Guild e Critics' Choice Awards.
Quem deveria ganhar: Mulan
Melhor Maquiagem & Cabelo
Quem vai ganhar: A Voz Suprema do Blues
Assim como na categoria anterior, temos um caminho bem apontado para a vitória de A Voz Suprema do Blues, especialmente pela caracterização de Viola Davis na personagem titular de Ma Rainey. Se há algum filme que poderia surpreender é Era Uma Vez um Sonho, pela ótima transformação de Glenn Close.
Quem deveria ganhar: Pinóquio
Melhor Montagem
Quem vai ganhar: O Som do Silêncio
Uma categoria que realmente está muito bem preenchida. Qualquer um dos vencedores é digno de levar a estatueta, mas os sinais apontam para um reconhecimento de O Som do Silêncio, que venceu no BAFTA. Na lanterna, Os 7 de Chicago pode sair vitorioso mesmo que não seja para ficar de mãos vazias (algo que a caríssima campanha da Netflix certamente não quer).
Quem deveria ganhar: Meu Pai
Melhores Efeitos Visuais
Quem vai ganhar: Tenet
O mesmo pensamento dos filmes de animação se aplica aqui: literalmente tivemos sobras, já que a maioria dos filmes blockbusters acabaram adiados. Assim, o caminho para que os efeitos impressionantes de Tenet vençam fica ainda mais livre, apesar da pesada campanha da Netflix para reconhecer O Céu da Meia-Noite. Essa uma categoria onde os filmes de Christopher Nolan costumam se dar bem.
Quem deveria ganhar: Tenet
Melhor Som
Quem vai ganhar: O Som do Silêncio
Pela primeira vez, agora temos apenas uma categoria para reconhecer o trabalho sonoro no cinema (o que é uma decisão bem infeliz, sinceramente). Aqui, teremos uma vitória extremamente merecida de O Som do Silêncio, um dos poucos filmes (ao lado da mixagem em mono de Mank) que realmente usa o som de forma criativa para contar sua história.
Quem deveria ganhar: O Som do Silêncio
Melhor Trilha Sonora
Quem vai ganhar: Soul
Essa é uma das vitórias mais fáceis da noite toda. A maravilhosa trilha sonora de Trent Reznor, Atticus Ross e John Baptiste para Soul ganhou praticamente tudo ao longo dos últimos meses (Globo de Ouro, BAFTA, Critics Choice) e se destaca como uma das mais fáceis previsões desse Oscar.
Quem deveria ganhar: Tenet, que nem foi indicada?!
Melhor Canção Original
Quem vai ganhar: "Speak Now" - Uma Noite em Miami...
Entre bons candidatos na mistura, talvez a mais belíssima seja a simples e intimista canção de Leslie Oddom Jr. para Uma Noite em Miami, capturando bem o estilo de Sam Cooke no ótimo filme de Regina King. Ainda assim, o apelo popular de "Husavik" em Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit & Lars é forte (e merecido!) assim como a possibilidade de premiar Diane Warren por “Io Sí (Seen)”, de Rosa e Molmo.
Quem deveria ganhar: "Speak Now" - Uma Noite em Miami...
Crítica | Cabras da Peste - O potencial da comédia de ação
Não é fácil fazer cinema de gênero no Brasil. É especialmente mais difícil quando este gênero acaba sendo a ação, ou a variante do policial, e quando remetemos a tentativas mais recentes (como O Doutrinador ou Segurança Nacional), geralmente é possível encontrar o mesmo problema: a repetição de clichês e vícios do cinema americano, que soam artificiais e incongruentes com a cultura e também o idioma nacional. Dito isso, é ainda mais difícil imaginar como uma paródia de cinema de gênero - que já é raro no país - poderia suceder, mas o que encontramos na comédia satírica Cabras da Peste, lançada nesta semana na Netflix, é uma bela exceção.
A trama parte de uma das mais típicas convenções de filmes policiais dos EUA, apostando na união de duas personalidades muito distintas entre si. No caso, temos o “policial de escritório” Trindade (Matheus Nachtergaele), que luta contra sua insegurança de se tornar um agente de campo em São Paulo, e o brilhantemente batizado Bruceuilis (Edmilson Filho), um animado policial de uma pequena cidade no Ceará. Quando a cabra Celestina é acidentalmente roubada do Ceará e levada para São Paulo, os estilos de Trindade e Bruceuilis entrarão em conflito para resolver uma bizarra conspiração.
Co-escrito e dirigido por Vitor Brandt (cujo único crédito anterior na direção é a paródia Copa de Elite), Cabras da Peste é bem feliz em sua decisão de abraçar a sátira e o tom cartunesco durante toda a projeção. É justamente a seriedade das produções citadas no início que acabam prejudicando o resultado, e ao optar pela paródia de tais clichês e convenções, Brandt se sai bem melhor - buscando uma veia de humor metalinguístico e autoreferencial que remete a franquia Cine Holliudy (que, veja só, também traz Edmilson Filho em seu núcleo protagonista).
O humor, que varia entre erros e acertos dependendo da subjetividade do espectador, tem seus pontos altos ao brincar com referências dentro do gênero. O próprio nome de um dos protagonistas já demonstra o tipo de filme que temos aqui, e guardo a surpresa para quando Filho revela os outros nomes “inspirados” de sua família. Nesse quesito, a química entre Filho e Nachtergaele é perfeita para garantir a dinâmica do policial “agitado” com o “certinho”, remetendo a clássica dupla de Mel Gibson e Danny Glover na popular franquia Máquina Mortífera, o choque de expectativas de Will Ferrell e Mark Wahlberg em Os Outros Caras e - esta em especial - a de Ryan Gosling e Russell Crowe no recente Dois Caras Legais, obra de Shane Black que seria a que mais se aproxima em tom e estilo de Cabras da Peste.
Todos os aspectos estéticos da produção corroboram para essa atmosfera cartunesca, seja a direção de arte colorida e rústica de Juliana Ribeiro ou a fotografia que salta dos tons quase surreais do Ceará para luzes de neon propositalmente exagerada em bares de São Paulo, capturando o estilo do cinema de ação visto na cinessérie John Wick ou a filmografia de Gareth Evans. Nesse quesito, a coreografia das lutas impressiona pelo equilíbrio do humor (reminiscente até mesmo do estilo de Jackie Chan ou paródias como Kung-Fusão) com combates físicos realistas e muito bem encenados - e abro espaço para destacar o trabalho dos dublês Renan Medeiros, Jéssica Tomachunas e a respectiva equipe, que tem participações como dois capangas bem estilizados.
Movendo-se agilmente por 98 minutos fluidos e bem estruturados, Cabras da Peste é o raro exemplo de uma sátira que entende os movimentos do gênero parodiado e também o grande potencial da comédia de ação. Uma bem-vinda surpresa para 2021, e eu não me importaria de ver mais “causos" da dupla Bruceuillis, Trindade e a carismática cabra Celestina.
Cabras da Peste (2021 - Brasil)
Direção: Vitor Brandt
Roteiro: Vitor Brandt, Denis Nielsen
Elenco: Edmilson Filho, Matheus Nachtergaele, Evelyn Castro, Letícia Lima, Juliano Cazarré, Victor Allen, Renan Medeiros, Jéssica Tamochunas, Eyrio Okura
Gênero: Comédia
Duração: 98 min
https://www.youtube.com/watch?v=9wAF0NtOCc4&t=10s
Crítica | Liga da Justiça de Zack Snyder - O retorno do autor
Não seria exagero algum dizer que nunca na História tivemos algo como a estranha e complexa jornada para a Liga da Justiça de Zack Snyder. Já houveram cortes do diretor no passado, assim como o público fazendo campanha para cortes alternativos de seus filmes preferidos, mas a proporção que o movimento de fãs da DC para que a Warner Bros lançasse o mítico “Snyder Cut”do filme dos grandes heróis da editora, que foi um fracasso em seu lançamento nos cinemas - supervisionado pelo diretor Joss Whedon (de Os Vingadores).
Após chamadas no Twitter, manifestações, alguns fãs tóxicos e um nobre movimento beneficente para instituições de prevenção de suicídio (a morte de uma das filhas de Snyder foi um dos motivos de sua saída do projeto da DC), finalmente a HBO Max topou financiar e lançar a gigantesca versão original de Snyder do projeto. Com 4 horas divididas em 6 partes, esta Liga da Justiça é um épico que não estaria deslocado se fosse denominado como uma minissérie e, para todos os acertos e defeitos, é certamente uma obra autoral e que não poderia ter sido feita por ninguém a não ser Zack Snyder.
A trama envolve a mesma do corte de 2017, quando um desesperado Batman (Ben Affleck) tenta reunir um time de super-heróis ao lado da Mulher-Maravilha (Gal Gadot), após a morte do Superman (Henry Cavill) pelas mãos do monstruoso Doomsday no longa anterior. Ao longo da gigantesca projeção, somos apresentados aos mundos de Aquaman (Jason Momoa), Flash (Ezra Miller) e Ciborgue (Ray Fisher), enquanto o maléfico Lobo da Estepe (Ciarán Hinds) prepara o terreno para uma invasão alienígena sem precedentes orquestrada pelo poderoso vilão Darkseid (Ray Porter).
Esquecendo o corte de Joss Whedon
A menos que você seja um fã de cultura pop e tenha conhecimento de todo o drama envolvendo os bastidores do projeto, a pergunta que não quer calar é: o que torna este Liga da Justiça diferente da versão de 2017? Vale apontar que, ao contrário da maioria dos cortes estendidos que vemos em edições especiais de mídia física, este é de fato um filme diferente. A história e seus beats são exatamente os mesmos: a Liga se une para impedir uma grande invasão alienígena. A diferença é que, ao contrário da versão de Whedon, todos os personagens ganham muito mais tempo para desenvolvimento, exploração e contexto (afinal, o longa precisa introduzir 4 novos personagens e universos). Analisando do prisma de um longa-metragem, pode ser algo estruturalmente desproporcional, mas do ponto de vista de um grande evento/minissérie, é algo que funciona perfeitamente.
O texto de Chris Terrio, agora sem muitas das interferências de Whedon e do estúdio para acrescentar um humor incongruente com o tom de Snyder (que, acreditem se quiser, tem seus próprios momentos de leveza orgânicos) flui como um épico que balança o desespero de uma invasão iminente em um mundo marcado pela perda do Homem de Aço, com a empolgação de se apresentar as figuras icônicas da DC em versões dinâmicas - sendo especialmente fascinante ver como todas as cenas envolvendo o Ciborgue de Ray Fisher são bem mais complexas e conceitualmente criativas, como na inventiva solução visual para apresentar a “rede VR" que o herói é capaz de projetar em sua mente. Na versão de Whedon, tudo surge muito mais simplista e, mesmo levando em conta o desejo da Warner de um filme de 2h, raso. Aqui, além de mais complexo, garante um desempenho ainda mais dramático e interessante de Fisher.
Mas se há um elemento do filme de 2017 que certamente ganhou o melhor aprimoramento aqui é o Lobo da Estepe. Antes um bonecão digital sem carisma ou qualquer tipo de senso de ameaça ou presença, o servo de Darkseid surge aqui com um novo visual que - apesar do exagero em sua armadura espinhosa - garante mais presença e ameaça, graças ao ótimo trabalho vocal de Hinds. Mas o que mais surpreende é o fato de que o personagem agora tem um surpreendente arco dramático e uma motivação pessoal por trás de sua cruzada de destruição, que ganha força nos olhos bem mais humanos e realistas da criação digital. Uma melhora verdadeiramente positiva e que, sinceramente, eu não esperava.
Zack Snyder mais Snyder que Snyder
Sendo um filme de Zack Snyder - e mais importante, um filme de Zack Snyder sem restrição alguma - há alguns elementos e vícios estilísticos que seus fãs (e críticos) certamente já devem esperar. Em 4 horas, Snyder brinca com todo o slow motion, violência estilizada, covers melódicos que transformam momentos em videoclipes e quadros épicos que a duração lhe permite. Isso garante momentos inspirados, como a espetacular sequência que explora uma batalha ancestral entre todas as forças da Terra e o exército de Darkseid, mas também proporciona uma galhofa brega como o momento em que Aquaman tira a camisa em câmera lenta diante uma tempestade marítima por intermináveis minutos.
Esta nova versão pode não garantir novos admiradores do diretor, mas certamente vai agradar seus fãs. E também fico feliz de encontrar Snyder em um território mais próximo de 300 e sua adaptação de Watchmen, abandonando algumas das pretensões temáticas bem óbvias e nada sutis de O Homem de Aço e Batman vs Superman em relação ao imagético religioso do Superman de Henry Cavill. Espere um Zack Snyder bem mais divertido e à vontade consigo mesmo, como nos bons tempos dos anos 2000.
A duração de 4 horas com certeza é algo que assustará muitos (eu mesmo estava receoso do tempo inchado), mas o montador David Brenner merece aplausos. O ritmo da produção, que se divide em 6 capítulos dentro da narrativa, é ágil e ao mesmo tempo contemplativo, já que sempre estamos saltando para algum núcleo de personagem onde muito está acontecendo. Já assisti a filmes blockbuster mais curtos do que a Liga da Justiça de Zack Snyder, mas que certamente demorei mais tempo para terminar. Mantendo a cola de toda a pancadaria e imagético épico, está a excelente trilha sonora de Tom Holkenborg (vulgo Junkie XL), que garante uma ambientação intensa, melódica e que faz o melhor para equilibrar um inesperado rock metal com corais intensos - o que aproxima-o bastante do trabalho de Tyler Bates em 300.
Todos os Cavalos do Rei
O ambicioso corte de Zack Snyder para este Liga da Justiça pode não capturar muitos fãs novos, mas certamente é um experimento fascinante e que oferece um tratamento bem mais digno para os personagens (e a história) do que o corte de 2017. É uma análise bombástica e inegavelmente autoral para o mito do super-herói e suas ligações com deuses e lendas no panteão moderno. Uma instigante e divertida espiada em um universo alternativo.
Será que para por aí?
Liga da Justiça de Zack Snyder (Zack Snyder's Justice League, 2021 - EUA)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Chris Terrio, argumento de Zack Snyder e David Goyer
Elenco: Ben Affleck, Gal Gadot, Henry Cavill, Jason Momoa, Ezra Miller, Ray Fisher, Amy Adams, Diane Lane, Ciáran Hinds, Ray Porter, Joe Morton, J.K. Simmons, Amber Heard, Willem Dafoe, Kiersey Clemons, Connie Nielsen, Robin Wright, David Thewlis, Billy Crudup, Jared Leto, Jesse Eisenberg, Joe Manganiello
Gênero: Aventura
Duração: 242 min
https://www.youtube.com/watch?v=vM-Bja2Gy04&t=7s
Crítica | The Mandalorian: 2ª Temporada - A ressurreição de Star Wars
2019 foi um ano complexo para o Star Wars da Disney. Ao mesmo tempo em que J.J. Abrams falhava em trazer uma conclusão satisfatória para a nova trilogia nos cinemas, com o medíocre A Ascensão Skywalker, a história de ficção científica ganhava uma nova roupagem no streaming do Disney+, com a espetacular primeira temporada de The Mandalorian, que colocava a saga de volta às suas raízes de serials, matinês e faroestes. Se o cinema falhou, Jon Favreau e Dave Filoni acertavam em cheio com a versão seriada de Star Wars.
Esse sucesso, tanto de público quanto de crítica (até mesmo o Emmy se rendeu à fofura de Baby Yoda), claramente dita um padrão de qualidade altíssimo para o futuro da franquia no streaming. E esse caminho começa a ser seguido, e agora em níveis ainda mais superiores, com a segunda temporada de The Mandalorian, que pode ser marcada pela expansão do universo do protagonista de Pedro Pascal para diversas outras áreas conhecidas pelos fãs, seja do cinema ou das séries de animação. No papel, parece a receita para o desastre e o fan service descarado, mas o resultado é absolutamente incrível.
A trama destes novos 8 episódios segue o fio deixado pela temporada anterior, onde o caçador de recompensas Din Djarin (Pascal) precisa cruzar a galáxia para levar a preciosa Criança para se reunir com algum Jedi, na esperança de treiná-lo. Ao longo de sua jornada, onde é constantemente perseguido por bandidos atrás do bebê e também por forças imperiais, representadas pelo imponente Moff Gideon (Giancarlo Esposito), o Mandaloriano descobrirá mais sobre sua própria crença, assim como figuras icônicas do universo de Star Wars.
Chegando nesta segunda temporada, não temos uma mudança radical na estrutura da narrativa. Assim como no ano anterior (e isso foi erroneamente criticado por muitos como filler) temos uma série de aventuras isoladas, com começo, meio e fim, que o Mandaloriano precisa participar para continuar avançando a trama da história principal. É uma tática divertida, e que - novamente - diz respeito ao material base onde George Lucas se inspirou para criar a saga, e que parece muito mais confortável nesse tipo de linguagem. As referências a faroeste continuam correndo soltas, com o primeiro episódio lidando com a clássica premissa de uma cidade dominada por um xerife (aqui, um carismático Timothy Olyphant que precisa se unir para enfrentar um grande monstro.
O gênero se expande até mesmo para o cinema de Akira Kurosawa, com o capítulo 13, onde Filoni cresce muito como diretor e bebe da fonte de Yojimbo para trazer uma das personagens mais queridas das animações para uma empolgante aventura em live-action. É uma forma classuda e elegante de se produzir conteúdo de Star Wars, e que é facilmente superior (e mais inventiva) do que a maioria das tentativas recentes que foram realizadas no cinema. Star Wars raramente teve um visual tão cinematográfico quanto em The Mandalorian, e a segunda temporada só melhorou isso.
E se os fãs das animações já devem ter ficado animados com a presença de diversos personagens de algumas das produções de Dave Filoni (sempre preenchendo uma necessidade narrativa), os espectadores dos filmes tiveram um prato cheio com o antepenúltimo episódio. Trazendo seu melhor trabalho em mais de uma década, Robert Rodriguez garante uma das cenas de ação mais brutais e empolgantes de toda a franquia para fazer jus ao retorno de Boba Fett, vivido com frieza e fúria pelo excelente Temuera Morrison. É o tipo de ação bruta e inventiva que certamente só alguém que brincava com bonequinhos quando criança seria capaz de realizar nas câmeras.
Há também, claro, uma participação especial no último episódio da temporada que levou os fãs loucura. Pessoalmente (e sem querer entrar em spoilers aqui), é uma ideia interessante e fascinante para os rumos da história e da mitologia da franquia, mas que acaba um tanto prejudicada pela péssima execução dos efeitos visuais envolvidos na... criação de um rosto digital, por assim dizer. Porém, tal escolha só mostra que a série do Disney+ não terá mais limites do que pode ou não acontecer no cânone da saga.
Mas o grande destaque de The Mandalorian segue sendo aquele que ajudou a tornar a série tão bem sucedida: a relação de seu protagonista sem rosto e o adorável Baby Yoda, que aqui teve seu nome revelado. Não deixa de ser impressionante como o apego emocional entre uma figura de capacete e um fanchote consegue ser tão envolvente e poderoso, e que Favreau e Filoni têm coragem de levar a um desfecho melancólico, mas cheio de potencial para os futuros episódios da saga.
A segunda temporada de The Mandalorian representa uma perfeita expansão de seu primeiro ano, seja na qualidade do trabalho de direção, nas histórias simples que ganham impacto pelos detalhes e o universo bem aproveitado de Star Wars, que soa mais vivo e fascinante no streaming do que nas telas do cinema. Mesmo depois de alguns tropeços, o futuro da saga volta a ser promissor.
The Mandalorian - 2ª Temporada (EUA, 2020)
Criado por: Jon Favreau e Dave Filoni, baseado nos personagens de George Lucas
Direção: Jon Favreau, Peyton Reed, Bryce Dallas Howard, Dave Filoni, Carl Weathers, Robert Rodriguez, Rick Famuyiwa
Roteiro: Jon Favreau, Dave Filoni, Rick Famuyiwa
Elenco: Pedro Pascal, Carl Weathers, Gina Carano, Timothy Olyphant, Tempera Morrison, Ming Na Wen, Rosario Dawson, Sasha Banks, Katee Sackhoff, Giancarlo Esposito, Bill Burr, Michael Biehn
Gênero: Aventura
Episódios: 8
Duração: 30-40 min
https://www.youtube.com/watch?v=eW7Twd85m2g
Crítica | O Som do Silêncio - O poder da catarse
Nos últimos anos, o cinema tem dado um merecido destaque e exploração de temas envolvendo deficiências físicas. É uma iniciativa louvável, especialmente se a abordagem consegue aliar a exposição benéfica com a força de uma história relevante, como é o caso de O Som do SIlêncio, longa que acabou saindo na Amazon Prime sem muito alarde, mas que desde já (e principalmente no contexto atual) figura-se como um dos grandes filmes lançados em 2020.
A trama nos apresenta ao baterista Ruben (Riz Ahmed), que tenta construir uma carreira no rock ao lado de sua namorada Lou (Olivia Cooke). Porém, Ruben repentinamente começa a sofrer com perda de sua audição, prejudicando seu trabalho na música e também sua saúde mental. Na tentativa de manter a sanidade e preservar a audição que lhe resta até conseguir dinheiro para uma cirurgia, Ruben se interna em uma clínica onde se aprofunda no universo dos surdos.
O Som do Silêncio é uma obra capaz de subverter expectativas. Quando o filme de Darius Marder começa, e somos jogados no meio de uma experiência altíssima e caótica de um show de rock, tive a impressão de estar diante de uma condução ao estilo Darren Aronofsky, onde a visceralidade física alcançaria níveis de desconforto e pavor à lá Réquiem para um Sonho ou Cisne Negro. E, por parte do primeiro ato, essa é parcialmente a abordagem de Marder, colocando a câmera na perspectiva do protagonista para criar momentos literalmente inquietantes, contando com uma caprichada mixagem de som para criar paisagens sonoras distintas que vão alternando seu volume e textura.
Porém, assim que o longa entra na porção da história envolvendo a clínica, chefiada pelo personagem do excelente Paul Raci, toda a experiência se transforma. O desespero e a intensidade que acompanhavam Ruben - assim como a câmera de Marder - dão espaço a uma experiência mais contemplativa, que exige muita paciência do espectador, e alcança resultados lindíssimos. É aqui onde Marder realmente dá espaço a cenas e situações que só poderiam ser escritos por alguém com profunda experiência no tema abordado (e só posso imaginar a pesquisa de Marder e seu co-roteirista, Abraham Marder, no processo).
Durante toda essa porção da história, os diálogos falados são quase que inteiramente substituídos por conversas em linguagem por sinal e interações baseadas em expressões, gestos e ações. Vale apontar que grande parte do elenco e das crianças visitas nessas cenas são realmente surdas, o que garante um resultado extremamente convincente e, pela pura representação destas, emocionante - o momento em que Ruben aprende a se comunicar pela vibração de um escorregador, ou a pequena “aula” de bateria que compartilha com uma turma de crianças, são daqueles raros exemplos de se emocionar profundamente sem qualquer tipo de artifício forçado.
E por falar tanto em Riz Ahmed, a performance do ator é certamente uma das mais fortes e verossímeis do ano. A intensidade no olhar, e a expressão confusa durante a primeira metade só são superadas por seu trabalho mais serene e paciente durante a porção da clínica - e a forma como Ahmed traz apenas indícios e sugestões de seu passado como viciado em drogas, é muito inteligente, e consegue evitar diversos clichês desse tipo de narrativa.
Ao seu lado, a jovem Olivia Cooke também faz um trabalho competente como Lou, especialmente na mudança drástica de sua personagem no ato final, mas pessoalmente achei a relação entre os dois o elemento mais fraco da narrativa - que se arrasta justamente nessa última porção do filme, que ainda conta com uma participação bem-vinda de Mathieu Amalric.
Oferecendo também uma análise complexa e subversiva para o próprio tema da deficiência, O Som do Silêncio é uma das experiências mais satisfatórias e completas de 2020, emocionando tanto por sua representatividade quanto pela experiência altamente identificável de seu protagonista complexo.
O Som do Silêncio (Sound of Metal, EUA - 2020)
Direção: Darius Marder
Roteiro: Darius Marder e Abraham Marder
Elenco: Riz Ahmed, Olivia Cooke, Paul Raci, Mathieu Amalric, Lauren Ridloff
Gênero: Drama
Duração: 121 min
https://www.youtube.com/watch?v=VFOrGkAvjAE&t
Crítica | Fargo: 4ª Temporada - Uma história de crime e imigração na América
Quando os historiadores e analistas da televisão voltarem os olhos para a década de 2010 em alguns anos, o destaque no ramo das séries de ficção provavelmente ficará em obras como Game of Thrones, Stranger Things, Better Call Saul e outros dramas de alto prestígio, seja no cabo ou no streaming. Mas, na opinião deste que vos escreve, nada foi tão gigante e perfeito quanto a série de antologia Fargo, do FX.
O projeto começou como uma simples adaptação/reinvenção do filme homônimo dos irmãos Joel e Ethan Coen, mas graças à genialidade do showrunner Noah Hawley, evoluiu para uma das séries mais originais, bem escritas e desafiadoras que a televisão americana viu em anos recentes. Foram 3 temporadas absolutamente magistrais, que contavam histórias diferentes dentro do mesmo universo, mas sempre com um olhar diferenciado - mantendo o humor satírico e outrora surrealista dos Coen, mas com seu próprio toque de originalidade. Uma quarta temporada nem estava nos planos de Hawley, que tem carta branca na emissora, então ao ver seu anúncio finalmente concretizado, eu já esfregava as mãos na expectativa de mais uma grande narrativa.
Porém, esta nova temporada de Fargo mostra que o raio não cai no mesmo lugar quatro vezes (já sendo algo admirável por se contar as três anteriores), sendo facilmente a coleção de histórias mais fraca e menos memorável que Noah Hawley já produziu na caixa de areia dos Coen. Ainda que, no fundo, ainda seja uma temporada sólida.
Mais uma vez retrocedendo no tempo, a nova temporada coloca a ação na Kansas City de 1959, onde a máfia italiana representada por Donatello Fadda (Tommaso Ragno) mantém uma trégua delicada com o sindicato afro-americano liderado pelo gângster Loy Cannon (Chris Rock). Quando o patriarca italiano é assassinado, seus imaturos e ambiciosos filhos, Josto e Gaetano (Jason Schwartzman e Salvatore Esposito) iniciam uma disputa para assumir o poder, ao passo em que uma guerra com a organização de Cannon se torna cada vez mais próxima.
Um ano irregular, um elenco acertado
Adicione aqui uma inteligente escritora prodígio que mora na funerária dos pais e uma enfermeira psicopata absolutamente caricata, um policial mórmon com delírios de grandeza e um casal de foras da lei lésbico e temos uma ideia do que esperar do ano quatro de Fargo. No papel, parecem os ingredientes perfeitos para mais uma narrativa de erros e monólogos profundos, até mesmo porque o experimento anterior de Hawley com famílias mafiosas (na brilhante segunda temporada) havia sido um sucesso. Porém, Hawley demora para mostrar suas cartas dessa vez, deixando a impressão de que, ao longo dos mais de 10 episódios, não ter uma resolução em mente para a história.
A estreia da nova temporada ocorreu com um episódio duplo, onde somos apresentados de forma minuciosa e até um tanto arrastada para toda a dinâmica dos personagens e seus conflitos. E, desde o início, é uma proposta que parece demorar demais para entender seu próprio potencial. O vai-não-vai do conflito entre os Cannon e os Farda carece do mesmo texto rebuscado das temporadas anteriores, e ainda que eu saúda Hawley por tentar criar uma trama nova que não envolva “criminosos acidentais” e “forças da lei idealistas”, colocando aqui uma exploração bem-vinda sobre questões raciais na América; simplesmente não garante a empolgação e o estudo inteligente dos anos anteriores. Pode-se dizer que Hayley estava olhando mais para Ajuste Final do que Fargo dessa vez, onde a lenta tensão de uma escalada é o destaque, mas o resultado ficou abaixo do esperado.
As tramas em paralelo com a narrativa principal parecem correr em seu próprio ritmo e universo, tendo pouco em comum com o motte principal da série. A trama toda da enfermeira Oraetta Mayflower (Jessie Buckley, uma ladra de cenas) é divertida pelo carisma da atriz, e também pela circunstância mais intensa - principalmente quando se cruza com a inteligente personagem de Emyri Crutchfield, mas sempre surge como uma distração da narrativa principal, e que no final parece pouco justificado; especialmente com a bizarra presença de um "fantasma".
Quando estamos lidando com os irmãos italianos, Jason Schwartzman mostra-se uma escolha equivocada, por trazer um ar de extrema imaturidade para Josto (por mais que seja a proposta, o resultado destoa demais dos demais personagens), ganhando mais fôlego quando o ótimo Salvatore Esposito, na pele da figura detestável que adoramos odiar. E por falar em antagonistas com essa característica, Timothy Olyphant personifica com gosto uma das inversões mais bem sacadas dessa nova temporada: o policial mórmon Dick Wickware, que assume uma postura muito mais clara de vilão, ao contrário dos heróis das temporadas anteriores.
Mas se havia um nome que certamente atraía atenção nesta temporada é o de Chris Rock, naquele que talvez seja seu papel mais desafiador e complexo. É um ótimo personagem, mas que infelizmente demora cerca de 3 ou 4 episódios para realmente mostrar a que veio, ficando mais à sombra do parceiro Doctor Senator (Glynn Turman, excelente) durante essa metade inicial. Quando a história permite que Loy Cannon brilhe, Rock certamente faz um bom trabalho, principalmente com momentos mais dramáticos e longos monólogos de negociação. Ainda assim, fica a impressão de que o ator poderia ter sido muito melhor aproveitado, assim como seu personagem.
Maestria técnica
Em termos técnicos, porém, a quarta temporada de Fargo talvez seja a mais bem resolvida. Adotando uma paleta de cores mais quente, mesmo tratando-se de um período de inverno, todos os episódios garantem soluções de câmera elegantes e sequências que vão desde homenagens a Os Intocáveis até a alguns filmes dos Coen, sendo divertido ver o plano onde um dos agentes de Cannon enforca um de seus inimigos da mesma maneira que o Anton Chighurn de Javier Bardem fez em Onde os Fracos Não Têm Vez.
E se há um episódio que merece destaque aqui é aquele que claramente podemos rotular como filler. Lá pelo final da temporada, o nono episódio, chamado East/West, impressiona pela fotografia em preto e branco melancólica e pelo tom fabulesco; acompanhando a fuga de Rabbi Milligan (Ben Whishaw) com seu protegido, o pequeno Satchel Cannon (Rodney L. Jones III) pelas estradas rurais do interior dos EUA. É um capítulo que foge totalmente das maquinações frágeis da trama mafiosa para se dedicar a um ótimo estudo de personagem e propor questões profundas com o humor nonsense dos Coen. Foi apenas ao longo desses 50 minutos, tivemos um episódio realmente à altura da reputação magistral de Fargo.
No fim, é difícil negar o sentimento de desapontamento em relação ao quarto ano de Fargo. Ao longo de suas 10 horas, temos uma trama competente e com um nível relativamente aceitável de surpresas e reviravoltas, mas nada que chegue aos pés da genialidade de Noah Hawley nas três primeiras temporadas.
Fargo - 4ª Temporada (EUA, 2020)
Showrunner: Noah Hawley
Direção: Noah Hawley, Michael Uppendahl, Dearbhla Walsh, Dana Gonzales, Sylvain White
Roteiro: Noah Hawley, Enzo Mileti, Scott Wilson, Francesca Sloane, Lee Edward Colston, Stefani Robinson
Elenco: Chris Rock, Jason Schwarztman, Jessie Buckley, Emyri Crutchfield, Ben Whishaw, Salvatore Esposito, Jack Huston, Andrew Bird, Anji White, Timothy Olyphant, Glynn Turman, Rodney L. Jones III
Gênero: Drama/Comédia
Episódios: 11
Emissora: FX
Duração: 40-50 min