Crítica | Ad Astra: Rumo às Estrelas - A ficção científica humanista de James Gray
Os melhores filmes de ficção científica nunca são apenas sobre o espaço e seus mistérios, ainda que tenhamos muitos bons exemplares nessa categoria, mas sim sobre conquistas humanas. Recentemente, Hollywood tem se mostrado aberta a diversos longas do gênero, geralmente comandados por autores, que usam a grandiloquência do espaço sideral para contar histórias intimistas, vide Interestelar de Christopher Nolan e Gravidade de Alfonso Cuarón. Agora chegou a vez de James Gray colocar o traje espacial e explorar mais temas profundos com Ad Astra: Rumo às Estrelas
A trama é ambientada alguns anos no futuro, onde a humanidade avançou a viagem espacial para níveis quase mercadológicos, onde temos centros comerciais na Lua e bases de comunicação em Marte. Nesse cenário, o astronauta Roy McBride (Brad Pitt) é chamado para embarcar em uma longa expedição para encontrar seu pai (Tommy Lee Jones), que desapareceu há 30 anos quando procurava por vida extraterrestre na região de Netuno. Além de uma jornada emocional, a missão de Roy tem maior peso quando uma série de tempestades elétricas ameaçam destruir toda a galáxia, em um fenômeno diretamente relacionado a seu pai.
Estrelas perdidas
É uma narrativa simples em sua superfície, e perfeitamente explorada pelo roteiro de Gray e Ethan Gross. Descrito pela própria dupla como "2001: Uma Odisseia no Espaço encontra Apocalypse Now", é uma comparação que pode parecer absurda dado o tamanho das obras de Stanley Kubrick e Francis Ford Coppola, mas faz sentido quando encontramos uma história de jornada para encontrar um homem obcecado e isolado, tudo através de uma verdadeira odisseia contemplativa pelo espaço. E realmente admiro como a dupla foi capaz de criar um universo bem vasto (ainda que pouco explorado) e interessante com pouco tempo, especialmente na forma como viajar de diferentes cantos do universo se tornou algo fácil, e o design de produção é acertadíssimo no retrato das bases lunares e marciana como aeroportos e centros de imigração - com direito a uma loja da Subway, o que é um detalhe genial.
Mas ainda assim, o que mais encanta em Ad Astra é sua intenção. Em seu núcleo, Gray e Gross têm uma mensagem simples e muito poderosa, e que não posso entrar em detalhes por spoiler, mas que pode facilmente ser confundida com niilismo - quando na verdade é um grande testamento de humanismo e esperança, pelo menos para o conflito central de Roy, um homem que lida com o distanciamento de seu pai, e que parece cometer os mesmos erros em seu casamento (representado pela figura de Liv Tyler). É meu aspecto preferido do filme, e que confesso ter me deixado em estado de reflexão desde a primeira vez que o assisti, e que triunfa sobre alguns dos problemas gerais da produção.
O primeiro problema, e isso vai depender puramente do gosto pessoal, está na narração voice over do personagem de Pitt, presente em todo o filme. É um recurso justificável, afinal Roy é um sujeito fechado e que não interage com todas pessoas, logo a ideia de termos seus pensamentos expostos não é tão absurda. Pessoalmente, me tirou da experiência e quebrou o ritmo/tensão de diversas cenas que se beneficiariam de silêncio; como a ótima cena do ataque dos piratas na Lua, que é desconfortavelmente interrompida com a narração "Lá vamos nós de novo, humanos continuam se matando por recursos". É algo que me lembrou constantemente da controversa narração de Harrison Ford no corte original de Blade Runner: O Caçador de Androides - não em termos de performance do ator, mas por relevância.
E faço questão de reforçar isso, já que a performance de Brad Pitt em Ad Astra é simplesmente inebriante. Assim como sua outra grande atuação em 2019, no excelente Era Uma Vez... em Hollywood, Pitt consegue tirar muito de um esforço quase mínimo. É nas expressões sutis, nos tiques e principalmente nos olhares em que o ator consegue impressionar, entregando uma poderosa carga dramática de forma minimalista, e que desde já se posiciona como um de seus trabalhos mais delicados e impressionantes. O mesmo pode ser dito de Tommy Lee Jones, mesmo com uma participação bem reduzida, e os dois
Uma experiência técnica divisiva
Em quesitos técnicos, temos uma experiência satisfatória. Já tendo fotografado o espaço em Interestelar, o suíço Hoyte Van Hoytema faz sua primeira parceria com Gray e traz algo menos deslumbrante para imagens digitais (talvez por estarem em abundância no cinema, é cada vez mais difícil oferecer algo novo), mas acerta na atmosfera mais "física". Todos os interiores, corredores e instalações são iluminados de uma maneira que permite ao espectador sentir a solidão e o isolamento, tal como o próprio desapontamento do protagonista com sua própria situação e ambiente - mesmo que ser um astronauta seja seu sonho, ele constantemente aponta como a conquista espacial se tornou algo deprimente. Hoytema até evoca seu Kubrick ao apostar em cenas iluminadas com apenas uma cor, especialmente nas ambientadas em Marte, e o resultado é esteticamente primoroso.
Quando chegamos a cenas mais "espetaculares", é onde vemos a deficiência de Gray. Seu trabalho com drama, atmosfera e análises intimistas são inquestionáveis, mas fica bem claro que estamos diante de um diretor trabalhando com grandes efeitos visuais pela primeira vez. A maioria das cenas de decolagens e aterrissagens são executadas de forma pragmáticas, sem grande impacto (e há o que ser dito sobre a eficiência do design sonoro, que é indeciso entre silêncio total e um foley abafado).
O maior exemplo disso, de tensão mal trabalhada, encontra-se na desnecessária cena em que Roy e outros astronautas são atacados por primatas enlouquecidos em uma nave abandonada. É um momento prejudicado pelo CGI artificial e pela aparente aleatoriedade - entendemos que é uma forma de tornar a viagem perigosa e "remover" um dos personagens, mas simplesmente não casa com o resto do filme. A exceção fica com a ótima cena dos piratas que atacam Roy no solo lunar, onde a variedade de enquadramentos fechados e abertos ajudam a estabelecer uma tensão
Um filme para se reavaliar
Depois de Era Uma Vez em Nova York e Z: A Cidade Perdida, James Gray mostra com Ad Astra: Rumo às Estrelas que é um dos grandes nomes do cinema americano contemporâneo. Confesso que adoraria uma revisão antes de uma posição final, já que o longa certamente deve ganhar mais com reflexões e reavaliações. Há problemas em sua execução e desenvolvimento, mas o saldo é extremamente positivo, sendo um dos filmes mais pessoais de 2019, e mais um acerto tremendo para Brad Pitt.
Ad Astra: Rumo às Estrelas (Ad Astra, EUA - 2019)
Direção: James Gray
Roteiro: James Gray e Ethan Gross
Elenco: Brad Pitt, Tommy Lee Jones, Donald Sutherland, Ruth Negga, Liv Tyler, Kimberly Elise, Loren Dean, Donnie Keshawarz, Sean Blakemore
Gênero: Ficção científica
Duração: 124 min
https://www.youtube.com/watch?v=0kfRv-L-vqg
Crítica | Predadores Assassinos - A hora dos jacarés brilharem
Quando Steven Spielberg lançou Tubarão em 1976, víamos a popularização de um tipo de história não cinema que já era seminal na literatura: o homem contra uma fera incontrolável. Ao longo dos anos, os antagonistas evoluíram de tubarões para leões, ursos, crocodilos e literalmente qualquer tipo de animal que apresente uma ameaça à dominância da cadeia alimentar. Provando que ainda é possível explorar esse tipo de conceito, Predadores Assassinos chega de forma bem discreta entre outros lançamentos maiores de 2019, sendo eficiente ao colocar jacarés na posição de antagonistas - garantindo boa diversão.
A trama joga o espectador no meio da Flórida, onde um furacão catastrófico traz inundações e muita destruição para uma pequena cidade. Nesse cenário, a nadadora Haley (Kaya Scodelario) precisa adentrar sua casa antiga para resgatar seu pai (Barry Pepper), que ficou preso alguns momentos antes do alerta de furacão. Esse é o menor dos problemas, já que a inundação trouxe um grupo de jacarés mortais para o porão da casa, e agora a missão de Haley de salvar seu pai fica ainda mais perigosa e intensa.
Direto ao ponto
Predadores Assassinos sabe exatamente o que quer fazer. Em menos de 90 minutos de projeção, somos jogados a uma simples história de sobrevivência, onde o roteiro básico e batido dos irmãos Michael e Shawn Rasmussen serve apenas para que o diretor Alexandre Aja possa testar suas habilidades como condutor de tensão. A dupla até tenta trazer um discurso motivacional e desenvolver a relação entre Haley e seu pai, apelando para flashbacks e - claro - uma assimilação entre a sobrevivência real com o esporte da natação (é um foreshadowing óbvio, mas divertido, que Haley nade para uma equipe batizada justamente de “Gators”, Jacarés), mas o resultado não é nem de longe tão eficiente ou profundo quanto o desejado - ficando bem abaixo de, para citar um exemplo no mesmo gênero, o ótimo Águas Rasas.
Quando chegamos ao filé da projeção, o diretor Alexandre Aja faz valer o investimento. Limitando-se à mesma locação por quase boa parte da narrativa, o cineasta ajuda a tornar cada canto daquele porão inundado familiar, sendo um belo exercício de ambientação, que possibilita os sustos e tensões que virão a seguir. Por mais que os jacarés sejam claramente criações digitais, Aja é inteligente ao escondê-los nas sombras por boa parte dos ataques, ao passo em que o design sonoro é o grande responsável por torná-los tão assustadores. Os jump scares estão bem presentes aqui, mas são bem construídos e orgânicos, já que os ventos e batidas do furacão estão sempre bem mixados ao fundo.
O problema, porém, volta para o roteiro dos Rasmussen. Por mais que seja uma narrativa linear e bem simples, a dupla se atrapalha na busca por justificativas para manter os personagens presos dentro da casa. Quando estamos diante de uma possível solução ou fuga para Haley e seu pai, o texto inventa alguma forma de prolongar a duração por mais alguns minutos. É uma tática que se torna repetitiva e pouco inspiradora, principalmente na porção final do longa, e posso apenas imaginar que essas poderiam ter saído de observações do estúdio para “prolongar” a tensão - algo escancarado pela cena em que cortamos para um grupo de ladrões em um barco à frente da casa de Haley.
A hora de Kaya
E se comentei acima que o design sonoro era o grande responsável por tornar as criaturas assustadoras, vai aqui um pequeno retcon: é mesmo Kaya Scodelario quem realmente nos convence de seu perigo. A atriz, inclusive, traz uma grande presença de cena e mostra-se bem capaz de assumir o papel da "final girl" que foi tão bem representado, novamente, por Blake Lively em Águas Rasas. Scodelario domina o filme todo praticamente sozinha, sendo bem auxiliada por um Barry Pepper mais discreto, mas carismático.
Sendo uma experiência rápida e com ótimos momentos de suspense, Predadores Assassinos é uma surpresa agradável em um ano onde todo filme de Hollywood precisa ser o maior evento possível. O terror de Alexandre Aja tem seus excessos, mas é um bom exercício de tensão com uma história simples, e que praticamente demanda mais papéis assim para Kaya Scodelario. Mesmo imperfeito, é ótimo que esse tipo de filme ainda seja lançado nos cinemas.
Predadores Assassinos (Crawl, EUA - 2019)
Direção: Alexandre Aja
Roteiro: Michael Rasmussen e Shawn Rasmussen
Elenco: Kaya Scodelario, Barry Pepper, Morfydd Clark, Ross Anderson, Jose Palma
Gênero: Suspense, Aventura
Duração: 87 min
https://www.youtube.com/watch?v=N-trt0C8iI0
Crítica | It: Capítulo Dois - Uma continuação apaixonada demais pelo original
Stephen King está na moda, e It: A Coisa ajudou a trazer o autor do terror em evidência. Lançado em 2017, a primeira parte da adaptação de sua “obra prima do medo” foi um sucesso tremendo, tornando-se não apenas um acerto crítico, mas também a maior bilheteria para um filme de terror na história do cinema - sem correção de inflação, claro. Andy Muschietti tinha sapatos grandes para preencher com a estreia de It: Capítulo Dois, que traz a resolução da história de Pennywise com uma versão adulta do Clube dos Otários. Diante da responsabilidade, não é de se espantar que o segundo filme falhe justamente por tentar ser um pouco maior do que tudo.
A trama é ambientada 27 anos após o primeiro filme, e envolve o retorno da entidade conhecida como Pennywise (Bill Skarsgard) na cidade de Derry, que passa a sofrer com novos desaparecimentos e ataques. Diante disso, o Clube dos Perdedores precisa cumprir a promessa e voltar para enfrentar a Coisa e destruí-la de uma vez por todas, contando com os retornos de Bill (James McAvoy), Beverly (Jessica Chastain), Ben (Jay Ray), Richie (Bill Hader), Eddie (James Ransone), Mike (Isaiah Mustafa) e Stanley (Andy Bean).
Os adultos representam o grande destaque e foco narrativo de It: Capítulo Dois, mas a presença das crianças não deve ser subestimada. Inclusive, ela representa um dos problemas graves do filme, que se classifica como um tipo perigoso de continuação: aquela apaixonada demais pelo original. Como o primeiro filme foi tão bem sucedido, claramente os realizadores se esforçaram para manter tudo o que deu certo lá aqui, garantindo a recriação de diversos planos, citações e até piadas (é a sina da sequência-homenagem, e olha que estamos falando de apenas dois anos de diferença entre cada um dos filmes) e isso inclui uma grande quantidade de cenas com as versões mais jovens dos personagens - o que resulta em uma projeção excessivamente longa e arrastada, e que poderiam ser perdoadas se essa presença fosse mais relevante.
O talentoso elenco formado por Jaeden Martell, Sophia Lillis, Finn Wolfhard, Jack Dylan Grazer e companhia está aqui para estabelecer a ponte entre os adultos e suas memórias em Derry. É uma estrutura herdada do livro original de Stephen King, e que se mostra problemática para o tipo de adaptação escolhido por Gary Dauberman. Os flashbacks deveriam servir para mostrar eventos que vimos no Capítulo Um, mas como estamos em um novo filme, diversas novas cenas são escritas para reaproveitar o valor de cada um deles com seus medos… O que é absurdamente redundante, ainda mais porque Dauberman os faz enfrentar novamente conflitos e arcos que já haviam sido resolvidos.
Nessas quase 3 horas, o ritmo sofre com lentidão e uma estrutura quase episódica. Acompanhamos cada um dos personagens em “quests” individuais por Derry, e ainda que rendam cenas interessantes dentro de seus microcosmos (principalmente a aterradora cena em que Beverly tem um encontro perturbador com uma velhinha), falta um equilíbrio na montagem de Jason Vallantine para que a história flua melhor.
Quando chegamos à direção, Andy Muschietti não desaprendeu nada. Sua mise en scene continua estilosa e inteligente na forma como explora os ambientes e o requintado design de produção do filme, que realmente torna todos os ambientes palpáveis e assustadores. Seu trabalho só não é tão impactante por recorrer demais a um CGI que é incômodo e notável, mesmo que usado para gerar criaturas com um design que certamente era ainda mais impressionante em uma folha de papel. A cena em que o grupo é surpreendido em um restaurante chinês, por exemplo, não tem o menor impacto em níveis de terror; dada a artificialidade das ameaças, que remetem - negativamente - ao trabalho de Muschietti em Mama. Mas crédito onde merece: um dos elementos mais ridículos da obra de King (e da adaptação de 1991) sobre a forma “real” de Pennywise foram um grande acerto conceitual.
Não esperem uma porção muito grande do lado terror, também. Ao contrário do primeiro filme, Muschietti parece mais interessado nos sustos do que em uma atmosfera aterradora - algo que é melhor explicitado pela cena de abertura, que conta com participação do diretor Xavier Dolan. Se ao menos garante uma boa construção para a chegada de uma cara assustadora ou uma nova criatura, Muschietti pesa nos alívios cômicos, como no inexplicável momento em que “Angel of the Morning” toca por meio segundo durante o encontro entre Eddie e o Leproso. A presença do ótimo Bill Hader também garante respiros assim, mas que acabam indo um pouco além - diversos momentos me peguei pensando que os adultos tentam ser mais brincalhões do que a próprias crianças.
E quanto a Pennywise? Infelizmente, o Palhaço Dançarino de Bill Skarsgard aparece bem pouco. O ator sueco ainda está fantástico no papel, e garante ótimas cenas ao perseguir outras crianças (a cena em que atrai uma menina em um jogo de beisebol é tenebrosa), mas traz um impacto bem menos expressivo quando interage com os membros adultos do Clube dos Otários.
It: Capítulo Dois tem bons momentos, mas é uma continuação inchada, desnecessariamente longa e que carece do mesmo charme do primeiro. Constantemente vemos a tentativa de recapturar o brilho da infância, mas que parece mais distante e artificial. Ser adulto é mesmo uma droga.
It: Capítulo Dois (It: Chapter Two, EUA - 2019)
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Gary Dauberman, baseado na obra de Stephen King
Elenco: James McAvoy, Jessica Chastain, Bill Hader, Isaiah Mustafa, Jay Ryan, James Ransone, Andy Bean, Bill Skarsgard, Jaeden Martell, Sophia Lillis, Finn Wolfhard, Jack Dylan Grazer, Chosen Jacobs, Jeremy Ray Taylor, Wyatt Oleff
Gênero: Aventura, Terror
Duração: 169 min
https://www.youtube.com/watch?v=9hTiR6qD3Ow
Crítica | Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw - Um desenho animado live-action
A franquia Velozes & Furiosos, surpreendentemente, vem rodando desde 2001 nas telas e parece mais forte agora do que foi no passado. Após nove filmes, a Universal Pictures percebeu o valor satírico e absurdo dos filmes que contavam com Vin Diesel como um mero ladrão de DVDs e piloto de corridas, transformando a história em verdadeiras missões para salvar o mundo, reviravoltas dramáticas e discursos açucarados sobre a importância da família.
Eis que nos dois últimos filmes da saga, o show começa a ser roubado por dois de seus personagens coadjuvantes: Dwayne Johnson e Jason Statham, que interpretam, respectivamente, Luke Hobbs e Deckard Shaw. A dinâmica dos dois se tornou explosiva no oitavo filme, e garantiu uma boa dose de humor graças à relação antagônica da dupla. Tamanho o sucesso - e aliado à briga entre Johnson e o astro Vin Diesel - os personagens ganharam seu próprio derivado na forma de Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw, focado justamente em uma aventura isolada dos dois. O resultado não é tão divertido quanto poderíamos esperar, mas explora o potencial da franquia em crescer além de Dom Toretto.
A trama abraça de vez o exagero da franquia ao apostar em elementos de pura ficção científica. Um vírus mortal é roubado pela espiã Hattie Shaw (Vanessa Kirby), que tenta protegê-lo das mãos do perigoso Brixton (Idris Elba), um soldado geneticamente modificado com partes mecânicas, e que pretende usá-lo para fins megalomaníacos de evolução da espécie humana. Diante dessa ameaça, os agentes Hobbs (Johnson) e Shaw (Statham) precisam colocar suas diferenças de lado e trabalhar juntos para encontrar Hattie e impedir o plano de Brixton.
Logo em seus minutos iniciais, Hobbs & Shaw já diz exatamente que tipo de filme quer ser. Quando o Brixton de Elba aparece e é perguntado sobre sua identidade, ele responde simplesmente que é “o vilão” (e em outra cena ele grita que é o "Superman negro"), e já entendemos que o roteiro de Chris Morgan e Drew Pearce não irá ser dos mais complexos. E nem precisa, já que pretensão dramática nunca foi a intenção dessa franquia, que aqui abraça completamente a atmosfera e proposta de um desenho animado da década 90, bem representado quando Hobbs devora uma torre de panquecas em seu café da manhã.
Tentar discutir qualquer tipo de arco dramático ou até mesmo trama seria futilidade, já que o filme não está interessado nisso. Qualquer reviravolta ou acontecimento é uma mera desculpa para chegar à próxima cena de ação, e eu pessoalmente até não ligaria tanto para isso, se o trabalho de Morgan e Pearce para compor os diálogos carregados de humor fossem mais rebuscados. Não há nenhuma troca de insulto, discussão ou xingamento aqui que supere aqueles protagonizados pela dupla em Velozes e Furiosos 8. E fica ainda pior quando o longa enfia participações especiais de Ryan Reynolds e Kevin Hart por goela abaixo, e os dois simplesmente sequestram o filme para protagonizar suas próprias piadas aleatórias - nunca pensei que referências a Game of Thrones já pudessem ser tão datadas.
Ao menos o elenco parece estar se divertindo bastante. Mesmo que não seja explosivo quanto no filme anterior, Johnson e Statham garantem uma relação interessante e que entretém para seus protagonistas, com raros momentos de amizade sendo recompensas legítimas após as ofensas que literalmente competem para serem as mais elaboradas. Idris Elba assume uma nível de canastrice extremo, e sai bem nas cenas de ação, mas é mesmo Vanessa Kirby quem rouba a cena no papel da irmã de Shaw - sendo uma excelente atriz de ação, e também timing cômico. E, claro, na única cena presente no filme, Helen Mirren novamente nos faz desejar que tivéssemos um filme inteiramente sobre sua personagem; a mãe dos Shaw.
Quando chegamos à ação, o resultado não é tão inspirado quanto poderíamos esperar. Em mais um esforço notável, David Leitch (a cara metade inferior de John Wick e dos competentes Atômica e Deadpool 2) tenta bolar uma set piece mais explosiva do que a próxima ao longo de Hobbs & Shaw. Infelizmente, as coreografias de luta parecem cansadas e genéricas, e sem o timing cômico que os dois astros tentam conferir a diferentes golpes e socos - com o maior humor vindo de forma inadvertida, no clímax que envolve uma luta em slow motion. O excesso de CGI também tira o ar das perseguições de carro, motos e veículos militares que passam por cidades como Londres e até Chernobyl.
A exceção fica apenas para o final, quando temos uma sequência de ação que parece realmente prática e chama a atenção. A cena em questão envolve um confronto entre um helicóptero e diversos carros no chão, e foi o único momento capaz de provocar algum deslumbramento com o espetáculo, que ainda é capaz de homenagear as raízes da franquia Velozes e Furiosos ao trazer a famosa tomada digital do "turbo" de NOS sendo injetado no motor dos veículos.
Hobbs & Shaw não tem todo o charme de sua franquia original, mas deve garantir diversão o bastante para quem procura apenas por porrada desenfreada. Johnson e Statham garantem uma boa dinâmica, ainda que a ação fique apenas no nível de competente, mas serve para mostrar que o maluco universo de Velozes & Furiosos pode ganhar histórias derivadas.
Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw (Fast & Furious Presents: Hobbs & Shaw, EUA - 2019)
Direção: David Leitch
Roteiro: Chris Morgan e Drew Pearce
Elenco: Dwayne Johnson, Jason Statham, Idris Elba, Vanessa Kirby, Eiza González, Rob Delaney, Ryan Reynolds, Helen Mirren, Eddie Marsan, Eliana Sua, Cliff Curtis
Gênero: Ação
Duração: 135 min
https://www.youtube.com/watch?v=V4nxGVgDPEw
Crítica | Era Uma Vez em... Hollywood - Uma carta de amor
De certa forma, todos os filmes de Quentin Tarantino têm como temática o cinema. É uma observação curiosa, já que nenhuma das 8 obras que dirigiu até então literalmente trata da arte de se fazer cinema, mas sim de tramas criminosas, vinganças elaboradas com espadas samurais, dublês assassinos, a Segunda Guerra Mundial e duas investidas no gênero do faroeste. Quando chegamos a Era Uma Vez em... Hollywood, Tarantino finalmente colocou o mundo do cinema nos holofotes, e o resultado é bem curioso, ainda que não surpreendente: é sem dúvidas o filme mais pessoal e intimista do diretor.
A trama é ambientada na Los Angeles de 1969, e acompanha os eventos diversos de 3 dias específicos. Vemos a luta do ator Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) para fugir do esquecimento e reacender sua carreira na televisão, enquanto seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt) o acompanha fielmente em qualquer tarefa, fornecendo também apoio moral. Eis que a dupla acaba cruzando caminho com o sinistro culto da "Família" de Charles Manson (Damon Herriman), que nessa época colocava um alvo na ascendente atriz Sharon Tate (Margot Robbie).
Falar além disso seria desnecessário por dois motivos: por conta de spoilers que sempre deverão ser esperados de um longa de Tarantino, mas pelo próprio fato de Era Uma Vez em... Hollywood não ser um filme movido à história. Quem espera uma narrativa cheia de reviravoltas e acontecimentos, provavelmente sairá decepcionado. É um filme bem menos agitado e alucinante do que seus filmes anteriores, e isso definitivamente não é um demérito. Era Uma Vez em... Hollywood traz um Tarantino mais maduro e interessado em analisar temas introspectivos, sendo um filme que surpreende justamente com seus momentos de ternura e até catarses profundamente emocionais.
Ao invés de uma linha narrativa complexa e cheia de eventos, somos levados a acompanhar a vida desses três personagens. Em tarefas rotineiras, longas passagens de carros e diversos momentos em que o silêncio ou a música pop tomam conta da paisagem. É literalmente como se estivéssemos vivenciando o cotidiano de Rick, Cliff e Sharon Tate ao longo desses 160 minutos, que mesmo não sendo tão explosivos, jamais deixam de entreter ou de nos deixar interessados. Afinal, Tarantino é sempre eficiente em escrever personagens carismáticos e fascinantes, cada um com frustrações e drama bem identificados, mas sempre com o típico humor sarcástico e até escatológico que virou marca de seu trabalho - além dos longos e verborrágicos diálogos que marcam esses diferentes "episódios".
Fica também mais interessante por vermos o olhar de Tarantino para uma Hollywood do passado, que lhe permite trazer personalidades reais. Não só pela presença de Sharon Tate e Roman Polanski, mas por aparições pontuais de Damon Lewis como Steve McQueen e de um inspirado Mike Moh como o icônico artista marcial Bruce Lee, que garante uma das melhores cenas do filme. Através de pequenos momentos, como Rick conversando com uma atriz mirim durante o intervalo de gravações ou a cena quase silenciosa em que Tate anda pelas ruas de Los Angeles e acaba entrando em um cinema para assistir um de seus filmes - um raro momento de pura felicidade sem qualquer malícia nos filmes do cineasta.
Em termos de direção, é também uma nova faceta de Tarantino. Temos planos fixos mais longos do que o habitual, mas que não visam obter tensão como na abertura de Bastardos Inglórios, mas sim inserir o espectador nesse universo. Graças ao design de produção excepcional de Barbara Ling, vemos as ruas de Los Angeles sendo perfeitamente transformadas em 1969, algo que fica particularmente especial com a fotografia em película de Robert Richardson - que garante belas imagens no glorioso formato 2:35.1. Há um nítido carinho nostálgico pela forma como Tarantino destaca painéis de neon sendo acesos, cartazes de cinema sendo espalhados pelas ruas e até a forte presença de programas de rádio durante toda a projeção. Confesso que em um ano dominado por filmes visualmente artificiais e tela verde, foi um refresco para os olhos ver algo que seja real.
Não que Tarantino não seja capaz de criar tensão, claro. Como temos a presença de Charles Manson e seu culto sinistro, o diretor é eficiente em criar uma atmosfera de perigo crescente, principalmente na cena curta, mas inquieta, em que Damon Herriman aparece como Manson pela primeira vez. Mas o grande exemplo fica com a visita de Booth ao Rancho Spahn, onde a "família" se hospedou, e Tarantino é inteligente ao valorizar planos bem abertos que revelam a superioridade em número das garotas que seguem o assassino. E temos o terceiro ato, que vai diretamente para a noite de 8 de agosto de 1969, mas vamos evitar spoilers.
Se há um problema aqui, é o mesmo que vem assolando as últimas produções do cineasta, e que infelizmente não deve ser resolvido. A montadora habitual de Tarantino, Sally Menke, tragicamente morreu em um acidente em 2010, passando o bastão para Fred Raskin, que assumiu a função em Django Livre, Os Oito Odiados e agora com Era Uma Vez em... Hollywood. Menke faz muita falta para Tarantino, já que seus cortes rápidos não têm o mesmo efeito e algumas transições perdem o timing. É um problema bem mais presente nos dois faroestes, mas que traz algumas manifestações aqui, já que alguns planos realmente se estendem um pouco além da proposta; e o uso de jump cuts no meio de diálogos surge bem artificial.
Um dos aspectos mais fortes do filme desde seu anúncio, claro, é o elenco estelar da produção - um dos melhores que a Hollywood recente já teve. Só a dupla protagonista de Leonardo DiCaprio e Brad Pitt já é o suficiente para garantir grandes momentos (e é incrível que dois atores tão talentosos nunca tenham dividido a tela antes), e a química entre os dois é palpável. Sentimos a lealdade mútua dos dois, de Booth por ser o "escudeiro" de Rick, e a do ator em sempre tentar inserir seu amigo em seus próximos trabalhos. A interação funciona tanto que até mesmo quando a câmera foca em uma televisão e apenas ouvimos a reação e comentário dos dois, sentimos que estamos diante de fogos de artifício.
Cada um dos dois têm seus momentos individuais para brilhar, com DiCaprio adotando uma persona dramática mais intensa e melancólica, garantindo algumas cenas brilhantes com a pequena Julie Butters. Já Pitt adota uma personalidade mais calma e relaxada, e tem mais espaço para um humor muito eficiente. E o fato de Dalton ser mais intenso e Booth o mais calmo é curioso já pela natureza dos dois, já que é Booth quem está constantemente colocando a vida em perigo para realizar cenas de ação, enquanto o astro da TV tem uma vida mais confortável com sua casa majestosa em Hollywood.
Outro dos pontos que causou mais curiosidade e até preocupação é Sharon Tate. Na vida real, a atriz foi brutalmente assassinada juntamente com seus amigos pelos membros do culto de Manson, mas o que vemos de Margot Robbie é uma valorização da leveza e bondade de Tate. Ela mal tem diálogos, mas garante uma presença marcante e altamente expressiva - com a cena do cinema descrita acima sendo o grande exemplo - e fica a impressão de que Tarantino e Robbie tentavam simplesmente recapturar seu espírito e lhe dar vida novamente; mesmo que sem uma grande função narrativa literal, mas sim no subtexto do que significa a evolução da Velha Hollywood para a Nova.
Entre um elenco coadjuvante estelar, temos grandes participações de um Al Pacino um pouco mais dinâmico, um hilário Bruce Dern e a explosiva Margaret Qualley, que rouba a cena como uma das seguidoras de Manson.
Depois de tanta carnificina e humor negro em sua filmografia, foi surpreendente ver um lado mais intimista e até melancólico de Quentin Tarantino com Era Uma Vez em... Hollywood. É seu filme mais profundo, e ao mesmo tempo disperso, mas que justamente por isso nos permite mergulhar nas vidas de seus personagens. Se Tarantino realmente for se aposentar aqui, ele o fez com chave de ouro.
Era Uma Vez em...Hollywood (Once Upon a Time... In Hollywood, EUA - 2019)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Leonardo DiCaprio, Brad Pitt, Margot Robbie, Al Pacino, Dakota Fanning, Margaret Qualley, Kurt Russell, Timothy Olyphant, Luke Perry, Emile Hirsch, Lena Dunham, Michael Madsen, Bruce Dern, Damon Herriman, Maya Hawke, Austin Butler
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 162 min
https://www.youtube.com/watch?v=ELeMaP8EPAA
Crítica | O Rei Leão - Como tirar a alma de uma grande história
A nova mina de ouro da Disney parece a estratégia comercial mais brilhante do ponto de vista mercadológico. Escolher clássicos da animação adorados pelo público e refazê-los em uma embalagem live-action brilhante e com elencos caprichados. Isso às vezes gera bons resultados, como Cinderela e o recente e subestimado Aladdin, mas também nos rende abominações como A Bela e a Fera e Alice no País das Maravilhas. Depois do sucesso de Mogli: O Menino Lobo, a Disney encarregou Jon Favreau de trazer uma versão digital e deslumbrante de um de seus maiores - se não o maior - clássico: O Rei Leão.
Infelizmente, é um daqueles casos onde o abuso de tecnologia acaba apagando completamente o que torna essa história tão especial.
A trama, bem, é exatamente igual à do filme de 1994. Acompanhamos o filhote Simba (JD McCrary), que cresce sonhando em herdar o trono de seu pai, Mufasa (James Earl Jones), e se tornar o protetor da Pedra do Reino; mantendo o ciclo da vida em movimento. Quando seu pai é assassinado pelo invejoso Scar (Chiwetel Ejiofor), Simba se exila. Ao passar por um redescobrimento espiritual e já adulto (agora com a voz de Donald Glover), ele precisa lutar para reclamar seu lugar como rei legítimo.
Pixel sem coração
Que algo fique bem claro de antemão: seria impossível que O Rei Leão fosse ruim. Com uma história tão perfeita e complexa quanto aquela criada por Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton, e que aqui é adaptada quase que milimetricamente por Jeff Nathanson. É uma história atemporal que tem todas as batidas clássicas, oferece um drama digno das melhores tramas de William Shakespeare e ainda tem o potencial de divertir e fazer chorar na mesma medida. É, por falta de palavra menos banalizada, uma história perfeita. Mas nesta nova versão, é completamente sem vida e estéril.
Os impressionantes efeitos visuais que a Industrial Light & Magic e os milhares de artistas de CGI que trabalharam no filme servem como uma faca de dois gumes. É um realismo quase palpável, tanto de ambientes quanto de personagens, e que diversas vezes nos levam ao famoso “uncanny valley”, e dependendo de como a Disney resolver bancar sua campanha do Oscar, definitivamente vai abocanhar o de Efeitos Visuais. Mas é também essa mesma busca pelo fotorrealismo que destrói qualquer investimento emocional com os personagens, que abandonam a estilização que os tornaram tão únicos na animação original para dar espaço a criaturas mais realistas, e que não tem expressão ou carisma quando falam, gritam e - principalmente - cantam.
A ausência do tradicional processo de captura de performance, popularizado por Andy Serkis na trilogia O Senhor dos Anéis e O Planeta dos Macacos, é certamente um dos motivos que tornam Simba, Mufasa, Scar, Nala, Pumba e todos os personagens tão vazios. Quando precisam estar alegres, seguem com uma expressão comum. Quando vemos Simba e Nala tendo uma discussão acalorada sobre identidade, podemos apenas ouvir Donald Glover e Beyoncé Knowles-Carter falando em uma cabine de dublagem, já que a limitação nas feições animalescas provoca um efeito onde as vozes parece estar fora de sincronia. É algo realmente incômodo, e que tira o peso de diversos momentos importantes - se a morte daquele personagem te afetava e provocava rios de lágrimas no original, prepare-se para vê-la completamente estéril e sem alma, e podemos sentir que o elenco está se esforçando; especialmente Seth Rogen e Bill Eichner como Timão e Pumba, mas nada visualmente nos convence disso.
Ambiguidade musical
Por mais que a tecnologia seja superior e mais sofisticada do que um desenho de 1994, é assustadoramente mais limitada em termos de cinematografia. É como quando Gus Van Sant refez Psicose com cores. Os números musicais se tornaram o aspecto mais sem graça e genérico possível, onde agora os personagens simplesmente andam de um ponto a outro ou escalam pedras enquanto cantam. Acabou-se a energia de um número inventivo quanto “I Just Can’t Wait to be King”, a viagem de “Hakuna Matata” ou o brilhantismo de “Be Prepared”, completamente reduzida aqui para uma versão esquecível. Se o objetivo era realismo, nem precisava tentar colocar as canções, já que o resultado beira o embaraçoso em alguns momentos.
Claro, musicalmente a experiência ainda é perfeita, afinal temos o retorno do grande Hans Zimmer para tocar algumas das melhores produções de sua carreira, e não machuca que cantores do calibre de Childish Gambino e Beyoncé estejam por trás das canções. É impossível não de contaminar pela trilha sonora, mas ela já havia sido testada e funcionava em uma versão muito superior dessa história.
A nova versão de O Rei Leão é um grande tiro no pé. Por mais que traga efeitos visuais impressionantes e um elenco de talentos variados, é incapaz de reproduzir a magia e as emoções da animação original de 1994, simplesmente por se ater a um realismo sem sentido para uma história sobre leões falantes. Nesse caso, definitivamente fique com a animação.
O Rei Leão (The Lion King, EUA - 2019)
Direção: Jon Favreau
Roteiro: Jeff Nathanson, baseado no filme de 1994
Elenco: Donald Glover, Beyoncé Knowles-Carter, Chiwetel Ejiofor, James Earl Jones, Seth Rogen, Billy Eichner, Keegan Michael Key, Alfred Woodard, John Kani, JD McCrary, Shahadi Wright Joseph, John Oliver, Florence Kasumba
Gênero: Aventura, Drama
Duração: 116 min
https://www.youtube.com/watch?v=cQ7LgxMCzCg
Crítica | Homem-Aranha: Longe de Casa - Um filme imaturo demais
Poucos heróis foram tão reinventados no cinema como o Homem-Aranha, que gerou três versões cinematográficas desde 2002, além de uma ótima animação no ano passado. Atualmente, o herói encontra-se em sua fase mais segura e confortável com improvável acordo entre a Marvel Studios e a Sony Pictures, que permitem que Peter Parker possa habitar o mesmo universo de Homem de Ferro, Capitão América e os demais Vingadores. É algo que possibilita histórias mais diversificadas e grandiosas, afinal, Parker não é o único herói desse mundo.
Isso trouxe implicações mistas para Homem-Aranha: De Volta ao Lar, primeiro filme solo de Tom Holland que fazia bem em explorar o lado mais adolescente e “pé no chão” do herói da vizinhança, mas também o tornava apenas parte de um jogo muito maior com os outros membros dos Vingadores. Sem falar que todo o seu arco no filme é basicamente um jogo de aprovação para o mentor Tony Stark. Infelizmente, essa mesma limitação se repete em Homem-Aranha: Longe de Casa, que volta a reciclar alguns dos mesmos temas do anterior, e revela-se uma obra irritantemente direcionada a um público muito mais jovem.
A trama começa após os eventos de Vingadores: Ultimato, mostrando um pouco das consequências do retorno à existência dos dizimados pelo vilão Thanos. Isso é logo abandonado quando Peter e seus amigos saem uma excursão escolar pela Europa, onde o jovem pretende relaxar um pouco e esquecer a responsabilidade do Homem-Aranha. Eis que Nick Fury (Samuel L. Jackson) o recruta para uma missão, que envolve combater criaturas chamadas de Elementais, presentes justamente no solo europeu. Para ajudá-lo, entra em cena o enigmático e poderoso Mysterio (Jake Gyllenhaal).
Férias Frustradas na Europa
Em muitos níveis, Longe de Casa traz elementos inéditos para o herói no cinema. É a primeira vez que vemos o Homem-Aranha passeando pelas paisagens europeias (sem contar o aeroporto alemão em Guerra Civil), e segue aproveitando a proposta adolescente estabelecida no anterior. Porém, sai o John Hughes e entra mais para uma versão sem graça de National Lampoon, com Longe de Casa sendo uma versão mais morna e menos arriscada de Férias Frustradas 2 (ou até mesmo o divertido Eurotrip). O problema fica mesmo com o excesso de humor nessa decisão, já que o texto de Chris McKenna e Erik Sommers é incapaz de ficar 2 minutos sem soltar alguma piada, que variam entre algumas observações engraçadinhas e outras abominações como “você pode desviar de balas, mas não de uma banana?”. É s
Foi particularmente chocante quando o filme tem início e, logo nos minutos iniciais, já temos uma sequência para ironizar e fazer piada com as mortes de Vingadores: Ultimato. Isso porque lettering de Comic Sans e o uso irônico de “I’ll Always Love You” (tema de O Guarda-Costas) já deixaram de ser engraçados na década passada, mas também revela como Longe de Casa não tem o menor compromisso em abordar a tragédia de forma séria. E não tem problema nisso, afinal essa franquia sempre se levou menos a sério, mas é triste que sejam com piadas tão pouco inspiradas, apostando em um humor adolescente que só deve funcionar para uma geração mais contemporânea.
Isso também tira a seriedade de momentos que necessitam de uma reflexão. Por exemplo, nada do romance entre Peter e MJ (Zendaya) funciona, principalmente por ser tão apressado e inconsequente. Como vamos torcer pelo romance do casal se nunca vimos os dois conversar por mais de duas cenas em De Volta ao Lar? Todas as cenas em que os dois interagem aqui carecem da química palpável entre Tobey Maguire e Kirsten Dunst ou Andrew Garfield e Emma Stone, e sinceramente me peguei tendo flashbacks de Crepúsculo - pelas reações forçadas de embaraço e timidez entre os dois atores.
Mas é mesmo culpa do roteiro e da direção, já que tanto Holland quanto Zendaya estão ótimos no filme. O jovem continua se mostrando um excelente Homem-Aranha/Peter Parker, e quando o texto lhe permite algo mais complexo, ele é capaz de transparecer a pressão que sente em ser taxado como o próximo Homem de Ferro, assim como a tristeza que sente ao se lembrar do mentor - rendendo uma ótima cena com Jon Favreau, em bela participação como Happy Hogan.
Mas é mesmo Jake Gyllenhaal quem rouba a cena com seu misterioso Quentin Beck, trazendo uma excelente variação entre o lado mais suave e charmoso do ator com sua persona mais insana - vista em obras como Okja e Velvet Buzzsaw. Sem spoilers, mas quem sabe a real natureza de Mysterio nos quadrinhos certamente não se surpreenderá nem um pouco com o rumo da história aqui, mas basta dizer que é digno do melhor que o personagem já trouxe, ainda que seu passado tenha algumas explicações bem macarrônicas, e dignas de uma cena que traz o pior tipo de exposição possível. Porém, que tenhamos mais Gyllenhaal no futuro da Marvel Studios.
Mais potência
Mostrando-se um poço de obviedade e falta de entusiasmo no primeiro filme, ao menos Jon Watts se mostra mais inspirado aqui. A escolha do diretor de fotografia Matthew J. Lloyd. aproveita bem as cores vibrantes de cidades como Veneza e Praga, garantindo um filme visualmente mais interessante. O comando de Watts na ação também se torna mais engenhoso, com planos abertos e que exploram a lógica do Homem-Aranha para usar suas teias e habilidades contra os inimigos poderosos - com a sequência de Praga sendo o grande ápice desse fator, além de uma outra cena envolvendo o personagem Mysterio que, por trazer poderes que brincam com o ilusionismo, oferecem um resultado espetacular - e que deve deixar os fãs mais saudosos dos quadrinhos bem satisfeitos.
Ainda assim, Watts demonstra deficiência nos efeitos visuais, algo sistêmico para a maioria das produções da Marvel. Pessoalmente não consigo engolir as armaduras digitais e suas máscaras holográficas, soando terrivelmente artificial quando o herói usa sua Aranha de Ferro no primeiro ato - e agradeço por Peter usar trajes mais práticos no decorrer do longa. E por mais que a sequência mais surreal com Mysterio seja excelente, o filme nem esconde que se transformou em um videogame descarado, com o CGI bem mais evidente e borrachudo. Até perdoamos pela cena ser boa, mas esse efeito realmente prejudica a tediosa batalha do terceiro ato, bem mais genérica e desinteressante do que as demais sequências de ação do filme. Ao menos, dessa vez o compositor Michael Giacchino apareceu, rendendo um bom novo tema para Mysterio.
Longe de Casa, mesmos problemas
Homem-Aranha: Longe de Casa é inferior ao primeiro filme solo de Tom Holland, justamente por tratar-se de um roteiro muito mais interessado em humor pastelão do que uma história forte. Flerta com temas interessantes e traz uma adição de peso com o Mysterio de Jake Gyllenhaal, mas quem espera mais além de um entretenimento descartável, vai sair decepcionado.
Homem-Aranha: Longe de Casa (Spider-Man: Far From Home, EUA - 2019)
Direção: Jon Watts
Roteiro: Chris McKenna e Erik Sommers, baseado nos personagens da Marvel
Elenco: Tom Holland, Jake Gyllenhaal, Zendaya, Marisa Tomei, Samuel L. Jackson, Cobie Smulders, Jon Favreau, Jacob Batalon, Tony Revolori, Martin Starr, Angourie Rice
Gênero: Aventura
Duração: 129 min
https://www.youtube.com/watch?v=MqQdHaBtvGs
Crítica | Annabelle 3: De Volta para Casa - Scooby Doo sinistro
Foi impressionante como Invocação do Mal rapidamente se transformou em uma franquia de terror de sucesso. Do excelente e sinistro primeiro filme de James Wan, a Warner Bros derivou um universo de possibilidades e criaturas para explorar nas telas, sendo uma investida lucrativa e que rende - na maioria dos casos - bons resultados.
Tamanho o sucesso dos derivados, a boneca Annabelle ganha aqui seu terceiro filme antes mesmo do já anunciado Invocação do Mal 3, que chega no ano que vem. Com James Wan novamente na função de produtor, Annabelle 3: De Volta para Casa parece um retorno às raízes após os fracos A Freira e A Maldição da Chorona, e o resultado o coloca como uma das experiências mais aproveitáveis da franquia.
A trama do novo filme tem uma posição bem específica na linha do tempo. Ela se passa pouco tempo depois do prólogo do primeiro Invocação do Mal, com o casal Ed e Lorraine Warren (Patrick Wilson e Vera Farmiga) tendo o primeiro contato com a boneca Annabelle, enfim levando-a para sua sala de artefatos em Connecticut. Um ano depois, Judy (Mckenna Grace), filha do casal, enfrenta um pesadelo com sua babá Mary Ellen (Madison Iseman) quando sua amiga Daniela (Katie Sarife) acidentalmente liberta a boneca demoníaca, fazendo com que todos os espíritos na sala dos Warren saiam em liberdade.
O novo derivado/prólogo parte de uma premissa saborosa. O próprio James Wan vendeu De Volta para Casa como "Uma Noite no Museu com Annabelle", e é exatamente isso o que Gary Dauberman entrega aqui. É um filme que, mais do que qualquer um dos anteriores, abandona as pretensões de ser um terror "verídico" e sério, abraçando o espírito de um bom filme de Halloween dos anos 80 - com um forte espírito da produtora Amblin presente, principalmente no fato dos protagonistas serem mais jovens do que em outros longas da franquia. Todos os mini-arcos e dilemas de seus personagens são pretextos para que Dauberman explore essa ideia de casa mal-assombrada, onde o grande atrativo está em suas criaturas.
Mas mesmo com fiapos de história, temos um bom envolvimento graças às performances acertadas. A começar pela jovem Mckenna Grace, que se mostra uma grande atriz e com capacidade de levar toda a franquia nas costas, justamente por ser uma figura pouco habitual nesse gênero: uma criança que compreende e pode repelir demônios, algo que a atriz transmite de forma eficiente como uma maldição - e algo que sempre a afastou socialmente de amigos, por exemplo. Grace se sai bem ao lado das igualmente carismáticas Madison Iseman e Katie Sarife (esta última com uma surpreendente carga dramática), ao passo em que ver Patrick Wilson e Vera Farmiga como o Casal Warren é sempre maravilhoso.
Estreando na direção após anos trabalhando em roteiros da franquia e outras produções do gênero (como a adaptação dupla de It: A Coisa), Dauberman se mostra um nome talentoso. Não só ele compreende a linguagem e. estética que Wan estabeleceu desde o primeiro filme, mas também mostra-se uma voz interessante e original. Ao contrário de diretores como Corin Hardy e Michael Chaves, Dauberman é um cineasta cuja atmosfera traz um grande mérito: a paciência. Não temos jump scares aleatórios ou sustos baratos, mas sim longas sequências onde os personagens exploram o ambiente e encontram pequenas pistas que culminam em algum tipo de revelação. É um processo que leva tempo, e Dauberman o domina com impressionante habilidade.
Quando a história demanda sequências mais elaboradas, Dauberman se mostra muito criativo. A cena em que a pequena Judy tem um encontro com o espírito conhecido como a Noiva é engenhosa pela forma como a câmera gira em 360 graus para ilustrar como a presença da entidade atravessa diferentes planos físicos - desde o exterior de uma janela até o interior de um espelho, com o detalhe dos objetos caindo à medida de sua passagem sendo um ótimo toque. Cenas como o encontro sombrio com o Barqueiro e a sinistra televisão em loop também se destacam, mas o grande charme fica no momento em que vemos a real forma de Annabelle através de um elaborado jogo de sombras coloridos. Para um primeiro trabalho, é um belo cartão de visitas.
Annabelle 3 só peca quando acaba indo longe demais na fantasia. Por mais que a ideia de um espírito de lobisomem ser fascinante, sua execução é embaraçadora graças a um péssimo CGI que destoa completamente da estética deste filme e da franquia, e parece mais próxima de um desenho animado. Isso também acontece no clímax, que encontra soluções extremamente convenientes para um exorcismo, assim como a representação visual de uma alma que imediatamente remete aos Dementadores da saga Harry Potter.
Em um resultado surpreendente, Annabelle 3: De Volta para Casa é quase como um Scooby Doo mais sinistro. Se diverte com sua premissa, apresenta potenciais novos monstros fascinantes e traz um fantástico elenco e a promessa de um novo grande diretor de terror para a franquia. Após duas bolas foras, Invocação do Mal definitivamente mostra que ainda tem fôlego para mais.
Annabelle 3: De Volta para Casa (Annabelle Comes Home, EUA - 2019)
Direção: Gary Dauberman
Roteiro: Gary Dauberman
Elenco: Mckenna Grace, Vera Farmiga, Patrick Wilson, Madison Iseman, Katie Sarife, Michael Cimino, Samara Lee
Gênero: Terror
Duração: 106 min
https://www.youtube.com/watch?v=BlAsN0G8_7o
Crítica | Turma da Mônica: Laços - Um universo ganha vida
Acho que é seguro dizer que a Turma da Mônica é a maior peça de cultura pop infantil do Brasil. Todos em algum ponto já seguraram ou folhearam um gibi da criação de Mauricio de Sousa em algum momento da vida, e é especialmente empolgante para alguém que cresceu lendo e até desenhando esses personagens, quando finalmente temos uma adaptação em live-action para os cinemas. Por mais que não seja um filme perfeito, Turma da Mônica: Laços.
A trama é baseada na HQ de mesmo nome de Lu e Vitor Cafaggi, contando uma história isolada e mais extensa. Nela, Floquinho, o cachorro de Cebolinha (Kevin Vechiatto) é subitamente levado por um misterioso raptor. Armando um plano para encontrá-lo, ele reúne seus amigos Mônica (Giulia Benitte), Cascão (Gabriel Moreira) e Magali (Laura Rauseo) em uma expedição pela floresta, onde suas principais habilidades serão testadas.
O maior perigo que um filme live-action da Turma da Mônica enfrentava era o que muitos cineastas brasileiros encontram ao tentar fazer cinemas de gênero: ficar artificial. Felizmente, o talentoso Daniel Rezende faz um ótimo trabalho ao encontrar o tom correto para a adaptação de um material cartunesco. O filme habita um universo atemporal e que abraça os elementos fantasiosos, refletindo em uma direção de arte que mantém a mesma paleta colorida e vibrante dos quadrinhos, principalmente no figurino dos protagonistas e na bela fotografia de Azul Serra - a grande comparação que faço nesse quesito é com a ótima franquia As Aventuras de Paddington, que também acerta na estética caprichada para uma obra infantil.
O roteiro de Thiago Dottori faz um ótimo trabalho ao estabelecer o universo do Bairro do Limoeiro e seus personagens. Tudo bem que, para um aficcionado, todas essas informações estão na ponta da língua, mas até mesmo um não-iniciado seria capaz de assistir a Laços e entender todos os traços de personalidade e motivações dos personagens. A trama é simples e acerta em trazer um conflito diferente para cada um dos protagonistas, que são testados em momentos decisivos para a resolução da trama. É simplíssimo, mas funciona, especialmente para o público infantil.
A visão de Rezende
Tendo na estreado na direção com o eficiente Bingo: O Rei das Manhãs, o ex-montador Daniel Rezende mantém sua ótima estética e condução. As cenas de ação, em especial, impressionam pelos planos engenhosos e de longa duração, principalmente aquele que mostra uma perseguição de bicicletas ao redor de uma praça - com uma maestria digna dos planos longos de Steven Spielberg na década de 80 - e o clímax inspirado no covil do vilão. Mas talvez o grande destaque fique com a cena do Louco, não só por trazer um Rodrigo Santoro perfeitamente caracterizado, mas por ser aquele tipo de cena que quebra o padrão do convencional e introduz elementos sobrenaturais que só funcionam naquele contexto; vide a habilidade de "teleporte" do Louco ou os confeites coloridos que dispara de suas mãos.
Rezende só perde a mão em alguns momentos alongados. Há uma cena mais dramática na metade do filme onde o ritmo acaba se perdendo ao manter a câmera por muito tempo no rosto de um dos personagens, e o mesmo acontece quando, por exemplo, Cebolinha segura um objeto e o diretor enfatiza-o por demasiado tempo - algo curioso considerando seu histórico como montador. Mas nada que realmente comprometa seu trabalho muito eficiente, que continua colocando Rezende como uma das vozes mais interessantes no cinema nacional nos últimos anos.
Só não há muito o que defender naquela sequência musical brega com uma música de Thiago Iorc, mas aí é uma opinião completamente pessoal...
Mas nada realmente funcionaria caso o elenco não fosse perfeitamente equilibrado. Formado por crianças desconhecidas em sua maior parte, é um alívio perceber que o trabalho foi bem feito. Não só na perfeita caracterização de cada um deles, mas sim pelas performances individuais. Giulia Benitte traz toda a simpatia e fúria de Mônica, além de se revelar uma eficiente atriz dramática em um momento mais intenso. Gabriel Moreira é o mais divertido com um Cascão mais cínico e sarcástico, enquanto Laura Rauseo acerta pelo timing cômico mais contido. Kevin Vechiatto tem um pouco mais de dificuldade com Cebolinha, mas é um papel mais exigente pela fala que troca o R pelo L.
Um novo universo nas telas
Turma da Mônica: Laços é uma obra de potencial empolgante. Traz um bom elenco e uma brilhante transposição de quadrinhos para as telas, oferecendo a possibilidade de uma grande franquia para o cinema brasileiro, e com um dos universos mais ricos da cultura nacional. Que seja apenas o começo, pois eu quero meu filme do Penadinho.
Turma da Mônica: Laços (Brasil, 2019)
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Thiago Dottori, baseado nos personagens de Mauricio de Sousa e na obra de Lu & Vitor Cafaggi
Elenco: Giulia Benitte, Kevin Vechiatto, Gabriel Moreira, Laura Rauseo, Rodrigo Santoro, Monica Iozzi, Paulo Vilhena, Ravel Cabral
Gênero: Aventura
Duração: 97 min
https://www.youtube.com/watch?v=hE37SWjQ4gA
Crítica | Toy Story 4 - O epílogo da perfeição
Não precisávamos de um quarto Toy Story. A Pixar havia executado uma tarefa quase impossível em 2010, quando o terceiro filme da mais celebrada franquia de animação concluiu uma trilogia praticamente perfeita, trazendo a mensagem ideal para um grupo de filmes e realizadores que enxergou as emoções e o coração de brinquedos de maneiras que nem imaginaríamos que seria possível. A ideia de Toy Story 4 parecia desnecessária, e pior do que isso, perigosa.
Isso se tornou ainda mais problemático quando a Pixar passou por sua fase mais controversa ao ter o afastamento de um dos fundadores, John Lasseter. Acusado de assédio sexual, o envolvimento de Lasseter no quarto filme foi diminuído, assim como o da roteirista original da produção, Rashida Jones, e o texto acabou passando por inúmeras mãos na fase de concepção. Diante de todos esses fatores, é surpreendente que Toy Story 4 seja não apenas eficiente, mas um belo filme que justifica sua existência, ainda que como o capítulo mais fraco.
Passando-se alguns anos após o terceiro filme, a trama começa com a pequena Bonnie (Madeleine McGraw) tendo seu primeiro dia de aula. Na escola, ela constrói um brinquedo com um talher de plástico e outros objetos, dando origem ao neurótico Garfinho (Tony Hale), que logo se junta ao grupo de Woody (Tom Hanks), Buzz Lightyear (Tim Allen), Jessie (Joan Cusack) e os demais brinquedos de Bonnie. Quando Garfinho tenta fugir por não se considerar um brinquedo, Woody inicia uma busca para recuperá-lo, e seu caminho novamente se cruza com o da amada Betty (Annie Potts).
Ser ou não ser
Por muitos anos, o padrão de qualidade da Pixar foi insuperável. É um fato que o premiado estúdio tem encontrado certa dificuldade em suas mais recentes continuações e prelúdios, com obras como Carros 2, Universidade Monstros, Procurando Dory e o remake de Os Incríveis sendo bem inferiores aos longas originais. Felizmente, Toy Story 4 parece ser a última continuação do estúdio por um tempo, já tendo anunciado os novos Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica e Soul para 2020 - duas produções originais, sem serem derivativas ou continuações. Se for de fato o caso, Toy Story 4 encerra essa fase de sequências com muito louvor, e novamente a valorizo por conseguir se provar como relevante.
A introdução de Garfinho permite que a franquia volte a explorar a questão do existencialismo, que foi forte no desenvolvimento de Buzz no primeiro filme. O pequeno talher de plástico não foi fabricado para ser um brinquedo, e seu desejo de voltar a ser lixo no primeiro ato é algo fascinante e até meio sombrio, por termos um ser vivo rejeitando a existência - mas que, claro, é usado pelo roteiro de Andrew Stanton e Stephany Folsom para garantir risadas proveitosas. Mas a temática do "quem sou" ou, no caso de Garfinho, "sou lixo" também é muito bem aproveitada pela maioria dos personagens: Buzz, a antagonista Gabby Gabby (Christina Hendricks) e principalmente Woody estão em jornadas de reinvenção e redescoberta espiritual, e aí não entraremos em spoilers, mas Toy Story 4 sabe muito bem o que está fazendo ao levar essas linhas narrativas para desfechos merecidos - e garante nossas inevitáveis lágrimas no processo, mesmo que não seja difícil quando estamos lidando com esses personagens.
Em quesitos técnicos, os brinquedos nunca estiveram tão deslumbrantes. O diretor estreante Josh Cooley faz um trabalho impressionante ao imaginar enquadramentos marcantes e cinematográficos, além de sequências de ação que encantam pela engenhosidade. Ver como a animação se tornou mais detalhista e vívida ao longo dos anos é algo impressionante, e - principalmente no clímax - garante um poderio visual surreal, quase como se esses personagens estivessem sido fotografados de forma real, dado os níveis de detalhes na iluminação de uma roda gigante e até desfoque de lente. Tecnicamente falando, é um dos trabalhos mais impressionantes da Pixar, e Cooley não deixa a desejar perto de John Lasseter ou Lee Unkrich.
O fim da linha
O problema se encontra em algumas soluções do roteiro. Muito do que move Woody neste quarto filme envolve a personagem Betty (Annie Potts), que infelizmente nunca teve todo o desenvolvimento necessário na franquia - estando até mesmo ausente no terceiro. Betty ganha uma reinvenção badass e que praticamente a transforma na Rey de Star Wars: O Despertar da Força neste novo filme, e por mais que seja muito divertido ver Betty finalmente se tornando uma figura marcante e carismática, soa apressada e pouco para o que o longa almeja para Woody. E o roteiro acaba perdendo tempo em uma estrutura cíclica que parece não ter para onde ir, com os personagens indo e voltando de forma arbitrária para o antiquário que une todos os brinquedos no segundo ato, carecendo também de um bom antagonista - a Disney novamente aposta na tática previsível e batida de redimir os personagens que menos esperamos.
No que diz respeito a seus novos personagens secundários, há adições que definitivamente gostaríamos de ver mais no futuro. A dupla cômica de Key & Peele, Keegan Michael-Key e Jordan Peele (sim, de Corra! e Nós) diverte ao dublar Patinho e Coelhinho, trazendo muito do humor de esquete e nonsense para os bichinhos de pelúcia com planos mirabolantes. Mas o grande atrativo fica com Keanu Reeves e seu impagável Duke Caboom, dublê motociclista canadense fortemente inspirado na figura de Evel Knievel, e que permite ao ator trazer sua dicção pausada para efeitos cômicos certeiros - e também, em um ano que o trouxe repetindo uma das frases mais icônicas de Matrix em John Wick 3: Parabellum, resgatar mais um meme de sua carreira de forma marcante.
Pode ser o capítulo mais fraco da franquia, mas Toy Story 4 mantém o nível de qualidade de seus preciosos antecessores. Traz ótimos conceitos e novos personagens divertidíssimos, ao passo em que leva os brinquedos para novos caminhos, com resultados inesperados. Serve tanto como conclusão como recomeço, e qualquer uma dessas alternativas é válida para a Pixar, que parece infalível com esses brinquedos.
Toy Story 4 (EUA, 2019)
Direção: Josh Cooley
Roteiro: Andrew Stanton e Stephany Folsom
Elenco: Tom Hanks, Tim Allen, Joan Cusack, Annie Potts, Madeleine McGraw, Wallace Shawn, John Ratzenberg, Blake Clark, Tony Hale, Keegan Michael-Key, Jordan Peele, Keanu Reeves, Christina Hendricks, Carl Weathers, Patricia Arquette, Mel Brooks
Gênero: Aventura, Comédia
Duração: 143 min
https://www.youtube.com/watch?v=wmiIUN-7qhE