Crítica | Bridgerton: 1ª Temporada - Uma Dramédia de Época Deliciosa
Produções de época têm um lugar especial no coração do público – motivo pelo qual fazem tanto sucesso. Desde as clássicas adaptações de Mulherzinha, romance assinado por Louisa May Alcott, e de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, até a irreverência anacrônica da recente Dickinson, estrelada por Hailee Steinfeld, tais obras nos transportam para um mundo bastante diferente do nosso, recheado de figuras históricas importantes, intrigas amorosas e uma afeição exagerada pelo status e pelo casamento. É claro que boa parte dessas histórias não se limita apenas a caracterizações românticas – pelo contrário, aproveita o escopo para infundi-lo com críticas à sociedade da época e às disparidades de gênero e de raça -, utilizando um exuberante visual para nos envolver desde o primeiro momento.
O mesmo pode ser dito de Bridgerton. A nova série da Netflix, a primeira feita em parceria com a prolífica e aclamada realizadora Shonda Rhimes (Grey’s Anatomy, How to Get Away with Murder), é baseada nos adorados romances de Julia Quinn, uma das autoras mais consumidas da atualidade – e faz um belo trabalho em levar a história da família Bridgerton para as telinhas. Em meio a oito longos episódios, que de certa forma esbarram em alguns obstáculos e deixam as problemáticas rítmicas transparecerem mais vezes do que deveria, a narrativa introduz aos espectadores um elenco incrível, recheado de química, que une o melhor das epopeias românticas às incursões tragicômicas austenianas – fornecendo camadas e mais camadas de complexidade a personagens a princípio tão rasos quanto um prato.
A verdade é que a série não seria o que é sem a mão de Rhimes por trás de tudo isso. Através da Shondaland, a empreendedora capta com naturalidade e sutileza invejáveis os trejeitos de cada protagonista, aliando-os a coadjuvantes que não ficam ofuscados ou são apenas jogados nas múltiplas subtramas – pelo contrário, servem como estrutura para as realizações e as reviravoltas do elenco principal. A trama pode até ser centrada em um núcleo familiar específico, mas é a partir dele que todos os outros encontram terreno para exibirem suas potentes vozes e figurinos coloridos. É a partir daí que, centrada numa Londres vitoriana, a produção nos apresente a Daphne Bridgerton (Phoebe Dynevor) e a Simon Basset (Regé-Jean Page), também conhecido como o Duque de Hastings.
Daphne é a primeira filha dos Bridgertons – mas ainda assim vive na sombra dos irmãos mais velhos, que nutrem de um senso superprotetor que a impede de encontrar alguém para se casar. Prestes a atingir a maioridade, Daphne encanta a Rainha Charlotte (Golda Rosheuvel) na nova temporada de cortejo da cidade e se torna a “joia rara” do ano, ganhando atenção de inúmeros pretendentes que prometem desposá-la e torná-la uma “digna dama” da sociedade. Entretanto, Anthony (Jonathan Bailey), assumindo o papel de homem da casa após o falecimento do pai, transforma algo simples em um árduo trabalho, espantando maridos em potencial e deixando-a à deriva por não acreditar que exista algum homem bom para a irmãzinha.
Dançando de baile e baile, Daphne se resigna ao prospecto de uma ruína que trará desonra à família – até cruzar caminho com o imponente e charmoso Simon. O Duque, recém-chegado de sua mansão no interior, é melhor amigo de Anthony e, logo de cara, não se dá bem com a jovem. Suas gritantes e conflitantes personalidades, porém, é o que desperta uma centelha de uma complicada e fervorosa paixão entre os dois – que não se manifesta até os dois tramarem um plano intrincado para serem deixados em paz. Simon, tendo jurado nunca se casar e levar o título de Hastings consigo para o túmulo, finge cortejar a dama para se livrar das outras mulheres; Daphne, por sua vez, recebendo atenção de alguém tão importante quanto o Duque, volta a atrair a atenção de outros cavalheiros.
A princípio, Bridgerton parece apenas mais uma entrada qualquer em meio a tantas obras conterrâneas – mas tem um diferencial sagaz: sua ressonância, em certos aspectos, com a contemporaneidade. O romance e a adaptação seriada são pincelados com toques da atualidade que se fundem com perfeição ao panorama gritante e marmóreo da primeira metade do século XIX, percebidos em meio a diálogos que flertam com as tendências feministas da década de 1970 em diante, ou até mesmo na clássica orquestra que rearranja canções conhecidas em temáticas de baile – como “Wildest Dreams”, de Taylor Swift, e “Bad Guy”, de Billie Eilish, ambas ganhando uma dimensão imediatista e inesperada, contemplando o que já citamos como anacronismo narrativo, o mesmo visto em Maria Antonieta, por exemplo.
À medida que o melodrama novelesco se apodera dos episódios, o showrunner Chris Van Dusen, que faz um ótimo trabalho ao comandar com rédeas firmes os arcos de cada um dos personagens, permite que a comédia pastelão seja dosada na medida certa e se infiltre nas subtramas, como ocorre com a família Featherington. Nesse novo núcleo, a matriarca Portia (Polly Walker) é uma dama da high society que deseja despojar as filhas mais que tudo na vida, mas que se vê num impasse quando a filha de um primo de seu marido chega do interior e rouba toda a atenção da comunidade; como se não bastasse, ela enfrenta a falência e a desmoralização do nome que carrega em virtude do vício em jogos do azar do esposo. Tais inflexões são tratadas com singularidade e mostram que Lady Featherington é uma impiedosa mulher que fará de tudo para assegurar o bem daqueles que ama.
Entre as rendições apaixonantes do restante do elenco, em especial de Claudia Jessie como a verborrágica Eloise Bridgerton e de Adjoa Andoh como a icônica Lady Danbury, e uma fotografia eufórica e evocativa que transforma os belíssimos cenários em pequenos oásis ingleses, a série pode até deslizar em certos momentos e repetir motes com constância cansativa – mas, no final das contas, é uma ótima pedida para quem precisa de um escape da realidade e para aqueles que gostariam de se imaginar nos suntuosos bailes da realeza, não se preocupando com mais nada além de dançar como se não houvesse amanhã.
Bridgerton - 1ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2020)
Criado por: Chris Van Dusen, baseado nos romances de Julia Quinn
Direção: Julie Anne Robinson, Tom Verica, Shree Folkson, Alrick Riley
Roteiro: Chris Van Dusen, Janet Lin, Abby McDonald, Joy C. Mitchell, Jay Ross
Elenco: Adjoa Andoh, Lorrain Ashbourne, Jonathan Bailey, Sabrina Bartlett, Harriet Cains, Bessie Carter, Nicola Coughlan, Phoebe Dynevor, Ruth Gemmell, Florence Hunt, Claudia Jessie, Ben Miller, Luke Newton, Regé-Jean Page
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Comédia dramática
Duração: 60 min.
https://www.youtube.com/watch?v=pyi8QAlHR8k
Crítica | Fuja - Uma Nova Perspectiva para a Síndrome de Munchausen
Quando pensávamos que as histórias de suspense e de terror já não conseguiam trazer mais originalidade para um público ávido pelo novo, surge Fuja. O longa-metragem traz como premissa básica (e vista na incrível minissérie The Act) a Síndrome de Münchhausen, um transtorno fictício em que os indivíduos fingem ou causam a si mesmo ou a outrem doenças ou traumas psicológicos para chamar atenção ou simpatia a eles – criando sintomas com indução de toxinas, medicamentos e drogas para ganhar credibilidade por parte dos profissionais de saúde. Essa “tese”, por assim dizer, teve notoriedade ao colocar em foco a história de Dee Dee Blanchard, uma mulher que fez com que sua filha, Gypsy Rose, acreditasse que tinha as mais diversas doenças para depende unicamente dos cuidados da mãe – acabando num trágico assassinato fruto de uma vingança muito bem elaborada.
A história real foi transportada este ano para um escopo um tanto quanto mais diabólica e tensa com o longa-metragem supracitado, comandado por ninguém menos que o aclamado diretor Aneesh Chaganty. O nome pode não parecer familiar à prima vista, mas se você assistiu ao thriller Buscando..., sabe que Chaganty tem uma habilidosa mão para criar histórias envolventes a partir de panoramas clichês, por assim dizer – ora, ele até mesmo trouxe de volta a grandiosidade dos mockumentaries e dos found-footage com a obra estrelada por John Cho. Em sua segunda incursão cinematográfica, ele retorna com força inigualável, entregando apenas o que podemos entender como uma das melhores produções do ano e trazendo Sarah Paulson em uma das performances mais incríveis de sua carreira depois de American Crime Story.
Paulson dá vida a Diane Sherman, uma traumatizada mãe que dá vida a uma garota prematura chamada Chloe (Kiera Allen). Apesar da situação nada favorável, Chloe cresce e se torna uma inteligente garota – agora com dezoito anos e prestes a entrar para a faculdade. Versada em tecnologia e em robótica, ela é apaixonada pelo conhecimento, mas sofre de diversas mazelas: arritmia cardíaca, asma, hemocromatose (excesso de ferro no sangue), diabetes e paralisia – um cenário nada favorável, é claro; de qualquer forma, mãe e filha desenvolvem um laço inquebrável de empatia, amizade e amor, que transforma o pior em uma situação suportável dentro de seus limites. Entretanto, as coisas mudam quando Chloe encontra uma caixa de remédios com o nome de Diane numa sacola de compras – remédios que ela está ingerindo.
O trailer do filme entrega alguns pontos-chave da trama – algo que seria inaceitável em qualquer outra iteração. Entretanto, Chaganty, em colaboração ao seu parceiro de longa data, Sev Ohanian (com quem assina o roteiro), parece ter feito isso propositalmente, caminhando com cautela enquanto construía reviravoltas dentro de uma narrativa previsível, por assim dizer. Diane é uma mãe superprotetora que mantém a filha presa em uma jaula sem grades, não tirando os olhos de cada movimento que ela faz e até mesmo dando-lhe aulas em casa. Chloe não tem amigos, não tem contato com o mundo externo (nem mesmo as cartas ela consegue pegar em mãos, visto que a mãe sempre está lá na porta para tomar conta de tudo). Como já é de se esperar, tudo sai do controle quando uma série de eventos assombrosos colocam em xeque a confiança entre as duas mulheres e as coloca em uma luta pela sobrevivência.
A atuação impecável de Paulson não é nenhuma surpresa: ela conquistara nossos corações com suas múltiplas rendições na antologia American Horror Story, além de ter participado de produções como Ratched, 12 Anos de Escravidão e Oito Mulheres e um Segredo, sempre mostrando uma versatilidade aplaudível e um comprometimento com seus papéis que a colocaram num patamar honrável. Em Fuja, a atriz encarna uma das únicas vilãs da carreira, mergulhando em um arco de redenção e queda que entra em conflito explosivo quase o tempo todo – e motivo pelo qual transferimos nossa atenção para ela.
Entretanto, é Allen quem se destaca como a outra protagonista. A novata havia participado apenas de um curta-metragem intitulado Ethan & Skye, em 2014, fazendo sua grande estreia neste ano. Para um primeiro papel em um filme de calibre considerável, a jovem atriz entrega muito mais que o esperado e se delicia com uma complexidade apaixonante, fazendo bom uso de todas as camadas de uma personalidade que não sabe mais o que é real ou não. Chloe parece se sentir incompetente por não ter percebido que o carinho da mãe era, na verdade, uma máscara para todos os erros que ela cometera no passado; Diane havia perdido a filha prematura duas horas após o nascimento e, numa loucura extrema, roubara uma recém-nascida do berçário do hospital e induzira uma criança perfeitamente saudável a ter as mais diversas doenças, por um simples motivo: mantê-la dependente e sempre necessitada.
Como já mencionado, Chaganty abre espaço para fórmulas datadas e que premeditáveis, por assim dizer – e é isso o que ele almeja: sabemos o final dessa arrepiante história, sabemos que Chloe vai dar um jeito de escapar de uma tortura inconsciente que a transformou em um animal de estimação. Todavia, o que nos chama a atenção é a aprazível e tensa condução de cada uma das sequências – e de que forma a direção e o roteiro promovem uma metamorfose chocante de duas personagens que acreditavam ter tudo sob controle. As peças se encaixam perfeitamente e até mesmo trazem o talentoso Torin Borrowdale, de Locke & Key, para a composição da tétrica e dissonante trilha sonora.
Fuja tem os seus deslizes, mas não descarrilha em nenhum momento; pelo contrário, o thriller de suspense é uma garantia de que Aneesh e companhia não tiveram apenas sorte de principiante em sua estreia diretorial, servindo como lembrete de ficarmos de olho em um time de realizadores que ainda têm muito a nos contar.
Fuja (Run – EUA, 2020)
Direção: Aneesh Chaganty
Roteiro: Aneesh Chaganty, Sev Ohanian
Elenco: Sarah Paulson, Kiera Allen
Duração: 89 min.
https://www.youtube.com/watch?v=Y0-RFZDmycQ
Crítica | Destruição Final: O Último Refúgio - O Escapismo da Catástrofe
Há uma paixão quase inexplicável que o público sente quando se depara com um gênero específico da indústria cinematográfica – os filmes-catástrofe. Comumente girando em torno de desastres naturais que colocam a pequenez do homem em confronto com a poder e a majestuosidade da natureza, ou então que põe em xeque a ganância das pessoas, são intermináveis os títulos que nos chamam por sua narrativa, por mais datados que sejam. Temos eventos de extinção a nível planetário, como 2012 e Armagedom, ou então icônicos dramas baseados em fatos reais, como o aclamado O Impossível. De qualquer forma, a empatia (ou a falta dela) quando a humanidade lida com algo inesperado ou incontrolável é um tipo de história que tem uma capacidade de envolvimento indescritível.
No final das contas, boa parte deles falha em entregar algo além do óbvio ou do esperado, valendo mais pelos efeitos especiais e pelas cenas de aniquilamento mundial do que pelas mensagens que pretende nos entregar. Mas esse não é o caso de Destruição Final: O Último Refúgio: o longa-metragem consegue amalgamar as questões universais do constante medo do que se esconde na escuridão do espaço (neste caso, um asteroide chamado Clarke que muda sua rota de colisão e ameaça acabar com tudo o que conhecemos) com um drama familiar tour-de-force guiado pela química exemplar de Gerard Butler – o que é estranho, visto que ano passado ele se rendeu às fórmulas do esquecível Geostorm: Planeta em Fúria – e de Morena Baccarin.
O filme havia sido adiado diversas vezes desde seu anúncio, devido à crescente pandemia do COVID-19 que desconstruiu o cronograma de estreias dos grandes estúdios diversas vezes – e, apesar dessas constantes mudanças, não envelheceu como imaginávamos. Pelo contrário, essa obra de desastre veio em um ótimo momento para esquecermos dos problemas que enfrentamos na atualidade, servindo como um delicioso e nada culposo escape que nos prende do começo ao fim. A trama principal gira em torno de uma problemática família que luta pela sobrevivência quando o cometa mencionado acima ameaça chegar à Terra. Dirigido por Ric Roman Waugh, que já trabalhara com Butler em Invasão ao Serviço Secreto, o resultado é surpreendente e positivo e até mesmo arranca algumas lágrimas conforme se aproxima do evocativo e esperançoso finale.
Enquanto Butler costuma ser o principal astro de obras deste gênero, aqui ele divide os holofotes com seus colegas de cena. O ator encarna John Garrity, um renomado arquiteto que é contatado pelo serviço de defesa dos Estados Unidos para se encaminhar a um bunker na Groenlândia e se salvar do extermínio certeiro. Apesar de estar tendo problemas com seu casamento, ele é solicitado pelas forças nacionais ao lado da esposa, Allison (Baccarin) e do filho, Nathan (Roger Dale Floyd) – sendo obrigado a deixar para trás a vida que outrora conhecida. É claro que as coisas não saem como o planejado e, ao chegarem à base militar, são impedidos de entrar nos aviões pela condição crônica do filho.
O parágrafo acima resume bem a história e o que podemos esperar dos acontecimentos seguintes – que são previsíveis, de fato. A família se separa, enfrenta seus próprios demônios, se reúnem e conseguem chegar nos momentos finais ao abrigo secreto para, talvez, se salvarem da colisão do meteoro. Entretanto, é o brilhante roteiro assinado por Chris Sparling que transforma essa aventura em uma análise sucinta de como as pessoas se tornam monstros em situações de desespero, acatando medidas desesperadas e inconsequentes para se manterem vivos o máximo de tempo possível. Não é à toa que tenhamos incursões que tangenciam a antropologia e a sociologia, como o enfrentamento de John contra algozes xenofóbicos que acham que ele não merecia ter sido chamado, ou então pela realização trágica e epopeica de Allison quando seu filho é raptado.
Tudo isso culmina para uma tocante produção que arranca de seu elenco e de sua equipe criativa o melhor que consegue – ainda mais pelo fato de Sparling ter ficado responsável pelo claustrofóbico thriller Enterrado Vivo, estrelado por Ryan Reynolds. O roteirista prova, assim como já fizera anteriormente, que tem uma capacidade honrável de usar clichês a seu favor, sem pretender almejar por algo que nunca consegue. É óbvio que a obra em si não tem qualquer intenção de ser revolucionária, e sim de fornecer um divertimento, por mais desafortunado que seja, de pessoas correndo contra o tempo para salvarem aqueles que amam. Afinal, é essa afeição pelo outro que nos dá uma centelha de esperança em um mundo que é movido pelo individualismo desenfreado e pela cobiça.
Waugh faz um bom trabalho no tocante à estética fílmica, por vezes trazendo inclinações ao mockumentary, por vezes deixando que os atores falem mais alto em construções metódicas de campo-contracampo. O panfletarismo cenográfico das incríveis paisagens idílicas é também utilizado com um propósito bem definido: entrar em conflito com o caos causado pelos destroços do meteoro e das pessoas que não sabem o que fazer e como se proteger. Por um momento, não sabemos exatamente se alguém sobreviveu – mas as duas últimas cenas da produção, apesar da obviedade, almejam a um reerguimento de uma raça que, de novo, se viu com seus dias contados.
Destruição Final: O Último Refúgio é uma ótima pedida para se ver nestes finais de semana em confinamento. Sua jornada vale a pena pelos laços do elenco protagonista, pela interminável tensão e pelas divertidas sequências de ação.
Destruição Final: O Último Refúgio (Greenland – EUA, 2020)
Direção: Ric Roman Waugh
Roteiro: Chris Sparling
Elenco: Gerard Butler, Morena Baccarin, Scott Glenn, King Bach, Roger Dale Floyd
Duração: 119 min.
https://www.youtube.com/watch?v=c4Ui6sGkn90
Crítica | Hamilton - O Suprassumo Musical do Século
Lin-Manuel Miranda é um conhecido nome da indústria do entretenimento contemporânea – e não é por menos: seus grandes créditos cinematográficos incluem Moana e O Retorno de Mary Poppins, colaborando com suas incríveis habilidades musicais e performáticas para encantar públicos ao redor do mundo. Entretanto, Miranda começou bem antes a emocionar qualquer um que ousasse prestar o mínimo de atenção à sua genialidade criativa com Hamilton, musical que migrou de apresentações caseiras para palcos off-Broadway até atingir o estrelato nos maiores teatros do mundo (chegando até mesmo a atingir a Casa Branca com força inigualável).
Mas qual o motivo de tanto sucesso? Bom, comecemos com o patriotismo: o povo estadunidense carrega consigo um senso de levante à pátria impetuoso (e muitas vezes exagerado) que coloca os famosos pais fundadores de seu país em um patamar inalcançável e quase idílico. Para tanto, Miranda se apropriou da biografia de Alexander Hamilton, um controverso e complexo personagem que perdeu a mãe, viu sua cidade ser destruída por um furacão e decidiu, eventualmente, que precisava entrar para a história e mudar o status quo imperialista que a monarquia britânica transportava de suas geladas terras para o novo mundo. Entretanto, aqui está a reviravolta: o criador, diretor, liricista, roteirista, compositor, ator e cantor resolveu deixar de lado a supremacia branca e trouxe representatividade como nunca vista para o cenário mainstream, contratando atores latinos, negros e asiáticos para recontarem eventos verdadeiros.
Transformar a estrutura didática e solidificada do ensino do governo estadunidense em um musical não seria uma tarefa fácil – mas Miranda sabia como colocar tudo nos eixos: diferente do classicismo orquestral e operístico de tantos musicais conterrâneos, fosse na elegíaca narrativa romântica de O Fantasma da Ópera, fosse no sensual jazz de Chicago, a ideia era resgatar o poder da contracultura fonográfica e colocá-la em voga para um público não acostumado. Foi nesse exuberante pano de fundo que abriram-se portas para o R&B, o pop e o rap, com incursões seletivas para o blues e o soul, culminando em simplesmente uma das maiores e mais importantes obras deste século.
Chegando ao Brasil através do Disney+, Hamilton era um dos títulos mais aguardados pelos usuários – e este que vos fala garante com certeza inegável que a longa experiência vale a pena, convidando-nos para uma jornada crítica, analítica, emotiva e bastante pessoal de nomes clássicos da cultura mundial, incluindo o personagem titular, George Washington, Thomas Jefferson e muitos outros. Mais do que isso, as duas horas e meia são cuidadosamente concentradas em um único cenário que se transmuta em diversas locações e que são povoadas por personas estonteantes, cuja química transcende a ficção e estende suas raízes para os espectadores. E, enquanto Miranda faz um ótimo trabalho como o protagonista, o restante do elenco está irretocável.
É claro que a premissa parte de um maniqueísmo bastante conhecido – e faz-se necessário colocar um “mocinho” e um “vilão”, sempre buscando o dinamismo do enredo que nos cativa desde o primeiro momento. A versão fílmica da peça humaniza a rigidez dessas alentadas figuras e parte de uma estética que nos relembra de Sweeney Todd, apresentando uma breve backstory de Alexander e dos dias que precederam sua viagem a Nova York para deixar sua marca – algo que conseguiu, é claro. “Como um órfão, bastardo, filho de uma prostituta” certamente não é um verso acalentador ou honrável para se abrir um espetáculo, mas é seu poderoso choque que o traz para perto de uma realidade atual, mantendo-se até as cortinas se fecharem novamente. Com uma cenografia recuada, que abre espaço para um show de luzes narcótico e estroboscópico, o palco ganha vida se metamorfoseia em duelos de armas, gabinetes de Estado, cerimônias matrimoniais e campos de guerra.
É impossível tirar os olhos da tela, motivo pelo qual a longa apresentação parece se estender por apenas alguns minutos. E sua pièce de résistance é, de fato, seu elenco: temos a presença enigmática de Renée Elise Goldsberry como Angelica Schuyler, a ingenuidade de Phillipa Soo como Eliza, esposa de Alexander que rouba os holofotes com performances catárticas de tirar o fôlego, a frustração política de Leslie Odom Jr. como Aaron Burr, um dos principais obstáculos enfrentados pelo protagonista – e muitos outros. Daveed Diggs, que participou de séries como O Expresso do Amanhã e Unbreakable Kimmy Schmidt, interpreta não um, mas dois personagens admiráveis, criando essências bem distintas para o Marquês de Lafayette e para Thomas Jefferson; Christopher Jackson, com sua potente voz, dá animação para a figura endossada de George Washington, enquanto Jonathan Groff entra como o Rei George III para um escape cômico aplaudível.
Mas não podemos falar de um musical e não citar sua trilha sonora – uma das mais memoráveis das últimas décadas. Temos o minimalismo explosivo de “The Room Where It Happens” (talvez uma das faixas mais belas do século XXI), a sinestésica balada “It’s Quiet Uptown”, o perfeito R&B pop de “The Schuyler Sisters” e a emocionante rapsódia que se ergue com “Non-Stop”. Isso apenas para citar poucas das dezenas de músicas que se amalgamam em uma carta de amor para a arte da performance e para a História em si.
Hamilton é um dos maiores musicais já criados. Sua importância e seu legado – e seu impacto para o fazer teatral, inclusive – ficarão para os anos que virão e serão revisitados com paixão constante e inextinguível.
Hamilton (Idem – EUA, 2020)
Música e Letra: Lin-Manuel Miranda
Roteiro: Lin-Manuel Miranda
Elenco: Lin-Manuel Miranda, Renée Elise Goldsberry, Phillipa Soo, Daveed Diggs, Jonathan Groff, Anthony Ramos, Christopher Jackson, Leslie Odom Jr.
Duração: 150 min.
https://www.youtube.com/watch?v=rNcKGBmZHVQ
Crítica | A Dama e o Vagabundo (2019) - Um Remake Adorável, Mas Nostálgico Demais
Em 1955, a trama de A Dama e o Vagabundo era eternizada pelos estúdios Walt Disney e entrava para a História como uma das animações mais adoráveis de todos os tempos (afinal, quem não gosta de ver uma aventura protagonizada por cachorros?). À medida que a Casa Mouse expandia seu império para a onda de remakes em live-action, era só uma questão de tempo até que o filme em questão ganhasse uma nova adaptação – e, neste ano, a estreia do serviço de streaming Disney+ veio acompanhado dessa aguardada investida.
Levando em conta o histórico da companhia e de suas constantes falhas em resgatar o elemento-surpresa e emotivo que nos cativou há tantos anos (salvo pouquíssimas exceções), é inegável dizer que o retorno dos cãezinhos mais conhecidos da indústria cinematográfica vinha acompanhado de certas ressalvas. Entretanto, o diretor Charlie Bean, conhecido por seu trabalho em diversas produções animadas televisivas (como A Vaca e o Frango e As Meninas Superpoderosas), prometia revitalizar e expandir a mitologia quase verossímil apresentada tantas décadas atrás, quem sabe transformando a jornada romântica dos protagonistas-titulares em algo a mais do que já tínhamos visto. Porém, o resultado final se isola no meio do caminho, valendo-se essencialmente de uma nostalgia almofadada e de uma ruptura excessiva com o apaixonante elemento antropomórfico de outrora.
Se A Dama e o Vagabundo tornou-se um clássico e detém, até hoje, algumas das sequências mais memoráveis do cinema hollywoodiano, Bean teria uma tarefa e tanto pela frente. De fato, o cineasta entrega o que se propõe a fazer durante o primeiro ato inteiro, delineando a vida de Dama (Tessa Thompson), uma obediente cocker spaniel que traz alegria para a casa de Jim Dear (Thomas Mann) e Darling Dear (Kiersey Clemons). Em sua breve existência, Dama sempre foi fiel ao seu núcleo familiar e nunca ao menos se aventurou para além das cercas de seu lar – exceto, talvez, para trocar uma ou outra palavra com os cachorros vizinhos, Trusty (Sam Elliott) e Jock (Ashley Jensen). Isso é, até que sua dona fica grávida e ela pressente gradativamente que seu posto de “queridinha” logo será colocado em xeque.
Do outro lado do enredo, temos o schnauzer vira-lata Vagabundo (Justin Theroux), que na verdade é chamado pela alcunha e se livrou seu antigo nome para viver livremente. Entretanto, essa liberdade da qual tem tanto orgulho é ameaçada pela presença de um perigoso apanhador de cachorros que foi contratado para tirar de circulação quaisquer caninos sem identificação e que “representem ameaça pública”. E, como já podemos imaginar, é fugindo de seu fatal destino que Vagabundo cruza caminho com Dama e ambos entram em atrito devido a personalidades tão diferentes.
Os esforços de Bean são notáveis, mas morrem antes de chegarem à praia: fica bem claro que seu constante e minucioso trabalho são traduzidos em algumas oportunidades interessantes, especialmente aquelas conduzidas pela proposital e redundante trilha sonora curada por Joseph Trapanese. É claro que, num espectro generalizante, a cena mais aguardada dos espectadores é o romântico jantar entre os personagens principais, revisitada inúmeras vezes por diversas obras audiovisuais: ainda que perca sua cândida atmosfera pela adição de algumas quebras de expectativas descartáveis, o enlace entre Dama e Vagabundo é perfeitamente recuperado pela melódica rendição de “Bella Notte” (que também ganha outras dimensões ao longo do filme).
E então, a produção se rende a uma amálgama de atos desconexos e volta o desenrolar da trama para um protagonismo que não deveria existir: o dos humanos. Desde o homem da carrocinha até os donos de Lady e até mesmo a presença pontual de tia Sarah (Yvette Nicole Brown) desconstroem o pano de fundo primordial e se assemelham à esquecível iteração de 101 Dálmatas lançada em 1996. Para além disso, o roteiro assinado por Andrew Bujalski e Kari Granlund, aumentando o tempo cênico da epopeia, se apressam inclusive no tocante à backstory de Vagabundo, transformando seu abandono em um rápido e inexpressivo flashback que eventualmente cai nas fórmulas do pedantismo dramático.
Ao menos o diretor explora alternativas para aumentar o arco narrativo dos cãezinhos e utiliza muito dos elementos naturalistas do mumblecore para garantir uma fluidez entre as personas. Thompson e Theroux fazem o que conseguem com os diálogos que recebem e delineiam os primórdios de uma relação que se consolida apenas no grand finale do terceiro ato; Elliott, em seu forte e inebriante sotaque sulista, entra em um delicioso conflito com Jensen e, certamente, representam alguns dos melhores momentos da obra. Em contraposição, as rendições musicais se restringem a números blasé demais para terem significativa participação (ora, nem mesmo Janelle Monáe se sobressai ao comandar o solo “He’s a Tramp”).
Em suma, A Dama e o Vagabundo é uma medíocre adaptação que acerta o mesmo tanto de vezes que erra. Apesar do incrível e bem estruturado cenário e de algumas sequências divertidas e frenéticas, o novo remake dos estúdios Walt Disney depende muito do saudosismo em vez de almejar a algo novo.
A Dama e o Vagabundo (Lady and the Tramp – EUA, 2019)
Direção: Charlie Bean
Roteiro: Andrew Bujalski, Kari Granlund
Elenco: Tessa Thompson, Thomas Mann, Kiersey Clemons, Sam Elliott, Justin Theroux, Ashley Jensen
Duração: 104 min.
https://www.youtube.com/watch?v=odFM3ecQaPE
Crítica | The Crown: 4ª Temporada - O Barril de Pólvora
“Pesada sempre se encontra a fronte coroada”.
A emblemática frase proferida por Henrique IV na peça homônima assinada por William Shakespeare serve de premissa atemporal para literários, dramaturgos e realizadores audiovisuais que resolvem voltar suas habilidades criativas para um retrato mais humanizado das monarquias mundiais – especialmente a realeza britânica, que constantemente ganha os holofotes com centenas de versões que apresentam perspectivas das mais diversas sobre seus complexos e controversos personagens. Entretanto, nenhuma produção conseguiu atingir tal objetivo como The Crown, drama da Netflix focado no reinado da icônica Rainha Elizabeth II.
Caminhando para o fim de mais um ciclo da mesma forma que fez com a vencedora do Emmy Claire Foy, chegou a vez da premiada Olivia Colman dizer adeus ao papel da monarca ao interpretá-la em um período extremamente conturbado de seu reinado (não que não houve outros). Saindo de uma incrível terceira temporada, o criador e showrunner Peter Morgan tinha bastante material com o qual trabalhar para dez episódios fresquinhos e recheados das mais chocantes reviravoltas e uma reflexão sobre os segredos que se escondem nas maciças paredes do Palácio de Buckingham e adjacências. E, conforme nos aproximamos de mais um evocativo season finale, as imprecisões históricas (que parecem mais vivas aqui do que em iterações predecessoras) não ofuscam a química estupenda de um elenco estelar e a sólida equipe técnico-artística que nos guia com cautela e emoção através da segunda parte da era elizabetana.
De fato, o anúncio do quarto ciclo veio acompanhado de expectativas majestosas, ainda mais pela introdução de figuras importantíssimas para a compreensão dessa intrincada engrenagem real: Princesa Diana, a queridinha do público e uma das principais denunciadoras da obsolescência britânica, e Margaret Thatcher, cruel articuladora do neoliberalismo inglês que já havia sido levada para as telonas por Meryl Streep, rendendo-lhe mais um Oscar de Melhor Atriz. Agora, coube a dois outros nomes encarnarem essas poderosas mulheres – a novata Emma Corrin como Lady Di em uma rendição espetacular e memorável; e ninguém menos que a simplesmente aplaudível Gillian Anderson como Thatcher e no melhor papel de sua carreira até hoje.
Se The Crown nos ensinou alguma coisa, é que nada é o que parece ser. A pose quase eclesiástica com a qual os membros da coroa britânica surgem em público – com sua aparente inexpressividade e uma calculista frieza estampada em rostos plásticos – é apenas uma máscara para todos os problemas que se alastram pelos gigantescos corredores de sua morada e até mesmo para aqueles que ousam chegar mais perto. A análise melodramática, em seu melhor sentido, abre portas para recontar uma história incessantemente contada nas salas de aula e, com firmeza e convicção assustadoras, convidam os espectadores a ver as coisas de outra forma – e essa oscilação de perspectiva foi exatamente o que trouxe esse enlace sem precedentes em um enredo envolvente e arrepiante.
Elizabeth (Colman) enfrenta seu primeiro grande obstáculo com a eleição de Thatcher ao cargo de primeira-ministra, cujas políticas incisivas e sua impetuosidade a deixaram conhecida como Dama de Ferro. Na verdade, Thatcher veio como força de combate para enfrentar a realeza e seu principal símbolo, constantemente criticando hábitos desnecessários e “cruéis” por parte da família e entrando em conflito com certas decisões humanitárias demais que impediriam a prevalência e o retorno à glória do outrora imbatível Reino Unido. Não é surpresa, pois, que os episódios tragam essas subtramas ao plano frontal e façam o máximo para explorar o que deve ser explorado – com certas mudanças que, para o bem ou para o mal, enfeitam a fórmula do drama seriado com dinamismo instigante.
Como se não bastasse, o casamento do filho mais velho da Rainha, Charles (Josh O’Connor), com a tímida Diana, toma boa parte dos capítulos – não apenas o matrimônio em si, mas a ascensão e a queda de um casal problemático e tóxico ao extremo. Diana e Charles se conhecem ao acaso e logo se apaixonam – apenas para descobrirem que, com exceção de uma história levemente semelhante, não têm nada em comum. Corrin se transmuta na Princesa com simetria assustadora, seja no modo em que sorria para os fotógrafos e jornalistas, seja em sua narcótica beleza que encantava qualquer um que quisesse conhecê-la; O’Connor, por sua vez, traz um lado sombrio para Charles que não víamos a algum tempo, revelando um lado pirracento e mimado que não aceitava que sua esposa tivesse mais atenção da mídia do que o herdeiro do trono. Ambos unem forças para uma exuberante montanha-russa de conivência, traição e resignação que, no final das contas, era tudo o que esperávamos de uma produção deste calibre.
Enquanto a imagética da série não foge muito do que havíamos visto – optando por cores mais frias em momentos mais dramáticos e uma espetacularização propositalmente forçada de teatralidades e um glamour invejável em sequências pacíficas ou celebratórias -, deve-se notar a competência de um roteiro que não peca em deixar os personagens em defasagem. Helena Bonham Carter traz uma amarga maturidade ao regressar para o papel da Princesa Margaret, que percebe que sua importância na família vem sendo posta em xeque com dezenas de intermináveis protocolos tradicionalistas; Tobias Menzies se mostra como um camaleão performático ao nos fazer odiá-lo como o petulante Príncipe Philip; e Erin Doherty retorna numa fantástica interpretação de uma compreensiva e exausta Princesa Anne.
The Crown acerta em cheio com um quarto ano bombástico, repleto de intrigas emocionantes que são levados com pungência cirúrgica às telas. O esboço adaptado da monarquia britânica, por mais denso que se torne a cada episódio, faz o máximo para se tornar acessível ao público e, com uma clareza que não se vê em muitas produções contemporâneas, traça uma linha em direção a uma catártica realização de que, no fundo, tudo é válido quando falamos de poder.
The Crown – 4ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2019)
Criado por: Peter Morgan
Direção: Benjamin Caron, Christian Schwochow, Jessica Hobbs, Sam Donovan
Roteiro: Peter Morgan, James Graham, David Hancock
Elenco: Olivia Colman, Helena Bonham Carter, Tobias Menzies, Erin Doherty, Josh O’Connor, Emma Corrin, Gillian Anderson
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama Histórico
Duração: 60 min.
https://www.youtube.com/watch?v=4eMLckXA-UE
Crítica | Rosa e Momo - Um Conflito de Gerações
Sophia Loren é um dos nomes mais poderosos da indústria do entretenimento – e se você não a conhece, está mais que na hora de revisitar sua extensa filmografia. Afinal, Loren se tornou a primeira atriz de língua não-inglesa a levar para casa o Oscar por sua incrível performance no aclamado drama Duas Mulheres, ainda em 1960 – mas sua carreira não se restringe apenas a seus feitos no passado. Ela também emprestou sua voz e sua presença para o controverso musical Nine, de Rob Marshall, e até mesmo dublou uma das personagens na versão italiana de ‘Carros 2’. Aos 86 anos, ela é única mulher da lista das estrelas clássicas de Hollywood ainda viva e fez um glorioso retorno para aquilo que mais sabe fazer nestes últimos dias com o poderosos tour-de-force Rosa e Momo.
Dirigido por Edoardo Ponti, filho de Loren, o mais novo longa-metragem da Netflix é baseado no romance A Vida Pela Frente, de Romain Gary, e é centrado em dois personagens principais: o primeiro deles, que entra como narrador de uma jornada através de obstáculos familiares e do senso de pertencimento a uma comunidade, é encarnado pelo jovem Ibrahima Gueye em Momo, um menino muçulmano senegalês órfão que basicamente não tem nenhuma ambição quanto ao futuro. Deixado às mãos do Dr. Coen (Renato Carpentieri), Momo se rendeu ao crime e ao tráfico de drogas como forma de buscar independência e provar que não precisa de ninguém, nem mesmo quando ele é levado para a casa de Madame Rosa (Loren) até que outro lar seja encontrado.
De fato, Loren e Gueye são os grandes astros da produção e nutrem de uma química gigantesca desde o primeiro momento em que dividem as telas. Momo e Rosa não se gostam – isso fica claro desde o começo: o menino rouba dois castiçais da frágil senhora apenas para depois cruzar caminhos com ela novamente e perceber que o carma nunca falha. De qualquer forma, nenhum dos dois possui muita paciência e nem vontade de criar quaisquer laços um com o outro, talvez para se protegerem, talvez porque se sintam melhores sozinhos. A identidade de Momo é posta em xeque constantemente através dos breve 95 minutos da narrativa, visto que o roteiro é pungente o suficiente para transformá-lo em várias dissonâncias de uma mesma personalidade conforme ele segue pelas estreitas ruas do bairro italiano Libertà; enquanto isso, Rosa sofre com uma espécie de síndrome de estresse pós-traumática, revisitando os anos em que ficou presa no holocausto durante a II Guerra Mundial.
Todos esses temas são canalizados pelas habilidosas mãos de Ponti e de Ugo Chiti, que auxilia na adaptação do livro. Diferente do que poderíamos esperar de outras iterações do gênero, o panfletarismo e o pedantismo caprichoso não existem em nenhum lugar: o que insurge é um retrato singelo, sutil e emocionante de duas pessoas completamente diferentes que se unem por um acaso mais similar do que imaginam. Ambos sofreram com perdas e tentam seguir em frente sem deixar que os fantasmas de um conturbado passado voltem para assombrá-los – por mais que não consigam ou traduzam suas frustrações de outras maneiras. Rosa, volta e meia, se transforma numa carcaça sem vontade própria que se refugia num quartinho no subsolo do prédio onde mora, fitando inexpressiva fotos antigas e objetos de valor que se escondem na escuridão; Momo, além de “trabalhar” ao lado de um traficante, materializa uma leoa que o protege e que sempre o acompanha a qualquer lugar que vá.
É através de detalhes que a conexão entre os dois personagens vai crescendo em um explosivo e exuberante relacionamento que é movido pelos conflitos de gênero, raça, idade e religião – tudo isso sem cair nas formulaicas e apressadas saídas melodramáticas ou em forçadas tramas novelescas repletas de estereótipos datados. Como já mencionado, a sutileza e a maior arma do filme, sendo utilizada com tanta paixão que chega a ser difícil não soltar uma ou duas lágrimas frente às turbulências que eles enfrentam: Momo se acostuma à sua nova vida antes de perceber que, a qualquer momento, Rosa pode ser levada embora para um hospital devido à sua fraca condição mental e aos episódios de nescidade – uma dormência que a leva para longe do presente no qual está e mantém presa num ciclo vicioso sem fim.
É interessante o modo como Ponti guia o enredo que nos apresenta através de pinturas quase eclesiásticas, flertando com o impressionismo imediatista que dialoga diretamente com a realidade que quer retratar. A sóbria paleta de cores acompanha a completa ausência de prospecto dos protagonistas – anti-heróis que tentam fazer do pior algo suportável. Afinal, como Rosa menciona na transição do segundo para o terceiro ato, “quando estamos sem esperança, as coisas melhoram”. Em outras palavras, quando se está no fundo no poço, o único caminho a seguir é para cima – e isso se mantém até a derradeira verdade que decai sobre Momo: Rosa não está em condições de ser quem outrora era, uma dama austera, disciplinadora e protetora; cabe a ele fazer de seus últimos momentos uma jornada evocativa.
Rosa e Momo é facilmente um dos dramas mais poderosos do ano e uma adição quase irretocável ao catálogo da Netflix, cujos principais espólios são a química de seu elenco e o glorioso retorno de Sophia Loren àquilo que, um dia, a colocou no topo do mundo.
Rosa e Momo (La Vita Davanti a Sé – Itália, 2020)
Direção: Edoardo Ponti
Roteiro: Edoardo Ponti, Ugo Chiti
Elenco: Sophia Loren, Ibrahima Gueye, Abril Zamora
Duração: 95 min.
https://www.youtube.com/watch?v=veENW22O0Pk
Crítica | O Gambito da Rainha - Sob o Domínio da Frustração
O xadrez é um dos esportes mais antigos da história mundial e, até hoje, é considerado um dos mais difíceis de dominar. Símbolo de autocontrole e uma bela metáfora acerca de conhecer seus oponentes, prever suas jogadas e mergulhar de cabeça na faca de dois gumes que é a propriocepção, o famoso esporte dá a falsa sensação de ser simples, mas vai muito além de um tabuleiro de madeira com 64 casas – ele é, na verdade, um complexo exercício físico-mental de paciência e que requere completa atenção e destreza e que culmina em uma das maiores competições do globo, o Campeonato Mundial de Xadrez (o qual, eventualmente, é o centro gravitacional da mais nova minissérie original da Netflix, O Gambito da Rainha).
Não se deixem enganar – a premissa por trás da produção é bem mais enervante do que parece e até mesmo se afasta de obras que partem da mesma raiz, como o cândido Rainha de Katwe e o denso documentário Bobby Fischer contra o Mundo. Aqui, o foco expande-se para além do embate entre dois adversários distintos, destinando boa parte dos holofotes para a vida da jovem Elizabeth “Beth” Harmon (Anya Taylor-Joy no papel de sua carreira), que perdeu a mãe em um trágico acidente de carro com apenas oito anos e foi transferida para o orfanato de garotas Methuen onde cruzou caminho pela primeira vez com as técnicas do xadrez. Conhecendo todas as jogadas possíveis com a orientação do sagaz zelador Sr. Shaibel (Bill Camp), o qual, por mais ríspido e duro que fosse, serviu como principal tutor para que ela se tornasse um dos nomes mais quentes do esporte em questão.
Baseado no romance homônimo de Walter Tevis, a convincente narrativa nos leva a acreditar piamente que Beth Harmon realmente existiu e que seu nome foi esquecido décadas após suas consecutivas vitórias contra jogadores mais experientes e até mesmo Grandes Mestres, sendo redescoberto em uma época onde o poder da mulher deve ser enaltecido da maneira correta. Entretanto, Beth é apenas uma criação da exímia mente de um romancista apaixonado pelo conturbado universo do enxadrismo, permitindo que seus competentes personagens e seus múltiplos arcos se condensem em uma análise, se não profunda, sólida o suficiente sobre feminismo, questões de gênero e raça e comportamentos autodestrutivos que, quando levados para as telas, engolfam o público em um dinâmico frenesi do começo ao fim. Ademais, os sete longos episódios do show passam em um piscar de olhos, mais pela química irretocável de seu elenco protagonista e pelo cuidado estético de uma aplaudível equipe criativa.
Para levar a história de Beth à plataforma de streaming, a dupla Scott Frank e Allan Scott foi contratada para ficar responsável pelo roteiro – com Frank, conhecido por seu trabalho no aclamado Logan, tomando posse da cadeira de direção. Apesar de não acertar todos os movimentos, os realizadores tentam ao máximo se afastar das fórmulas coming-of-age de filmes e séries do gênero e fogem das datadas concepções maniqueístas de “bem” e “mal” (algo que parece estagnado dentro do cosmos que é explorado). Seguindo os passos do dêitico livro, Beth começa sua jornada ao dominar a base do xadrez, enfrentando semi-profissionais com apenas nove anos e vencendo a competição local com quinze. Não demora muito para que ela e sua mãe adotiva, Alma (Marielle Heller em uma interpretação adorável), se tornem parceiras de uma carreira repleta de conquistas e de problemas que se escondem entre quatro paredes.
Segundo o crítico Harold C. Schonberg, a construção arquetípica da protagonista é o que permite que ela insurja como força majestosa e imparável, subestimada por aqueles que se julgam melhores do que ela, como Harry Beltik (Harry Melling), que se torna seu amigo próximo e seu mentor após ser derrotado, ou por aqueles que a diminuem por ser mais nova e por não ter tanto requinte quanto deveria ter, como Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), o qual também se rende a seu charme e se torna um de seus grandes apoiadores, ajudando-a a vencer o campeonato na Rússia. Afinal, essa originalidade é o que realmente define a maestria quase orquestral do enxadrismo, afastando Beth da prepotência objetiva e aliando-a à dedicação de uma santa bíblica, de uma sã louca que deseja ter o mundo a seus pés. Mas nem tudo são flores – e a jovem por vezes se vê entrelaçada na tênue fronteira entre a insanidade e o equilíbrio.
Taylor-Joy poderia ficar horas e horas apenas quebrando a quarta parede cinematográfica ou com o olhar fixado no tabuleiro imóvel, prevendo as jogadas e analisando as infinitas possibilidades de derrotar seu oponente, que nada conseguiria diminuir seu brilho. Amarrando-se à essência individualista estadunidense que a dá impulso para seguir em frente, a atriz, que já havia entregado performances honráveis em A Bruxa e em Fragmentado, humaniza uma persona endeusada e intocável, deixando claro que Beth é um ser humano e é passível de falhas – seja pelo vício em álcool ou em pílulas calmantes, seja por sua frustração desmedida ao perder qualquer partida. Taylor-Joy usa as fragilidades da protagonista a seu favor com sabedoria apaixonante e com carisma que transcende os limites cênicos da produção.
É um fato dizer que O Gambito da Rainha é uma ótima adição ao catálogo da Netflix – talvez um de seus melhores, considerando o pífio amontoado de reciclagens dos últimos anos. Apesar de não estar livre de deslizes óbvios, como a por vezes pedante trilha sonora ou alguns fillers desnecessários que não contribuem em nada para o desenvolvimento da história, a minissérie segue uma clássica estrutura técnico-narrativa que se prova útil o bastante para uma época que exige escapismo e dinamismo.
O Gambito da Rainha (The Queen's Gambit, EUA – 2020)
Criado por: Scott Frank, Allan Scott
Elenco: Anya Taylor-Joy, Bill Camp, Marielle Heller, Thomas Brodie-Sangster, Harry Melling, Marcin Dorociński, Moses Ingram
Emissora: Netflix
Episódios: 07
Gênero: Drama
Duração: 60 min. aproximadamente
https://www.youtube.com/watch?v=cnqV3wsZlpo
Crítica | Rebecca: A Mulher Inesquecível - Os Mistérios de Manderley
A literatura gótica tem suas raízes no período pré-romântico, mais precisamente em meados do século XVII. Ainda não totalmente rendida aos preceitos idealistas que seriam marco do começo do século seguinte, as obras lançadas na época em questão tratavam de temas como o amor e o prospecto inevitável da morte com uma espécie de metafísica neoclassicista, movida mais pela razão em conflito com a loucura do que pelas emoções. E, por mais que esse gênero não soe familiar, é bem provável que certos títulos já tenham passado por sua vida em algum momento – como A Abadia de Northanger e até mesmo A Outra Volta do Parafuso, que ganhou não uma, mas duas adaptações neste ano, cada qual com uma perspectiva modernizada e que procuraria revitalizar os contos de fantasmas.
Agora, conforme caminhamos para o final do mês mais místico do ano, chegou a vez da Netflix investir mais uma vez nesse suis generis que não tem a atenção que merece – e que é ofuscado constantemente por incursões similares, mas que não tratam do assunto com a mesma profundidade (como é o caso do gore, do body horror ou do slasher). Depois da irretocável A Maldição da Mansão Bly, que fundiu suspense e romance em uma única competente atmosfera, a plataforma de streaming resolveu trazer para o público contemporâneo uma releitura de Rebecca, obra assinada por Daphne du Maurier que já foi adaptada para as telonas por Alfred Hitchcock em 1940. Diferente da obra-prima construída pelo mestre do suspense, que trouxe em seu elenco nomes como Laurence Olivier e Joan Fontaine, a nova versão tentou modernizar de alguma forma a narrativa, dinamizando-a para um público que talvez tenha perdido o costume de apreciar clássicos da Era de Ouro do Cinema – o que, em partes, funciona.
O problema é que o diretor Ben Wheatley não consegue se manter sólido o bastante para cativar os espectadores, criando várias histórias separadas que colidem em uma justaposição forçada de fragmentos perdidos – aliás, é clara a diferença de tratamento entre o primeiro ato e o restante da narrativa, seja no melancólico tom que se apossa dos protagonistas, seja na imagética que toma forma em homenagens simplificadas ao expressionismo alemão e ao noir quarentista. O enredo é centrado em uma jovem dama de companhia interpretada por Lily James que se apaixona pelo misterioso herdeiro Maxim de Winter (Armie Hammer), viúvo cobiçado por praticamente todas as solteiras que conhecem sua trágica história. Eventualmente, os dois cruzam caminho e se casam com rapidez assustadora, com Maxim levando sua nova esposa para a gigantesca propriedade de Manderley, na litorânea Cornuália.
Entretanto, a vida da segunda Sra. De Winter está longe de ser um conto de fadas, visto que ela é recebida de modo bastante frio e julgador pelos serviçais que habitam a enorme propriedade – principalmente pela governanta Sra. Danvers (Kristin Scott Thomas), a qual demonstra ser a força antagônica que incita os obstáculos enfrentados pelo casal. A verdade é que todos ainda sofrem com a morte de Rebecca, a primeira esposa de Maxim, que foi vítima de um naufrágio e desapareceu durante dois meses antes de seu corpo sem vida e inflado aparecer na costa inglesa – e todos continuam comparando a recém-chegada, a então caracterizada como “usurpadora”, com uma poderosa e invencível mulher cujo espírito ainda pode ser sentido nos longos e opressores corredores do estado.
Wheatley é inteligente ao manter a essência da personagem vivida por James, recusando-se a dar-lhe um nome – algo que, de fato, não pode ser mudado, considerando que é cânone do envolvente universo criado por Maurier. A segunda Sra. De Winter é uma tímida construção que não tem forças o suficiente para enfrentar a densa ambiência na qual é mergulhada, observando impotente conforme seu conhecido cotidiano como “a criadagem” é deixado de lado para um poder com o qual não sabe lidar. Mais do que isso, ela é jogada nas sombras de uma imponente figura que ainda permeia os sonhos do marido e que a faz ser tratada com descaso por aqueles que deveriam ajudá-la – ora, ela até mesmo é inconscientemente levada a acreditar na Sra. Danvers, que não a deseja por perto e que faz de tudo para mandá-la embora.
De qualquer forma, essas tênues centelhas de ousadia são apagadas indiscriminadamente ao serem respaldadas por fórmulas tão batidas que transformam essa narrativa em uma convulsionada amálgama de previsibilidades e de personagens desnecessários que não contribuem em nada para a narrativa. Enquanto procura manter a estilística gótica viva, Wheatley se esquece de destinar sua atenção para amarrar as pontas soltas e lapidas a quantidade absurda de subtramas que se estendem profusamente pelos 121 minutos de longa-metragem – como um mistério que se resolve da pior maneira possível e se misturando com inflexões ocasionais que beiram o ridículo, ou então revelações sobre a falecida personagem titular que a jogam em um cruel melindre que não faz o menor sentido.
Por mais que a equipe criativa não perca a mão no tocante às construções artísticas, nos transportando para o complexo período pós I Guerra Mundial em toda sua esquecida e nostálgica glória, Rebecca – A Mulher Inesquecível é um erro da Netflix que quase não consegue se salvar de ser um desastre total, com poucos elementos convincentes o bastante para nos afastar da ideia de um simplório rip-off.
Rebecca - A Mulher Inesquecível (Rebecca – Estados Unidos, 2020)
Direção: Ben Wheatley
Roteiro: Jane Goldman, Joe Shrapnel, Anna Waterhouse, baseado no romance de Daphne du Maurier
Elenco: Lily James, Armie Hammer, Kristin Scott Thomas, Tom Goodman-Hill, Sam Riley, Ann Dowd
Duração: 121 min.
https://www.youtube.com/watch?v=VedvnAJxm7c
Crítica | Noturno - Quero ser Darren Aronofsky
Concluindo o quarteto de filmes antológicos da parceria firmada entre a Amazon e a Blumhouse, Nocturne prometeu revitalizar as clássicas histórias de terror sobrenatural com uma narrativa simples e eficaz, girando em torno do conturbado mundo artístico. Trazendo para o centro dos holofotes um emblemático enredo entre duas irmãs gêmeas pianistas que lutam para construir uma carreira em um famoso conservatório de música, o longa-metragem ganha inúmeros pontos ao resgatar tramas já exploradas com maior profundidade construções similares, adornando os arcos de cada personagem com uma roupagem modernizada e um declaração de que a fama e a ambição sempre vêm com um preço.
A verdade é que a série de produções supervisionadas por Jason Blum vem causando mais decepções do que satisfações – o que é uma pena, considerando que o material promocional desses longas episódios aumentou bastante as expectativas dos amantes do gênero. A temporada foi aberta com o previsível Mentira Incondicional, seguida do interessante, porém cru Caixa Preta (que fez certas incursões sobre os limites da mente humana e sobre os segredos do subconsciente). Entretanto, essa leve melhora de nada adiantou quando justaposta ao ridículo pedantismo de Mau-Olhado, uma das piores obras não apenas do ano, mas das últimas décadas – então como entregar ao público algo que fosse aprazível o suficiente para que essa experiência não se perdesse em um turbilhão de fórmulas simplórias?
A verdade é que Nocturne pode e deve ser encarado como a melhor entrada do Welcome to the Blumhouse – não que isso signifique alguma coisa. Afinal, quando lidamos com uma saga que não diz nada com nada, é costumeiro que procuremos algo que fuja dos convencionalismos e que seja “o menos pior”. O filme a que me refiro nesta breve crítica ao menos foge das tangências da presunção cinematográfica e não deseja se tornar um grande clássico – muito pelo contrário: ele tem ciência de suas fronteiras e sabe que, caso ouse ultrapassá-las, pode se transformar em uma convulsão simplória sem pé nem cabeça e que nos guia para um beco sem saída. Entretanto, ao restringir-se a um fio condutor apenas, impede a si mesmo de explodir em milhões de pedacinhos que não podem ser fundidos em uma única nota novamente.
De fato, essa coesão se deve ao fato de termos um nome como Zu Quirke na cadeira de direção – e fazendo sua estreia no âmbito dos longas-metragens depois de ter comandado três curtas de pouco conhecimento mundial. Ficando responsável pela estrutura imagética e pela narrativa da iteração, a cineasta é sagaz ao concentrar seus esforços nas opressoras e maciças paredes do instituo musical que prendem a nossa protagonista – a jovem Juliet (Sydney Sweeney saindo de uma ótima performance em Euphoria para uma sólida atuação), uma esforçada pianista que vive à sombra da irmã, Vivian (Madison Iseman), uma artista exímia que tem o mundo aos seus pés e conseguiu uma bolsa na lendária Julliard.
Desde o princípio, Juliet se mostra como uma pessoa desistiu de alcançar seus sonhos – talvez pelo motivo deles serem sempre fisgados ou drenados por Viv. Ela também tentou uma vaga em Julliard, mas não conseguiu, retornando para o conservatório para continuar “empurrando com a barriga” suas aulas sobre Mozart em uma apática rotina sem qualquer prospecto de mudança\. As coisas mudam quando ela encontra um livro de teoria musical de uma ex-aluna que se jogou do terceiro andar do prédio poucas semanas antes, estranhando os misteriosos e medonhos desenhos nas páginas em branco – que, de alguma forma, conversam com ela (e bem a tempo das audições para o concerto dos formandos promovido pela diretora (JoNell Kennedy).
De alguma forma, os desenhos no livro que encontra servem como reflexo do vêm acontecido em sua vida e, na verdade, são passos de um ritual para alcançar a glória – é claro, com um preço a pagar: uma alma. Juliet não percebe, mas ao tomar posse do objeto, ela mergulha de cabeça numa jornada sem volta que lhe dá o vigor necessário para se tornar uma estrela, em detrimento do apoio e do amor daqueles a seu redor. Enfrentando seu antigo tutor e envolvendo-se com o assustador Henry Cask (Ivan Shaw), ela “rouba” a apresentação de Viv e até mesmo serve como uma peça-chave indireta para que ela sofra um terrível acidente e perca a mobilidade do braço por seis meses e a vaga na universidade. No final das contas, Quirke nos questiona se decisões precipitadas realmente valem a pena – lançando uma centelha de altercações sobre a fragilidade da psique e sobre a loucura, mas que, infelizmente, nunca toma dimensões muito além do que é esperado.
Não se enganem: Nocturne não é tão calculável quanto soa, com exceção de sua resolução. Ora, ele nem ao menos foge da estética que quer nos entregar, funcionando como um coeso produto que nos deixa ansiando por mais. O grande deslize, por assim dizer, é sua falta de ousadia e de autocrítica quanto ao lugar-comum – e, enquanto afasta-se da presença materializada de demônios ou de aparições sobre-humanas, não consegue criar um elo contínuo o bastante para nos chocar com sua reviravolta. Há um flerte óbvio com a falta de apoio psicológico encarnada por Natalie Portman em Cisne Negro ou com a íntima insanidade de Jessica Harper em Suspiria – nada que acrescente muitas camadas a personagens já complexos na medida certa, e nada que não passe de uma emulação barata. De qualquer forma, a eventual melancolia e a normatização da tragédia são convincentes, apesar de não dignas ao que poderia ser.
Há algo de agridoce quando olhamos de volta para os quatro volumes dessa antologia recém-iniciada – e, por mais que as intenções de Nocturne sejam as melhores, elas parecem não ter vontade de encarnar a originalidade e renegar o básico.
Noturno (Nocturne – Estados Unidos, 2020)
Direção: Zu Quirke
Roteiro: Zu Quirke
Elenco: Sydney Sweeney, Madison Iseman, Jacques Colimon, Ivan Shaw, Julie Benz, Brandon Keener, JoNell Kennedy
Duração: 90 min.
https://www.youtube.com/watch?v=GKj_zUAxxww