O Caixão de Ferro | O final de The Old Guard explicado

The Old Guard estreou hoje na Netflix e rapidamente conquistou um número considerável de novos fãs e de veteranos que já conheciam a narrativa dos quadrinhos assinados por Greg Rucka e relido para as telinhas da plataforma através da perspectiva interessante e envolvente da diretora Gina Prince-Bythewood.

Para aqueles que não estão familiarizados, a história principal gira em torno de um grupo de soldados imortais (ou semi-imortais, caso você prefira) que atravessam as gerações lutando contra as injustiças do mundo e cuidando para que o futuro se torne algo brilhante e pacífico para os humanos – ainda que não percebam a importância de suas ações. Comandando o time, está Andrômaca de Cítia, conhecida como a guerreira imortal que vem recrutando e protegendo novos membros conforme eles “acidentalmente” surgem no mundo – como Joe e Nicky, soldados do período das Cruzadas, Booker, um combatente napoleônico, e a jovem Nile, que morreu em uma missão no Afeganistão e foi trazida de volta por forças misteriosas.

Enquanto a narrativa de Rucka brinca com questões sobre destino, sua própria adaptação para o serviço de streaming visou expandir a mitologia e acrescentar alguns elementos que contribuíssem para o início de um universo cinematográfico ou uma saga fantasiosa que fizesse jus às HQs – como foi o caso da backstory de Nile e até mesmo a exploração de análises sociais através dos metafóricos arcos narrativos de cada protagonista e coadjuvante. E, conforme o longa-metragem deixa bem claro, ainda há muito a se explorar nesse explosivo panteão, incluindo explicações sobre seus poderes sobre-humanos que são alvo de ganância de símbolos do capitalismo predatório.

Em diversas entrevistas que Rucka concedeu sobre o que traria para a adaptação e o que pretenderia mudar, o público ficou sabendo que o primeiro volume de The Old Guard: Opening Fire foi o principal material de uso para a história – além de algumas inflexões sobre a próxima série de aventuras, Force Multiplied, que deve ser lançada o mais breve possível. Apesar de algumas mudanças e algumas atenuações que deixaram a produção mais didática e relacionável para os espectadores jovens, foi visível que Rucka e Prince-Bythewood já tinham em mente uma construção que premeditasse iterações seguintes – o que nos leva a questionar: o que o futuro aguarda para a Velha Guarda?

Durante o curso do longa-metragem, Andy revela algumas partes mais sombrias de sua vida, como o momento em que perdeu dois de seus companheiros mais velhos – Keane, que foi gravemente ferido em combate e não conseguiu se curar; e Quyhn, acusada de bruxaria ao lado de protagonista e condenada a passar a eternidade trancafiada em um caixão de ferro, no fundo do mar (morrendo e ressuscitando até ser levada à loucura). Andrômaca carregou essa culpa por tempo maior do que acreditaria estar viva, parando de procurá-la por vergonha de não ter conseguido protegê-la. Na breve cena pós-créditos, entretanto, descobrimos que Quyhn escapou de sua perpétua prisão e se reencontrou com um já problemático Booker, afastado do grupo por ter traído a confiança.

A sequência não nos revela muitos detalhes, mas começa a nos guiar em diversos caminhos – sendo o mais óbvio deles um possível desejo de vingança por parte de Quyhn, amargurada pelo abandono, e o início de um novo esquadrão de imortais que irá enfrentar Andrômaca. Porém, para aqueles que conhecem os quadrinhos, as tramas podem ser ainda mais instigantes do que se imagina.

The Old Guard traz algumas menções ao tráfico humano que assola o mundo até hoje, principalmente nos países do Oriente Médio e da Ásia – tanto que uma das primeiras cenas leva Andy e seus guerreiros a uma armadilha arquitetada pelo ingênuo Copley. Nos quadrinhos, isso é retratado de modo bem mais denso: no segundo volume de Opening Fire, os combatentes perseguem um grupo de “escravizadores” que (spoiler) estão ligados a um antigo e presumidamente morto colega e ex-amante de Andrômaca, Noriko; no quarto volume, ela se recorda de um relacionamento que teve com Aquiles, um escravo negro de uma plantação no estado da Virgínia quando a Revolução Americana explodiu – escolhendo lutar do lado dos britânicos em busca de liberdade e, sendo preso e mandado para uma colônia penal na Austrália, cruzou caminho com Andy. Essa parte da história, deixado de lado no longa-metragem, é um belo ornamento a ser trazido para os espectadores em uma possível sequência.

Noriko e Quyhn poderiam unir forças e trabalhar em conjunto para derrotar um inimigo em comum – Andrômaca. Mais do que isso, poderiam financiar projetos de caça aos guerreiros imortais, colocando um obstáculo sem precedentes em seu caminho e transformando suas vidas em uma luta pela sobrevivência.

É interessante e reconfortante imaginar que, para essa primeira investida, Rucka tenha deixado reflexões sobre moral, ética e valores (tradicionalistas ou liberais) de fora para uma apresentação convencional e prática o suficiente para nos deixar querendo mais. Agora, está na hora de que incursões metafísicas alcem voo – sem se esquecer, é óbvio, das cenas de ação de tirar o fôlego.

https://www.youtube.com/watch?v=3I3_j00uvqo


Crítica | Love, Victor: 1 ª Temporada - Sobre a Praticidade das Fórmulas

Enquanto vários acreditavam que o gênero da rom-com não conseguiria se reinventar, o longa-metragem Com Amor, Simon veio para cumprir o que prometia e com uma subversão dos dramas coming-of-age LGBTQ+ que tanto povoaram o cinema nos últimos anos. A mistura quase perfeita e emocionante baseada no romance homônimo de Becky Albertalli tornou-se um sucesso sem precedentes que, apesar da espetacularização do romance gay, nos envolveu do começo ao fim. E, seguindo os passos de tantas produções de sucesso comercial e crítico, o filme deu origem a uma série derivada intitulada Love, Victor que, apesar de não chegar no mesmo patamar que a obra original, também entrega o que propõe ao longo de breves dez episódios.

Puxando a ideia predecessora, a trama gira em torno de Victor Salazar (Michael Cimino), um jovem prestes a fazer dezesseis anos que se muda do conservador e tradicionalista estado do Texas para a cidade de Atlanta, porque sua família resolveu recomeçar a vida do zero após alguns problemas que não ficam claros nos primeiros episódios. E, com o auge da adolescência, o protagonista percebe que sua descoberta sexual está à flor da pele, lutando contra sua orientação e tentando se apaixonar por alguma menina de sua nova escola. Eventualmente, Victor vai contra quem realmente é se envolve com Mia Brooks (Rachel Naomi Hilson), a garota mais popular e legal do colégio, chamando a atenção dos outros alunos – e daqueles que querem apenas sua desgraça. O problema insurge quando ele cria laços de amizade muito fortes com o adorável e sedutor Benji (George Sear), colocando em xeque sua normatividade autoimposta.

Logo de cara, percebe-se que a série criada por Isaac Aptaker e Elizabeth Berger se restringe às fórmulas das comédias dramáticas românticas – o que não é um problema, visto que esse é a premissa da qual se valem. Desde o conflito interno até as externalidades sociais (que envolvem seu núcleo familiar de criação religiosa e uma escola que se diz fora dos padrões, apesar de não ser), Victor é o centro de uma história que já sabemos como irá terminar. Ele tenta ao máximo aproximar-se fisicamente de Mia, provando para si mesmo que é um “garoto normal”, mas em segredo troca mensagens com Simon (Nick Robinson reprisando seu papel do longa através de voiceovers e uma breve aparição) contando sobre seu cotidiano e como as coisas não vêm saindo como o esperado.

Diferente de outras produções contemporâneas do gênero, a estética visual se afasta-se da costumeira sobriedade azulada e volta-se para uma vibrante construção artística que reflete a cultura latina dos personagens principais. Mais do que isso, se distancia de uma presença majoritariamente branca para dar voz a outras minorias que, apesar de convergirem para uma celebração da diversidade, eventualmente rendem-se a diálogos convencionais o bastante para não sair da zona de conforto, mas não coeso o suficiente para indicar uma exploração além do que o público está acostumado.

As dinâmicas entre personagens seguem uma linha bastante e que não diverge muito da solidez e praticidade das obras adolescentes. O tímido e recém-chegado Victor é recebido de braço abertos pela altiva personalidade de Felix (Anthony Turpel), que o apresenta ao Creekwood High e o avisa sobre em quem ele deve confiar ou não; pouco depois, entra em conflito com o astro do basquete local, Andrew (Mason Gooding), um jogador passivo-agressivo que utiliza o humor como defesa e como ataque ao mesmo tempo, afastando todos ao seu redor; quando esses dois mundos diferentes colidem, o atrito causado é recheado de potencial, por mais previsível que seja. E, no topo de tudo isso, temos também a presença de alguns atores cuja essência é desperdiçada sem qualquer explicação, como a professora de educação sexual, Srta. Thomas (Ali Wong), e a vice-diretora, Srta. Albright (Natasha Rothwell).

A cereja do bolo vem com a habilidade dos criadores em usar todos os pontos automaticamente reconhecíveis das rom-coms em favor próprio. A ambiência convidativa passa longe do espectro pedante de construções audiovisuais que querem ser mais do que conseguem, deixando suas claras mensagens tomarem conta das tramas principais e secundárias. De qualquer forma, o escapismo promovido pelo show é uma amálgama de paradigmas sondados à exaustão entre os anos 1990 e 2000, talvez numa tentativa oscilante mimética de revivê-los em uma apresentação moderna. Desde a patricinha da escola até a rebelde sem causa, cada estereótipo técnico está presente no programa.

Love, Victor é um presente bem-vindo em tempos complicados como os de hoje. Permitindo ser tão pura, mesmo que não tão coerente, quanto a que a precedeu, a obra é uma ótima opção para se devorar nos próximos dias.

Love, Victor (Idem, EUA – 2020)

Criado por: Isaac Aptaker, Elizabeth Berger
Elenco: Michael Cimino, George Sear, Ana Ortiz, James Martinez, Isabella Ferreira, Mateo Fernandez, Rachel Naomi Hilson, Bebe Wood, Anthony Turpel, Mason Gooding
Emissora: Hulu
Episódios: 10
Gênero: Comédia romântica, Drama
Duração: 30 min. aproximadamente

https://www.youtube.com/watch?v=uh-IaEaEdE0


Crítica | Curon: 1ª Temporada - Um Presente Inesperado da Netflix

A mitologia acerca dos doppelgängers (ou duplos, ou sósias, como também são conhecidos) data de vários séculos atrás. A terminologia nórdica encara o duplo como uma cópia de uma pessoa que, segundo o dramaturgo Steinberg, insurge como presságio de morte ou de mau agouro. Não é surpresa que as lendas foram incorporadas a diversos filmes de terror e de ficção científica, desconstruindo os conceitos maniqueístas do sobrenatural para um enfrentamento quase moral dos nossos piores medos – ou do nosso pior lado, que nos assombra constantemente. Ao longo da história da literatura e do cinema, essas personas, que são tratadas como alter-egos sombrios de uma psique atribulada, transformaram-se em um sub-gênero recheado de potencial, aparecendo em obras como O Retrato de Dorian Gray, The Outsider, How I Met Your Mother e, mais recentemente, no aclamado thriller Nós, de Jordan Peele.

Agora, chegou a vez da Netflix investir nesse tipo de narrativa com a produção italiana Curon. Com apenas sete episódios, a série é uma ode ao suspense dramático e gira em torno da cidade titular, palco de inúmeras tragédias sempre relacionadas à família Raina. Outrora dona do pitoresco vilarejo que fazia fronteira com a Áustria em plena II Guerra Mundial (quase transformando-se em uma neo-colônia alemã), a família resolveu inundá-la como forma de enterrar segredos obscuros - algo que veio a ser cobrado décadas depois em um enredo épico de ascensão e tragédia. Agora, Anna (Valeria Bilello) resolveu retornar de sua vida na estonteante Milão para Curon, para tentar recuperar o tempo perdido com um pai debilitado (interpretado por Luca Lionello) e um passado traumático que envolve a morte da mãe.

Por mais formulaica que essa atmosfera pareça – ainda mais levando em conta a repetitiva preferência da plataforma de streaming pela sóbria fotografia azulada (típica de produções como Dark, The Rain e The Witcher -, o quarteto idealizador deixa que a própria série beba desses convencionalismos narrativos e transfira o foco para um grupo de jovens que lida com uma herança arrepiante, uma maldição que vem se estendendo desde sempre na misteriosa cidade. É a partir daí que o drama adolescente ganha forma interessante e transbordando com energia – a qual é canalizada para atuações irretocáveis e uma tensão crescente que serve de base para sequências de tirar o fôlego. Tudo isso comandando pelos diretores Fabio Mollo e Lyda Patitucci e pela dupla de protagonistas Mauro e Daria, encarnados por Federico Russo e Margherita Morchio.

Arquitetando uma mitologia própria, as sutis nuances são elevadas a um patamar elegíaco – ainda mais levando em conta que o principal vilão da história é a torre do relógio que se posta isolada no centro de um lago. Essa criatura imóvel com ares lovecraftianos é o espectro sobrenatural necessário para que o público comprasse o projeto, além de reger os relacionamentos conturbados entre os personagens. De um lado, os gêmeos Mauro e Daria unem-se para sobreviver ao último ano do colégio, sendo confrontados pela reputação controversa de seus antepassados e por suas personalidades contradizentes à campesina e tradicionalista (para não dizer retrógrada) comunidade lacustre; do outro, temos o conflito sexual de Micki (Juju Di Domenico), a rebeldia sem fim de seu irmão, Giulio (Giulio Brizzi), e ao tóxico relacionamento de seus pais. Ambos os diferentes mundos entram em rota de colisão em inesperados eventos – aumentando a complexidade de cada batida.

À parte de uma imagética bem pensada, mesmo que já tenha sido utilizada em outras produções audiovisuais, e de uma premissa interessante, o grande problema da primeira temporada é sua identidade. Apesar do número sólido de protagonistas, as múltiplas tramas destinadas a cada um deles não têm espaço e tempo suficiente para dizerem tudo o que precisam; algumas escolhas cênicas também parecem fragmentadas demais - como é o caso da montagem paralela, que destoa em certos capítulos quando procura promover um dinamismo maior (coisa que poderia ser destinada apenas à intempestiva trilha sonora). No final das contas, cabe à excelência da química entre os atores e atrizes ofuscar, dentro do que é cabível, esses amadorismos.

Enquanto a série não pensa duas vezes antes de transformar o suspense em um thriller psicológico movido à laços familiares e a segredos que vão sendo desenterrados pouco a pouco, a transmissão mítica ou acaba ficando de lado, ou é inflexionado de modo diligente e superficial. Felizmente, numa perspectiva inicial, a primeira temporada ergue-se com maestria forte o bastante para nos manter vidrados do começo ao fim – ainda que certas incursões oscilem por falta de aproveitamento.

No geral, Curon é uma surpresa agradável que vinha sendo cultivada desde o primeiro trailer – um dos melhores do ano, devo dizer. Mesmo que certas expectativas tenham sido diminuídas à medida que os episódios chegavam ao fim, o saldo positivo e o desejo de mais temporadas (com explorações mais profundas do que as apresentadas) é o principal motivo de querermos revisitá-la várias vezes à procura de pistas e pontos perdidos.

Curon (Idem, Itália – 2020)

Criado por: Fabio Mollo, Lyda Patitucci
Elenco: Federico Russo, Juju Di Domenico, Giulio Brizzi, Marghertia Morchio, Luca Lionello, Valeria Bilello
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Drama, Suspense
Duração: 50 min. aproximadamente

https://www.youtube.com/watch?v=5IgdyeF3a60