O Caixão de Ferro | O final de The Old Guard explicado
The Old Guard estreou hoje na Netflix e rapidamente conquistou um número considerável de novos fãs e de veteranos que já conheciam a narrativa dos quadrinhos assinados por Greg Rucka e relido para as telinhas da plataforma através da perspectiva interessante e envolvente da diretora Gina Prince-Bythewood.
Para aqueles que não estão familiarizados, a história principal gira em torno de um grupo de soldados imortais (ou semi-imortais, caso você prefira) que atravessam as gerações lutando contra as injustiças do mundo e cuidando para que o futuro se torne algo brilhante e pacífico para os humanos – ainda que não percebam a importância de suas ações. Comandando o time, está Andrômaca de Cítia, conhecida como a guerreira imortal que vem recrutando e protegendo novos membros conforme eles “acidentalmente” surgem no mundo – como Joe e Nicky, soldados do período das Cruzadas, Booker, um combatente napoleônico, e a jovem Nile, que morreu em uma missão no Afeganistão e foi trazida de volta por forças misteriosas.
Enquanto a narrativa de Rucka brinca com questões sobre destino, sua própria adaptação para o serviço de streaming visou expandir a mitologia e acrescentar alguns elementos que contribuíssem para o início de um universo cinematográfico ou uma saga fantasiosa que fizesse jus às HQs – como foi o caso da backstory de Nile e até mesmo a exploração de análises sociais através dos metafóricos arcos narrativos de cada protagonista e coadjuvante. E, conforme o longa-metragem deixa bem claro, ainda há muito a se explorar nesse explosivo panteão, incluindo explicações sobre seus poderes sobre-humanos que são alvo de ganância de símbolos do capitalismo predatório.
Em diversas entrevistas que Rucka concedeu sobre o que traria para a adaptação e o que pretenderia mudar, o público ficou sabendo que o primeiro volume de The Old Guard: Opening Fire foi o principal material de uso para a história – além de algumas inflexões sobre a próxima série de aventuras, Force Multiplied, que deve ser lançada o mais breve possível. Apesar de algumas mudanças e algumas atenuações que deixaram a produção mais didática e relacionável para os espectadores jovens, foi visível que Rucka e Prince-Bythewood já tinham em mente uma construção que premeditasse iterações seguintes – o que nos leva a questionar: o que o futuro aguarda para a Velha Guarda?
Durante o curso do longa-metragem, Andy revela algumas partes mais sombrias de sua vida, como o momento em que perdeu dois de seus companheiros mais velhos – Keane, que foi gravemente ferido em combate e não conseguiu se curar; e Quyhn, acusada de bruxaria ao lado de protagonista e condenada a passar a eternidade trancafiada em um caixão de ferro, no fundo do mar (morrendo e ressuscitando até ser levada à loucura). Andrômaca carregou essa culpa por tempo maior do que acreditaria estar viva, parando de procurá-la por vergonha de não ter conseguido protegê-la. Na breve cena pós-créditos, entretanto, descobrimos que Quyhn escapou de sua perpétua prisão e se reencontrou com um já problemático Booker, afastado do grupo por ter traído a confiança.
A sequência não nos revela muitos detalhes, mas começa a nos guiar em diversos caminhos – sendo o mais óbvio deles um possível desejo de vingança por parte de Quyhn, amargurada pelo abandono, e o início de um novo esquadrão de imortais que irá enfrentar Andrômaca. Porém, para aqueles que conhecem os quadrinhos, as tramas podem ser ainda mais instigantes do que se imagina.
The Old Guard traz algumas menções ao tráfico humano que assola o mundo até hoje, principalmente nos países do Oriente Médio e da Ásia – tanto que uma das primeiras cenas leva Andy e seus guerreiros a uma armadilha arquitetada pelo ingênuo Copley. Nos quadrinhos, isso é retratado de modo bem mais denso: no segundo volume de Opening Fire, os combatentes perseguem um grupo de “escravizadores” que (spoiler) estão ligados a um antigo e presumidamente morto colega e ex-amante de Andrômaca, Noriko; no quarto volume, ela se recorda de um relacionamento que teve com Aquiles, um escravo negro de uma plantação no estado da Virgínia quando a Revolução Americana explodiu – escolhendo lutar do lado dos britânicos em busca de liberdade e, sendo preso e mandado para uma colônia penal na Austrália, cruzou caminho com Andy. Essa parte da história, deixado de lado no longa-metragem, é um belo ornamento a ser trazido para os espectadores em uma possível sequência.
Noriko e Quyhn poderiam unir forças e trabalhar em conjunto para derrotar um inimigo em comum – Andrômaca. Mais do que isso, poderiam financiar projetos de caça aos guerreiros imortais, colocando um obstáculo sem precedentes em seu caminho e transformando suas vidas em uma luta pela sobrevivência.
É interessante e reconfortante imaginar que, para essa primeira investida, Rucka tenha deixado reflexões sobre moral, ética e valores (tradicionalistas ou liberais) de fora para uma apresentação convencional e prática o suficiente para nos deixar querendo mais. Agora, está na hora de que incursões metafísicas alcem voo – sem se esquecer, é óbvio, das cenas de ação de tirar o fôlego.
https://www.youtube.com/watch?v=3I3_j00uvqo
Crítica | The Old Guard - A Imortalidade É uma Faca de Dois Gumes
Em 2017, o autor Greg Rucka e o artista Leandro Fernández ganharam aclame e reconhecimento internacional ao lançarem a primeira iteração da fantástica série de quadrinhos The Old Guard, cuja envolvente narrativa misturava elementos da ficção científica, da fantasia e do drama de ação. Não demoraria muito até que algum estúdio enxergasse a história como passível de adaptação audiovisual – e, poucos meses depois do début dos quadrinhos, a Skydance Media, em parceria com a gigante do streaming Netflix, anunciaram a compra dos direitos intelectuais e que trariam Rucka como o roteirista da releitura fílmica. O resultado sem precedentes chegou ao público em meio a uma complicada pandemia mundial como um escapismo perfeito para se divertir – e para se apaixonar por seus complexos personagens.
Assim como grande parte das HQs da década passada, é comum encontrarmos diversos temas sociais presentes em um intrincadas tramas e arcos de tirar o fôlego. Aqui, Rucka usa de sua própria criação para dar vida a algo mais “didático”, por assim dizer, acompanhado da habilidosa mão da diretora Gina Prince-Bythewood, que sai de sua zona de conforto de A Vida Secreta das Abelhas para mergulhar em um gênero totalmente diferente – e que reflete sua versatilidade e sua competência como realizadora cinematográfica. Ainda que valendo-se de certos convencionalismos (o que não necessariamente é ruim, por assim dizer), cada frame é um espetáculo circense de ação que, por vezes, acaba ofuscando os apelos melodramáticos de seus protagonistas – inclusive quando o enredo se destila de explicações e motivos ocasionais demais para se tornarem palpáveis. No final das contas, os deslizes pouco importam: queremos mais – e queremos logo.
A gira em torno da Guarda Velha, um grupo de soldados imortais que se reuniram através dos séculos e lutam para criar um mundo melhor – por mais difícil que isso seja. Charlize Theron também faz sua volta para o universo da ação heroica ao interpretar a líder Andrômaca de Cítia, uma forte mulher que dialoga diretamente com o mito grego da personagem. Andy, como é conhecida nos dias de hoje, é uma sorrateira combatente que já desistiu de guiar as pessoas para o caminho certo e agora sobrevive através de pequenas ações que julga importante para si mesmo e para o time que comanda. Entretanto, as coisas mudam drasticamente quando ela e sua equipe caem numa armadilha e são expostos para uma maligna corporação que quer usar seus genes para conquistar a vida eterna e negar a própria morte.
Mas isso não é tudo: a chegada de um quinto membro para a desconexa e conturbada família põe em xeque a tentativa de acabar com esse “presente de grego” com o qual foram agraciados sem mais nem menos. Nile (KiKi Layne) é uma soldada estadunidense que foi assassinada por um terrorista islâmico e que voltou à vida, levando Andrômaca e os outros a encontrarem-na para protegê-la e explicar quem são. Felizmente, Nile passou longe do radar dos antagonistas da produção e foi utilizada como o trunfo para o impecável embate final – e emerge como uma futura líder quando a personagem de Theron, que já se esgota de suas energias após milênios “na ativa”, dar adeus a seus companheiros.
Enquanto a delineação dos acontecimentos segue um padrão prático o suficiente para nos manter intrigados e torcer para que os “mocinhos” vençam no final, mas longe da ousadia necessária para transformá-lo em um épico bélico, a química do elenco protagonista é o que fala mais alto. Além de Theron e Layne, temos também a presença de Matthias Schoenaerts como o problemático Booker, que viu seus filhos morrerem um a um durante a Era Napoleônica enquanto permanecia com a mesma idade de sempre; um irreconhecível Marwan Kenzari e o adorável Luca Marinelli como Joe e Nicky, respectivamente – inimigos religiosos que se enfrentaram nas Cruzadas e acabaram se apaixonando; e Harry Melling como o sádico Merrick, um jovem CEO da indústria farmacêutica que representa o pior lado do capitalismo – e que deseja capturar os guerreiros imortais a todo custo.
Entre histórias de amor eternas e perdas inestimáveis, o principal obstáculo enfrentado pelo filme é tentar se transformar em uma obra que abranja o máximo de estilos narrativos e cinematográficos possíveis: temos as nuances das produções de execução entrando em conflito com os ressentidos diálogos humanizados entre os personagens; as inflexões melodramáticas que explicam a frieza com a qual Andrômaca encara vida; e reviravoltas premeditadas por alguns foreshadowings previsíveis, mas estruturados bem o bastante para deixar os fãs satisfeitos. E, em outra medida, Theron rende-se a uma atuação incrível, por mais que roube o holofote de seus colegas, cujo passado é brevemente explanado a encargo de preencher certas lacunas nas cenas.
The Old Guard é aprazível do jeito que precisa ser e até mesmo entrega um cliffhanger que segue os passos dos quadrinhos originais – prometendo uma possível continuação que deve expandir a mitologia criada por Rucka. No geral, é uma diversão muito bem-vinda em tempos de crise que cumpre com todas as exigências de um blockbuster, mesmo tropeçando no caminho.
The Old Guard (Idem – Estados Unidos, 2020)
Direção: Gina Prince-Bythewood
Roteiro: Greg Rucka, baseado nos quadrinhos homônimos de Greg Rucka e Leandro Fernández
Elenco: Charlize Theron, KiKi Layne, Matthias Schoenaerts, Marwan Kenzari, Luca Marinelli, Chiwetel Ejiofor, Harry Melling, Veronica Ngo, Anamaria Marinca, Joey Ansah
Duração: 124 min.
https://www.youtube.com/watch?v=3I3_j00uvqo
Crítica | Artemis Fowl: O Mundo Secreto - Uma Fantasia Sci-Fi Pedante e Bagunçada
Artemis Fowl é uma das sagas jovem-adulto mais populares das duas décadas passadas e colocou Eoin Colfer no topo do mundo – competindo com alguns nomes grandiosos da literatura fantástica, incluindo Stephanie Meyer e J.K. Rowling. Suas delineações misturavam clássicas incursões da mitologia nórdica com inflexões do sci-fi com habilidade impecável e um panteão recheado de potencial para ser explorado por várias e várias iterações (sendo aclamado pela crítica internacional e se tornando um sucesso de vendas ao atravessar gerações de leitores). Em 2020, a obra finalmente saiu dos papéis – dezenove anos depois da Miramax tentar conseguir os direitos intelectuais do enredo – e ganhou uma versão comandado por Kenneth Branagh e supervisionado pelos estúdios Walt Disney. O resultado, infelizmente, foi um desastre completo que colocou o longa na lista de piores do ano (e sem dúvidas dessa nova década que se abre).
Seguindo os passos bastante pragmáticos e formulaicos de qualquer saga adolescente que se preze – incluindo Harry Potter e Jogos Vorazes -, Artemis Fowl: O Mundo Secreto une certos relances artísticos do material original para buscar dar vida a uma história de origem extremamente dinâmica, cujo tiro saiu pela culatra e transformou-se em uma espécie de antiarte abstrata sem pé nem cabeça que não se salva nem pelos efeitos especiais e pela celebração de uma honrável cultura. A trama é centrada no protagonista titular (vivido pelo novato Ferdia Shaw), um jovem de inteligência surpreendente e uma paixão por aprender coisas novas que herdou de seu pai, Artemis Sr. (Colin Farrell), um caçador de recompensas. Apesar da sagacidade invejável, o rapaz utiliza sua arrogância como mecanismo de defesa pela ausência do pai, que passa mais tempo viajando do que com o filho.
As coisas mudam quando o pai simplesmente desaparece, sendo capturado por forças malignas que colocam em xeque o mundo como eles conhecem – e a revelação de um universo escondido recheado de criaturas fantásticas como centauros, gnomos e duendes. O problema é que esse obstáculo simplesmente não está presente no roteiro da adaptação; em vez disso, a narrativa opta por uma mitótica digressão de diversos arcos principais e coadjuvantes, destinando quase dois terços da produção para fazer apresentações desnecessárias e forçar laços e relacionamentos extremamente descartáveis e artificiais – como é o caso do mordomo e assassino Dom Butler (Nonso Anozie) e sua sobrinha, Juliet (Tamara Smart), que se aproximam de Artemis sem qualquer explicação aparente.
Tudo fica ainda mais bagunçado quando somos apresentados a uma subtrama no pior estilo deus ex machina que coloca as personas humanas numa busca para provar a existência da magia e encontrar o Aculos, um objeto poderoso que ninguém sabe o que exatamente faz – nem mesmo depois que os créditos finais aparecem na tela. De outro lado, surge um lendário e milenar panteão subterrâneo habitado e comandado por fadas poderosas e versadas na proteção dos inocentes e na manutenção da lei que também estão em busca do artefato supracitado e que, de alguma forma inexplicável, descobrem que ele se esconde nas maciças paredes da mansão Fowl. Eventualmente, ambas as esferas inimigas colidem em uma ridícula batalha pela supremacia de algo impalpável, incoerente e sem catarse cênica aparente.
É notável como Branagh chafurda desesperadamente para aproveitar um segmento que seja para não desperdiçar suas investidas e continuar uma carreira de rendimento sólido. Afinal, o ator começou sua carreira de cineasta ainda nos anos 1990, abraçando a extensa produção intelectual de William Shakespeare e entregando obras-primas que até hoje são utilizados para estudo dramatúrgico e técnico. Ao migrar para a esfera mainstream, Branagh encabeçou projetos como o aclamado Cinderela e o interessante, ainda que oscilante remake de Assassinato no Expresso do Oriente – o que continuou cultivando sua carreira atrás das câmeras. Quando observamos pacientemente o resultado final dessa mais nova aventura nos cinemas, é assustador acreditar que é ele quem está tentando lançar uma nova franquia de sucesso. E, levando em conta a quantidade de problemas que a releitura audiovisual passou nos últimos meses, seria melhor que uma segunda e uma terceira partes analisassem e lapidassem mais o filme.
O carisma inexistente de certos personagens é outro agravante para a gradual repelência por parte dos espectadores: Artemis cruza caminho com uma fada atrapalhada chamada Holly (Lara McDonnell) que quer provar seu valor tanto para o pai desaparecido quanto para sua superior, a rígida e inexpressiva Julius Root (Judi Dench em mais um projeto meia-boca depois do recente Cats). As duas servem, basicamente, para nada no tocante às idióticas reviravoltas da trama e até mesmo para o desenlace e as inclinações a clássicos de ficção científica dos últimos cinquenta anos – isso sem mencionar o covarde flerte com inversões temporais e explorações multidimensionais que pecam em não resgatar a essência dos livros.
Em uma composição em ruínas na qual nem o CGI consegue salvar – nem mesmo a presença cômica de Josh Gad como o anão supercrescido Mulch Diggums, Artemis Fowl é um fracasso completo que não se salva nem pelo mais escondido dos pormenores – com exceção de uma paisagem que cautelosamente não invade o panfletarismo mercadológico.
Artemis Fowl: O Mundo Secreto (Artemis Fowl – Estados Unidos, 2020)
Direção: Kenneth Branagh
Roteiro: Connor McPherson, Hamish McColl, baseado no romance de Eoin Colfer
Elenco: Ferdia Shaw, Lara McDonnell, Josh Gad, Judi Dench, Tamara Smart, Nonso Anozie, Colin Farrell
Duração: 95 min.
https://www.youtube.com/watch?v=fl2r3Fwxz_o
Crítica | Festival Eurovision da Canção - Uma Celebração Bonitinha, mas Ordinária
O Festival Eurovision é uma das competições mais famosas dos últimos sessenta anos e, realizado na Europa, reúne diversos talentos em território ocidental e oriental que lutam para conquistar o primeiro lugar do pódio. Ao longo de sua história, diversas lendas da música já passaram pelo evento, incluindo Conchita Wurst, Salvador Sobral e Netta Barzilai – explorando as culturas nacionais e entregando construções sonoras que destilam inúmeros estilos conhecidos, convergindo-os para uma explosão dançante e regada a sintetizadores que nos convida para uma experiência única. Agora, em 2020, Will Ferrell e a Netflix uniram forças para dar vida a Festival Eurivision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars, uma comédia musical com o coração no lugar certo, mas que se vale de muitas fórmulas para dar vida à sua narrativa principal.
Na trama, Ferrell e Rachel McAdams dão vida ao casal principal titular, amigos que, desde criança, são apaixonados pelo festival em questão, quando assistiram o icônico grupo ABBA se apresentando (e levando para casa o grande prêmio). Os dois passaram a vida compondo as músicas mais insanas e bizarras possíveis para fazer parte da concorrência, mas sempre foram diminuídos pelos habitantes da pequena Húsavík, na Islândia, e principalmente por seus respectivos pais. Como obra do destino – que é explicada num adorável meneio para a cultura celta que se apoderou do país na Idade Média -, eles são escalados para participar da competição local como “tapa-buracos”, tornando-se os mais fracos entre os competidores. Entretanto, depois que uma explosão infeliz mata a melhor das artistas (Demi Lovato em uma brevíssima aparição como Katiana), cabe a eles restaurar a glória de sua terra natal.
Conhecendo a extensa carreira de Ferrell, que aqui entra como roteirista e produtor executivo também, era de se esperar que a comédia pastelão fosse o principal mote. Porém, no geral, ele parece sem inspiração para alçar voo para além das grades que o prendem, e resolve se escorar com força em convencionalismos baratos que só são salvos pelos números musicais, pelo incrível design de produção e por sua química com McAdams. Afinal, cada ato da trama, que estende-se desnecessariamente por duas horas, é previsível, seja o arco romântico fustigado por partes terceiras que não têm nada a ver com qualquer coisa, seja a autolibertação e o amadurecimento promovido pelas mensagens clichês. Mesmo assim, é impossível não ficar preso no enredo e querer saber o final dessa conturbada jornada.
É interessante ver David Dobkin voltando para a direção de comédias, visto que encontrou uma sólida recepção da crítica e do público com Penetras Bons de Bico. Visto que não repetiu o mesmo sucesso com o drama criminal O Juiz, era apenas questão de tempo para retornasse às raízes – mas, assim como seus outros colegas, não parece aproveitar o colorido e transbordante potencial do material com o qual trabalho. Na atmosfera arquitetada, o conhecido jogo do campo-contracampo é o suficiente para diminuir a grandiosidade do cenário – seja na Islândia, seja na Escócia – e transformá-lo em uma danceteria qualquer que, por alguma razão, se mescla com as alternativas metalinguísticas dos videoclipes (o que não funciona, por mais que suas intenções sejam as melhores).
O desenrolar da história é premeditado, ainda que tente fazer inflexões generosas e ousadas para seus personagens – com alguns foreshadowings óbvios demais para serem críveis ou surpreendentes. Felizmente, as homenagens que Dobkin e seu time artístico imprimem no longa-metragem são palpáveis o bastante para não transformá-lo em uma ridicularização dessa competição tão importante para a esfera fonográfica, deixando claro que as construções irreverentes dos personagens (quando existem) se restringem apenas a eles mesmos, e não ao festival. No final das contas, o roteiro mergulha de cabeça num final feliz “às avessas”, que não entrega o primeiro lugar à dupla protagonista, mas os transforma em heróis.
O grande sucesso de Festival Eurovision da Canção é, sem dúvida, sua impecável trilha sonora. Trazendo DJ Tiësto para fazer um tributo ao exorbitante synth-house noventista com “Double Trouble” – cujas ambas versões são de tirar o fôlego – e a incrível My Mariannen para comandar grande parte das tracks, misturando seus vocais com os de McAdams, cada peça instrumental é um presente para os fãs do festival e para quem é apaixonado pela subversiva arte europeia. Em meio a uma bagunçada narrativa, até mesmo o song-a-long que traz Cher, Madonna e David Guetta e a rendição emocionante de “Húsavík” (a balada que todos precisávamos) servem como motivo para assistirmos ao filme até os momentos finais.
No geral, a nova comédia musical da Netflix cumpre em partes o que veio nos prometendo desde o lançamento do material promocional – incluindo o divertido vídeo de “Volcano Man”. Deixando de lado uma preocupação maior com o enredo e não explorando todo o potencial, o visual camp e kitsch e as canções podem até agradar; mas seria melhor assistir ao festival original para se deliciar com o que ele tem para oferecer.
Festival Eurovision da Canção: A Saga de Sigrit e Lars (Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga – Estados Unidos, 2020)
Direção: David Dobkin
Roteiro: Andrew Steele, Will Ferrell
Elenco: Will Ferrell, Rachel McAdams, Pierce Brosnan, Dan Stevens, Demi Lovato, Melissanthi Mahut
Duração: 123 min.
https://www.youtube.com/watch?v=jtl5wM5dMt4
Crítica | Revelação - Sobre a Representatividade Trans na Mídia
A história do cinema e da televisão sempre esteve intrinsecamente ligada à transexualidade – quer você saiba ou não. E, ainda que essa parcela da comunidade LGBTQ+ tenha um peso inegável para a própria continuidade da arte fílmica, sendo representada desde sempre em narrativas clássicas e que até hoje são utilizadas em diversas academias para explorar as nuances da esfera do entretenimento, ela começou a ter um protagonismo real e livre dos estereótipos de identidade de gênero e orientação sexual há pouquíssimo tempo – cinco anos, no máximo. Revelação, o mais novo documentário original da Netflix, resolve explorar exatamente essas perguntas: como o medo do “diferente” e daquilo que está fora do padrão social da cisheteronormatividade é exibida de forma exótica, passível de uma espetacularização ridícula que está longe de ser encarada com respeito (até hoje, diga-se de passagem).
O diretor Sam Feder, continuando sua onda de aclamadas obras e de incursões acerca de questões de gênero (quase uma década e meia mais tarde do premiado Boy I Am), reúne um time extenso de celebridades para analisar a representatividade trans na mídia, analisando os primórdios da arte cinematográfica até a revolução estética da contemporaneidade – contando com nomes lendários que incluem Lilly Wachowski, Laverne Cox, Jamie Clayton, Angelica Ross e tantas outras personalidades que lutaram para conseguir o espaço que têm hoje e que têm ciência de que as conquistas precisam e devem continuar.
Feder trabalha lado a lado com a montadora Stacy Goldate e, unindo seus esforços em um longa-metragem que poderia se estender por horas a fio com críticas ao preconceituoso e normatizado sistema artístico de Hollywood, resolve filtras as premissas principais para um resumo da existência de personagens e de tramas que fujam do convencional. Em outras palavras, o testemunho desses artistas serve de base para que percebamos a necessidade de mudança – e o entendimento de que transexuais não são objetos para que cineastas cisgêneros os tratem como bem entendam (normalmente, como motivo de piada ou como vítimas arruinadas que dão adeus no final dos filmes e séries).
Ao longo de cem duros e impactantes minutos, nota-se um equilíbrio aplaudível entre tensão e comicidade, como forma de oferecer espectros complexos aos rostos que aprendemos a adorar. Clayton, tendo vivido a hacker Nomi na série Sense8 (que foi criada pelas irmãs Wachowski), fala com paixão sobre o fato de ter dado vida a uma persona que não era vista apenas por sua identidade trans, mas sim por ser uma mulher forte, cujos traumas passados e cujos obstáculos contribuíram para que ela se tornasse uma das criações mais complexas da televisão contemporânea – e parte de um dos casais mais adorados da década passada; Cox, recusando-se a acreditar que sua carreira seria baseada em piadas, foi convidada para ser uma das protagonistas da dramédia Orange Is the New Black (cuja performance lhe rendeu uma indicação ao Emmy Award de Melhor Atriz Coadjuvante).
Viajando no tempo, existe uma grande diferença de retrato entre o obscuro período que se estendeu entre os anos 1970 e o final da década de 2000 e a expansiva representatividade das minorias sociais na atualidade – com ênfase especial nos LGBTQ+. Nota-se que, à medida que cresciam, os entrevistados se viam retratados como escapes cômicos estereotipados que não levavam em conta suas próprias identidades de gênero e que levavam em conta apenas o órgão sexual com o qual haviam nascido (como é o caso do condenável Ace Ventura ou dos problemáticos episódios de CSI: NY ou Nip/Tuck); ou então como condicionados à sua transição (vide Grey’s Anatomy e E.R.), que passam informações falsas e romantizadas sobre o uso de hormônios para mudança de sexo; ou até mesmo como psicopatas doentios (O Silêncio dos Inocentes).
O fato é que o bode expiatório da esfera fílmica sempre se voltou às minorias e nunca deixou de expor os transexuais como aberrações da natureza ou pessoas passivas que sempre precisariam da complexada aparição do “cavaleiro branco” para salvá-las Enquanto há certa conquista com obras como Clube de Compras Dallas e A Garota Dinamarquesa, a construção imagética e narrativa sempre se rende às fórmulas, apagando a história como realmente aconteceu ou auxiliando um problemático personagem cishétero e reencontrar seu rumo – e, assim, podendo ser descartado. Em um dos comentário, o ativista e apresentado Zeke Smith comenta sobre a incapacidade prática de unir em um mesmo lugar uma mulher, um trans e um negro – como é o caso de Meninos Não Choram, que suprimi a existência do melhor amigo de Brandon Teena, Phillip Devine, ou então de Paris Is Burning, um dos maiores documentários sobre a comunidade artística trans-negra de Nova York dos anos 1970 e 1980, que não beneficiou em nada as incríveis personalidades apresentadas.
Eventualmente, Feder deixa claro que costuma-se atribuir àqueles que estão em voga no cenário mainstream criações que, na verdade, datam de muito antes – por exemplo, o fato da expressão artística vogue ser relacionada à Madonna, sendo que foi criada quinze anos antes dela lançar seu primeiro álbum. Em comparação, é notável a admiração de nomes como Mj Rodriguez, Jazzmun e Sandra Caldwell em ver obras como Pose ganhar reconhecimento internacional quando pensavam que isso não seria possível.
Revelação diz com todas as palavras que a representatividade trans no cinema e na televisão teve seus avanços, mas segue a passos curtos ao não contemplar toda a vivência dos membros dessa comunidade. A luta ainda continua – e, enquanto houver um extermínio e um apagamento em massa das pessoas trans nas maiores esferas da sociedade, ela continuará com força descomunal.
Revelação (Disclosure– Estados Unidos, 2020)
Direção: Sam Feder
Roteiro: Sam Feder
Elenco: Laverne Cox, Susan Stryker, Alexandra Billings, Jamie Clayton, Chaz Bono, Alexandra Grey, Yance Ford, Trace Lysette, Jazzmun, Mj Rodriguez, Angelica Ross, Jen Richards, Elliot Fletcher, Brian Michael Smith, Sandra Caldwell, Candis Cayne, Zackary Drucker, Lilly Wachowski, Ser Anzoategui, Zeke Smith, Leo Sheng
Duração: 100 min.
https://www.youtube.com/watch?v=JebTIMf-vXk
Crítica | Feel the Beat - Uma Rom-Com Dançante sem Ato Principal
A história você já conhece: uma jovem moça de uma cidade do interior resolve sair de casa e deixar o passado para trás enquanto trilha um caminho conturbado (e não muito convidativo) para alcançar os sonhos e ter tudo o que sempre quis. Entretanto, depois de perceber que as coisas não são tão simples assim – e ter perdido uma grande chance que alavancaria sua carreira -, ela decide voltar para casa e se reerguer do zero. É basicamente sobre isso que Feel the Beat, a mais recente rom-com clichê do extenso catálogo da Netflix fala sobre; protagonizado por Sofia Carson, que fez seu grande début na trilogia fantástica Descendentes, do Disney Channel, a conhecida narrativa já foi explorada à exaustão nas últimas décadas – incluindo Hannah Montana – O Filme e Doce Lar. Então, o que de fato a produção em questão traria de original para os espectadores?
De fato, não há nada de revolucionário em uma obra de baixo orçamento que se valha tanto das fórmulas do gênero. A ideia aqui é a delineação de um enredo que permaneça na zona de conforto e que, valendo-se de praticamente todos os convencionalismos que se possa pensar sobre comédias românticas, é a pedida certa para se ver em família num período que clama por qualquer construção escapista. Não é por coincidência que a trama principal traga uma ambiciosa dançarina chamada April (Carson) para o centro dos holofotes: tentando fazer sua experiência valer ao máximo na gloriosa e controversa cidade de Nova York. Esquecendo-se de suas raízes de Wisconsin e mantendo um breve contato com o pai, ela se prepara arduamente para uma audição e vê seus sonhos sendo destruídos – e sua chance de brilhar na Broadway descartada como um copo plástico.
Sem ter como pagar o aluguel e sem quaisquer trabalhos à vista, ela recorre à casa que outrora deixou para trás e faz um sutil retorno para tudo que sempre quis esquecer. E, levando em conta que cidades pequenas são sinônimo de comunidade, sua volta chama a atenção de várias pessoas – incluindo de sua antiga professora de ballet, Barb (Donna Lynne Champlin), que a convida para uma aula magna na academia de dança New Hope. É aqui que o conflito de gerações e de ideologias começa a ser arquitetado: April, sendo convidada para ensinar as garotas e levá-las para a competição juvenil nacional, não tem um pingo de tato com as crianças e passa a imagem de megera – que, querendo ou não, veio construindo para não ser devorada por suas concorrentes no show business. Porém, ela se esquece que já teve aquela idade e que, apesar de ter se tornado uma impecável performer, ainda é igual a elas.
À medida que a história se desenrola, percebe-se que a diretora Elissa Down opta bastante pela previsibilidade como forma de talvez fornecer uma certa solidez em uma época marcada pela falta de segurança – o que funciona, em certa parte, visto que cria-se algumas sequências inteligentes e engraçadas que servem para colocar em xeque as fortes personalidades protagonistas. Explorando temas como amor adolescente e amadurecimento, principalmente quando acrescenta ao longa-metragem Nick (Wolfgang Novogratz), ex-namorado de April, e Sarah (Eva Hauge), que a enxergava como uma segunda mãe, Down afasta-se dos dramas que pincelaram sua filmografia predecessora e entrega exatamente o que esperamos.
Nesse ponto, o trio protagonista está formado – mas não é tudo. No espectro talhado das tragicomédias ascendentes dos anos 1990, é necessário que a heroína (ou anti-heroína, nesse caso), esteja acompanhada de um braço-direito que servirá como extensão de seu pensamento ou estará ali para ajudá-la a superar adversidades. Deco (Brandon Kyle Goodman) atinge todas as exigências necessárias como o melhor e talvez único amigo de April, um aspirante a estilista de moda que é recrutado para ajudar na confecção das vestimentas das meninas. Num espectro mais além, temos o suprassumo intocável alvo de suspiros da personagem principal: Welly Wong (Rex Lee), diretor de teatro, o homem que ela tenta impressionar a todo custo (e agora, com o auxílio de um time de jovens dançarinas) para se tornar uma estrela.
Cada arco é imprimido e delineado para não falar mais alto do que consegue: em outras palavras, não espere encontrar qualquer complexidade nas personas que pululam em cena ao longo de quase duas horas. De um lado, há a inocência de garotas que desejam, mais que tudo, expressar-se pela dança e não serem encaradas como perdedoras; de outro, a culpabilidade frustrada de alguém que foi derrotada pela realidade e, por isso mesmo, transforma em seu mote de vida a premissa “ter os dois pés no chão o tempo todo” – não pensando muito para dar um choque de realidade em suas otimistas alunas. Eventualmente, esse linear e unidimensional jogo toma outro rumo, caminhando para um final feliz fabulesco e que, apesar de não dizer muitas coisas, é a única pedida possível.
A partir do terceiro ato, ‘Feel the Beat’ rende-se a um número desnecessariamente grande de reviravoltas forçadas, manchando o que poderia ter se mantido aos planos originais. Unindo-as em uma resolução bastante premeditada desde os minutos iniciais, o filme é o mais do mesmo quando o comparamos ao restante das iterações da plataforma de streaming – e, por isso mesmo, nós escolheremos assisti-la de cabo a rabo.
Feel the Beat (Idem – Estados Unidos, 2020)
Direção: Elissa Down
Roteiro: Susan Cartsonis
Elenco: Sofia Carson, Wolfgang Novogratz, Donna Lynne Champlin, Enrico Colantoni, Rex Lee, Brandon Kyle Goodman, Eva Hauge
Duração: 155 min.
https://www.youtube.com/watch?v=hrzrcegbBEc
Crítica | Love, Victor: 1 ª Temporada - Sobre a Praticidade das Fórmulas
Enquanto vários acreditavam que o gênero da rom-com não conseguiria se reinventar, o longa-metragem Com Amor, Simon veio para cumprir o que prometia e com uma subversão dos dramas coming-of-age LGBTQ+ que tanto povoaram o cinema nos últimos anos. A mistura quase perfeita e emocionante baseada no romance homônimo de Becky Albertalli tornou-se um sucesso sem precedentes que, apesar da espetacularização do romance gay, nos envolveu do começo ao fim. E, seguindo os passos de tantas produções de sucesso comercial e crítico, o filme deu origem a uma série derivada intitulada Love, Victor que, apesar de não chegar no mesmo patamar que a obra original, também entrega o que propõe ao longo de breves dez episódios.
Puxando a ideia predecessora, a trama gira em torno de Victor Salazar (Michael Cimino), um jovem prestes a fazer dezesseis anos que se muda do conservador e tradicionalista estado do Texas para a cidade de Atlanta, porque sua família resolveu recomeçar a vida do zero após alguns problemas que não ficam claros nos primeiros episódios. E, com o auge da adolescência, o protagonista percebe que sua descoberta sexual está à flor da pele, lutando contra sua orientação e tentando se apaixonar por alguma menina de sua nova escola. Eventualmente, Victor vai contra quem realmente é se envolve com Mia Brooks (Rachel Naomi Hilson), a garota mais popular e legal do colégio, chamando a atenção dos outros alunos – e daqueles que querem apenas sua desgraça. O problema insurge quando ele cria laços de amizade muito fortes com o adorável e sedutor Benji (George Sear), colocando em xeque sua normatividade autoimposta.
Logo de cara, percebe-se que a série criada por Isaac Aptaker e Elizabeth Berger se restringe às fórmulas das comédias dramáticas românticas – o que não é um problema, visto que esse é a premissa da qual se valem. Desde o conflito interno até as externalidades sociais (que envolvem seu núcleo familiar de criação religiosa e uma escola que se diz fora dos padrões, apesar de não ser), Victor é o centro de uma história que já sabemos como irá terminar. Ele tenta ao máximo aproximar-se fisicamente de Mia, provando para si mesmo que é um “garoto normal”, mas em segredo troca mensagens com Simon (Nick Robinson reprisando seu papel do longa através de voiceovers e uma breve aparição) contando sobre seu cotidiano e como as coisas não vêm saindo como o esperado.
Diferente de outras produções contemporâneas do gênero, a estética visual se afasta-se da costumeira sobriedade azulada e volta-se para uma vibrante construção artística que reflete a cultura latina dos personagens principais. Mais do que isso, se distancia de uma presença majoritariamente branca para dar voz a outras minorias que, apesar de convergirem para uma celebração da diversidade, eventualmente rendem-se a diálogos convencionais o bastante para não sair da zona de conforto, mas não coeso o suficiente para indicar uma exploração além do que o público está acostumado.
As dinâmicas entre personagens seguem uma linha bastante e que não diverge muito da solidez e praticidade das obras adolescentes. O tímido e recém-chegado Victor é recebido de braço abertos pela altiva personalidade de Felix (Anthony Turpel), que o apresenta ao Creekwood High e o avisa sobre em quem ele deve confiar ou não; pouco depois, entra em conflito com o astro do basquete local, Andrew (Mason Gooding), um jogador passivo-agressivo que utiliza o humor como defesa e como ataque ao mesmo tempo, afastando todos ao seu redor; quando esses dois mundos diferentes colidem, o atrito causado é recheado de potencial, por mais previsível que seja. E, no topo de tudo isso, temos também a presença de alguns atores cuja essência é desperdiçada sem qualquer explicação, como a professora de educação sexual, Srta. Thomas (Ali Wong), e a vice-diretora, Srta. Albright (Natasha Rothwell).
A cereja do bolo vem com a habilidade dos criadores em usar todos os pontos automaticamente reconhecíveis das rom-coms em favor próprio. A ambiência convidativa passa longe do espectro pedante de construções audiovisuais que querem ser mais do que conseguem, deixando suas claras mensagens tomarem conta das tramas principais e secundárias. De qualquer forma, o escapismo promovido pelo show é uma amálgama de paradigmas sondados à exaustão entre os anos 1990 e 2000, talvez numa tentativa oscilante mimética de revivê-los em uma apresentação moderna. Desde a patricinha da escola até a rebelde sem causa, cada estereótipo técnico está presente no programa.
Love, Victor é um presente bem-vindo em tempos complicados como os de hoje. Permitindo ser tão pura, mesmo que não tão coerente, quanto a que a precedeu, a obra é uma ótima opção para se devorar nos próximos dias.
Love, Victor (Idem, EUA – 2020)
Criado por: Isaac Aptaker, Elizabeth Berger
Elenco: Michael Cimino, George Sear, Ana Ortiz, James Martinez, Isabella Ferreira, Mateo Fernandez, Rachel Naomi Hilson, Bebe Wood, Anthony Turpel, Mason Gooding
Emissora: Hulu
Episódios: 10
Gênero: Comédia romântica, Drama
Duração: 30 min. aproximadamente
https://www.youtube.com/watch?v=uh-IaEaEdE0
Crítica | Curon: 1ª Temporada - Um Presente Inesperado da Netflix
A mitologia acerca dos doppelgängers (ou duplos, ou sósias, como também são conhecidos) data de vários séculos atrás. A terminologia nórdica encara o duplo como uma cópia de uma pessoa que, segundo o dramaturgo Steinberg, insurge como presságio de morte ou de mau agouro. Não é surpresa que as lendas foram incorporadas a diversos filmes de terror e de ficção científica, desconstruindo os conceitos maniqueístas do sobrenatural para um enfrentamento quase moral dos nossos piores medos – ou do nosso pior lado, que nos assombra constantemente. Ao longo da história da literatura e do cinema, essas personas, que são tratadas como alter-egos sombrios de uma psique atribulada, transformaram-se em um sub-gênero recheado de potencial, aparecendo em obras como O Retrato de Dorian Gray, The Outsider, How I Met Your Mother e, mais recentemente, no aclamado thriller Nós, de Jordan Peele.
Agora, chegou a vez da Netflix investir nesse tipo de narrativa com a produção italiana Curon. Com apenas sete episódios, a série é uma ode ao suspense dramático e gira em torno da cidade titular, palco de inúmeras tragédias sempre relacionadas à família Raina. Outrora dona do pitoresco vilarejo que fazia fronteira com a Áustria em plena II Guerra Mundial (quase transformando-se em uma neo-colônia alemã), a família resolveu inundá-la como forma de enterrar segredos obscuros - algo que veio a ser cobrado décadas depois em um enredo épico de ascensão e tragédia. Agora, Anna (Valeria Bilello) resolveu retornar de sua vida na estonteante Milão para Curon, para tentar recuperar o tempo perdido com um pai debilitado (interpretado por Luca Lionello) e um passado traumático que envolve a morte da mãe.
Por mais formulaica que essa atmosfera pareça – ainda mais levando em conta a repetitiva preferência da plataforma de streaming pela sóbria fotografia azulada (típica de produções como Dark, The Rain e The Witcher -, o quarteto idealizador deixa que a própria série beba desses convencionalismos narrativos e transfira o foco para um grupo de jovens que lida com uma herança arrepiante, uma maldição que vem se estendendo desde sempre na misteriosa cidade. É a partir daí que o drama adolescente ganha forma interessante e transbordando com energia – a qual é canalizada para atuações irretocáveis e uma tensão crescente que serve de base para sequências de tirar o fôlego. Tudo isso comandando pelos diretores Fabio Mollo e Lyda Patitucci e pela dupla de protagonistas Mauro e Daria, encarnados por Federico Russo e Margherita Morchio.
Arquitetando uma mitologia própria, as sutis nuances são elevadas a um patamar elegíaco – ainda mais levando em conta que o principal vilão da história é a torre do relógio que se posta isolada no centro de um lago. Essa criatura imóvel com ares lovecraftianos é o espectro sobrenatural necessário para que o público comprasse o projeto, além de reger os relacionamentos conturbados entre os personagens. De um lado, os gêmeos Mauro e Daria unem-se para sobreviver ao último ano do colégio, sendo confrontados pela reputação controversa de seus antepassados e por suas personalidades contradizentes à campesina e tradicionalista (para não dizer retrógrada) comunidade lacustre; do outro, temos o conflito sexual de Micki (Juju Di Domenico), a rebeldia sem fim de seu irmão, Giulio (Giulio Brizzi), e ao tóxico relacionamento de seus pais. Ambos os diferentes mundos entram em rota de colisão em inesperados eventos – aumentando a complexidade de cada batida.
À parte de uma imagética bem pensada, mesmo que já tenha sido utilizada em outras produções audiovisuais, e de uma premissa interessante, o grande problema da primeira temporada é sua identidade. Apesar do número sólido de protagonistas, as múltiplas tramas destinadas a cada um deles não têm espaço e tempo suficiente para dizerem tudo o que precisam; algumas escolhas cênicas também parecem fragmentadas demais - como é o caso da montagem paralela, que destoa em certos capítulos quando procura promover um dinamismo maior (coisa que poderia ser destinada apenas à intempestiva trilha sonora). No final das contas, cabe à excelência da química entre os atores e atrizes ofuscar, dentro do que é cabível, esses amadorismos.
Enquanto a série não pensa duas vezes antes de transformar o suspense em um thriller psicológico movido à laços familiares e a segredos que vão sendo desenterrados pouco a pouco, a transmissão mítica ou acaba ficando de lado, ou é inflexionado de modo diligente e superficial. Felizmente, numa perspectiva inicial, a primeira temporada ergue-se com maestria forte o bastante para nos manter vidrados do começo ao fim – ainda que certas incursões oscilem por falta de aproveitamento.
No geral, Curon é uma surpresa agradável que vinha sendo cultivada desde o primeiro trailer – um dos melhores do ano, devo dizer. Mesmo que certas expectativas tenham sido diminuídas à medida que os episódios chegavam ao fim, o saldo positivo e o desejo de mais temporadas (com explorações mais profundas do que as apresentadas) é o principal motivo de querermos revisitá-la várias vezes à procura de pistas e pontos perdidos.
Curon (Idem, Itália – 2020)
Criado por: Fabio Mollo, Lyda Patitucci
Elenco: Federico Russo, Juju Di Domenico, Giulio Brizzi, Marghertia Morchio, Luca Lionello, Valeria Bilello
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Drama, Suspense
Duração: 50 min. aproximadamente
https://www.youtube.com/watch?v=5IgdyeF3a60
Crítica | Destacamento Blood - Spike Lee e as Tragédias Raciais
Spike Lee é um lendário cineasta conhecido por filmes extremamente necessários para o entendimento político da história – ainda mais no tocante às questões raciais. Ao longo de sua carreira, Lee entregou obras-primas cinematográficas, sendo última o irretocável Infiltrado na Klan, subestimado nas premiações em vista de um conservadorismo branco que, mesmo no século XXI, continuam a acontecer. Mais do que isso, o diretor sempre se mostrou pronto para denunciar injustiças sociais, usando sua influente voz para se posicionar e nunca se importando com as consequências (motivo pelo qual nutro de um crescente respeito para seu trabalho). E, em 2020, em meio a um retorno à barbaridade de supremacistas, traduzidas nos últimos acontecimentos que envolveram o brutal assassinato de George Floyd por um policial branco, ele lançou um dos melhores e mais importantes longas-metragens do ano: o visceral Destacamento Blood.
Desenrolando-se ao longo de duas horas e meia de um incisivo ensaio antropológico e sociológico, a produção, lançada na Netflix em pleno Dia dos Namorados, não deixa que nenhuma de suas sequências seja colocada em vão ou de modo fragmentado; através de uma direção que flerta com o estilo documentário e que revisita as consequências da infame Guerra do Vietnã e do neoimperialismo promovido pelos Estados Unidos (e mantido pela figura inescrupulosa de Donald Trump), cada investida é parte de algo muito maior, utilizando símbolos próprios da luta de classes embebidos em cada personagem. No geral, a narrativa gira em torno de um grupo de quatro ex-veteranos de guerra que retornam para o território vietnamita para reaverem o corpo de um colega morto em combate – e quase 17 milhões de dólares em barras de ouro para a causa preta.
Trazendo peças documentais chocantes e arrepiantes, a obra é uma dramatização trágica e quase shakespeariana para a carreira de Lee. Divergindo da mistura de gêneros que explorou anteriormente, o cineasta prefere nos bombardear com uma série de monólogos intimistas e denunciadores, fugindo do escapismo melodramático para uma engrenagem que ultrapassa o nível social e atinge o político com força descomunal. É a partir daí que somos apresentados ao apaixonante grupo formado por Otis (Clarke Peters), soldado-médico que porta-se como um líder nato; o irreverente Eddie (Norm Lewis), que prefere esquecer de sua vida em combate para seguir em frente; o desbocado e astuto Melvin (Isiah Whitlock Jr.); e Paul (Delroy Lindo), um dos personagens mais complexos e controversos da indústria audiovisual dos últimos anos.
Apesar de toda a trama sempre se voltar para a recuperação do corpo de Norman (Chadwick Boseman em uma fantástica atuação em flashbacks), fica logo claro que o protagonista é, essencialmente, Paul. Do começo ao fim, o instigante roteiro também supervisionado por Lee não deixa claro quais são suas intenções e o motivo de sua persona ser tão circinal: fica claro que sua Síndrome do Estresse Pós-Traumático é o motivo por ele desejar com tanto afinco se aventurar nas perigosas selvas vietnamitas, enfrentando pessoas tão assustadas quanto que foram pintadas de “inimigos” por uma sociedade que nem ao mesmo lutou suas próprias batalhas, enviando os descendentes de Jamestown, Virgínia para a guerra. Mas isso não é tudo: Paul deseja enfrentar seus demônios interiores e encontrar fechamento quanto a tudo que aconteceu (em uma reviravolta chocante que não se mostra até o terceiro ato).
Porém, o ex-soldado não é retratado como um herói. Tendo como guias seus companheiros bélicos, ele sofre ao superar a morte da esposa, descontando sua frustração e seu luto no filho David (Jonathan Majors), que tenta ao máximo se reconectar com o pai. Além disso, ele parece sofrer de uma espécie de distúrbio simpático ao ter votado em um governo racista, parecendo nutrir de uma “amizade” inexplicável por seus próprios agressores (Lee até mesmo faz uma sagaz piada no primeiro ato com essa incabível ideologia). Entre inúmeros erros e um complexo de salvador que fala mais alto que a própria segurança, Paul eventualmente encontra o que procura e se vê pronto para ir de um jeito glorioso: defendendo o que sempre acreditou em um discurso metalinguístico aplaudível.
Afastando-se de quaisquer métodos formulaicos e panfletários – como já foi visto incansavelmente em dramas de guerra repetitivos e bastante romantizados -, Lee é a peça central de um complicado jogo de explanação e de denúncia, mantendo-se fiel a uma identidade estética que tangencia a perfeição cinematográfica e acrescenta um novo capítulo à sua filmografia. O diretor se vale de planos-sequências e o campo-contracampo tradicional da esfera cinematográfica, distorcendo nossas expectativas em arcos flutuantes e ambíguos – mesmo que se valha de certas previsibilidades. Porém, os pontuais deslizes, que se estendem para uma ambígua e quase pedante trilha sonora, não têm voz frente à grandiosidade desse ensaio crítico.
Destacamento Blood é um soco na boca do estômago que, assim como tantas atrocidades que vemos com constância mais assustadora que o normal na mídia, não nos dá tempo para respirar antes do próximo golpe. Lee novamente prova que é um realizador com urgência imprescindível para os dias de hoje com uma joia deliberada e necessariamente violenta.
Destacamento Blood (Da 5 Bloods – Estados Unidos, 2020)
Direção: Spike Lee
Roteiro: Spike Lee, Danny Bilson, Paul De Meo, Kevin Willmott
Elenco: Delroy Lindo, Jonathan Majors, Clarke Peters, Norm Lewis, Isiah Whitlock Jr., Mélanie Thierry, Paul Walter Hauser, Jasper Pääkkönen, Jean Reno, Chadwick Boseman
Duração: 155 min.
https://www.youtube.com/watch?v=03aoq9yzI9c
Crítica | A Vastidão da Noite - Um Thriller Oscilante sobre Alienígenas
Ao longo da História, diversas narrativas míticas sobre os mistérios do espaço insurgiram em praticamente todas as culturas: fosse com os deuses astronautas dos impérios latino-americanos, fosse com a nebulosa Área 51 localizadas nos Estados Unidos, inflexões sobre a existência de vida fora do planeta nunca deixaram de povoar a imaginação das pessoas – não é surpresa que inúmeros dramas apocalípticos e sci-fi aventurescos tenham caído no gosto popular e colocado em xeque o futuro da raça humana várias e várias vezes (aqui, posso citar o subestimado Guerra dos Mundos, o complexado Independence Day e o irreverente ‘Marte Ataca!’). Agora, chegou a vez da crescente Amazon Prime nos entregar uma versão dessas tramas mirabolantes com o intimista e surreal A Vastidão da Noite – que ganha mais pontos por sua estética do que pelo enredo em si.
Logo de cara, nos deparamos com o primeiro deslize da obra: sua lentidão. Apesar de apresentar com profundidade maior que o necessário os protagonistas Everett (Jake Horowitz), um conhecido radialista e faz-tudo da pequena cidade de Cayuga, Novo México, e Fay Crocker (Sierra McCormick), uma jovem de dezesseis anos que parece viver na sombra de seu amigo (se é que podemos chamá-lo disso), o primeiro ato do filme estende-se em andanças sem rumo pelas ruas desertas que cerceiam a escola local. Ainda que Andrew Patterson faça sua estreia diretorial com solidez indiscutível, mostrando seu apreço constante por derradeiros planos sequências e um flerte estético com as tendências expressionistas da contemporaneidade, ele parece se esquecer de apresentar o arco principal até quase metade do longa-metragem.
Se as circinais delineações rendem-se a uma espiral de vaivéns sem sentido, ao menos elas ganham uma estruturação mais palpável conforme a câmera nos convida para um suspense construído com calma no momento em que Fay despede-se de Everett e começa seu turno na operadora de telefonia local – cujo semblante cinquentista é traduzido para as telas de modo impecável. É nesse momento que a história tem início: conforme ela ouve o programa de seu colega, tenta, em vão, atender a ligações que nunca se completam ou que são interrompidas por um inexplicável e tríptico ruído. As coisas ficam ainda mais estranhas quando uma mulher desconhecida a liga em desespero anunciando que há algo se movendo no desfiladeiro ou então quando a chamada entre ela e a amiga cai sem mais nem menos.
Patterson mostra domínio das fórmulas cinematográficas – tamanha é a desconstrução que investe para um claustrofóbico cenário que, frame após frame, se torna mais opressor. Na verdade, a sequência focada apenas em Fay, que poderia muito bem carregar o filme inteiro nas costas, é construída com aptidão e cautela extremas, adicionando um elemento arrepiante aqui e ali até que culminemos na epifania de cada protagonista e coadjuvante que é-nos apresentado. O problema é quando o diretor resolve se afastar de sua ideia original, dividindo o escopo primário em dois e, então, realizando sucessivos sulcos que refletem o problema de dinamismo presente desde os minutos iniciais.
A sagacidade em trabalhar com ambiguidades estéticas mantém-se firme quando ambas as personas supracitadas reúnem-se em uma tentativa de compreender o que está acontecendo. Entre relatos sobre objetos voadores brotando no céu noturno e convidados inesperados contando suas experiências com o obscuro e o sobrenatural, Everett e Fay saem em uma missão para desvendar o mistério que caiu sobre Cayuga – nem que isso signifique que eles entrem em um mortal perigo premeditado com um cru foreshadowing. Os deslizes, entretanto, voltam a aparecer com força quando essa linha narrativa é precocemente finalizada, mais precisamente no momento em que a dupla visita a velha senhora Mabel Blanche (Gail Cronauer), que confirmou as anedotas de tantas outras pessoas ao revelar que seu próprio filho fora abduzido pelo “povo do céu”.
A partir daí, as coincidências começam a falar mais alto e, ainda que o diretor canalize nossa atenção para uma exuberante ousadia que nunca nos deixa completamente a par do que acontece, o roteiro assinado por James Montague e Craig W. Sanger cai nas ruínas que constrói ao querer contar com complexidade várias subtramas extras e nunca conseguindo entregar o que promete. O casal que aparece do nada para levá-los até a espaçonave é descartado em um piscar de olho e nem mesmo representa uma mudança considerável para a história; Mabel, por sua vez, pede para que Everett e Fay levem-na para ver o filho – coisa que também nunca acontece; o único momento proveitoso e realmente simbólico da produção ocorre nos minutos conclusivos, em que a dupla encontra o receptáculo espacial e some, enquanto todos os outros membros da comunidade que assistiam ao jogo de basquete do ano permanecem alheio a tudo que ocorreu nas últimas horas.
A Vastidão da Noite até consegue mascarar seus equívocos com uma imagética interessante e instigante, mas, quando paramos para analisar, o caótico desenrolar dos eventos seria muito mais promissor caso focado em um dos personagens e seu completo isolamento do resto do mundo perante uma ameaça invisível.
A Vastidão da Noite (The Vast of Night– Estados Unidos, 2020)
Direção: Andrew Patterson
Roteiro: James Montague, Craig W. Sanger
Elenco: Sierra McCormick, Jake Horowitz, Gail Cronauer, Bruce Davis, Greg Peyton
Duração: 89 min.
https://www.youtube.com/watch?v=ZEiwpCJqMM0