Primeiras Impressões | Snowpiercer: 1ª Temporada - O Começo do Fim

Ao longo das últimas décadas, o gênero do pós-apocalipse distópico ganhou apreço descomunal ao se tornar um dos nichos preferidos dos realizadores da indústria do entretenimento, explorando de que maneira a sociedade se comporta (organizada ou barbaramente) frente à força mortal da natureza ou do próprio ser humano. Um dos expoentes mais famosos e aclamados desse nicho em questão foi a adaptação fílmica de Le Transperceneige, que ganhou nome de Snowpiercer em 2013 e conquistou o público por sua visceral narrativa que girava em torno de uma “arca de Noé” em forma de locomotiva que contém os últimos seres humanos vivos da Terra. O trem epônimo é uma máquina composta por 1001 vagões e é imparável, rodando o mundo inteiro e impedindo que o inóspito e congelado planeta os mate.

Em desenvolvimento há três turbulentos anos, a TNT havia anunciado uma série baseada no longa-metragem comandado por Bong Joon-ho – e, depois de diversas complicações e um prospecto nada favorável, a Netflix adquiriu os direitos de exibição nacional e a obra finalmente estreou na plataforma de streaming. Trazendo os prolíficos nomes de Josh Friedman e Graeme Manson para a nova releitura, o resultado final é um tanto quanto insosso quando comparado à história das HQs ou à do filme original, transformando todas as críticas sociais em uma espécie de investida policial e dramática crua e que se vale demais de uma imagética espetacular em vez de canalizar esforços para o oscilante roteiro.

O show, condecorado com o mesmo nome de sua adaptação predecessora, é comandado por Daveed Diggs como o ex-detetive Andre Layton, um dos muitos forasteiros que ultrapassou a dura segurança do Snowpiercer e, há seis anos, mora com o restante dos refugiados na cauda do trem, comumente conhecida como o Fundo. Lá, Andre e seus companheiros são alimentados por minúsculas rações e obrigados a viver com aquilo que têm, racionando água, luz e convivendo em um amontoado de pessoas quase desistentes cuja única esperança é ultrapassar a segurança da maquinaria e conseguir chegar à parte da frente. A princípio, as coisas seguem uma linha imutável, perscrutada por uma bruta força que os obriga a um derradeiro status quo e pelo cataclísmico mundo que os assola lá de fora; entretanto, quase sete anos depois da partida, tudo irá mudar e o povo do Fundo irá tomar aquilo que lhe pertence por direito.

Na outra extremidade, temos a presença da perfeccionista Melanie Cavill (Jennifer Connelly em um retorno aos holofotes mais que bem-vindo), comandante oficial dos funcionários do trem e, como é-nos revelado mais para frente, a dona do Snowpiercer que se mascara pelo pseudônimo de Sr. Wilford. Sua presença é assustadora e acalentadora ao mesmo tempo, tratando os passageiros da primeira classe com candura excessiva enquanto mostra seu firme e férreo pulso com os trabalhadores do trem – principalmente ao Fundo, dizendo e repetindo que eles não pertencem àquele lugar e que devem agradecer por não serem jogados do lado de fora.

Afastando-se da delineação protagonista das explorações antropológicas de luta de classes de Joon-ho, a dupla de criadores da série opta por uma versão mais dramatizada e mercadológica dos familiares thrillers de suspense ao colocar um serial killer como “união” entre os abastados e os marginalizados. É nesse pano de fundo que Andre e Melanie acabam cruzando caminho: ela pede ao líder dos fundistas (como intitula-se o grupo que habita a cauda da locomotiva) que analise os dois membros da terceira classe brutalmente assassinados – e ajude a trazer justiça para aqueles que foram julgados como culpados. Porém, as coisas não são tão simples assim e nutrem de uma colaboração mais vigente entre as duas mortes, eventualmente culminando em torturas inimagináveis e gráficas o suficiente para honrar a obra anterior.

O grande problema é quando o público percebe que as tramas principais se restringem a isso e não parecem dar possibilidades para construções além das convenções televisivas. De fato, é quase óbvio entender que a narrativa não se sustenta por conta própria, valendo-se de algumas incursões que não fazem sentido para a compreensão dos telespectadores e dos personagens que nos são apresentados: considerando que Friedman e Manson são conhecidos por inflexões sci-fi de grande calibre (este tendo escrito o roteiro do ousado Cubo e pela série Orphan Black, e aquele tendo assinado a história de Guerra dos Mundos e As Crônicas de Sarah Connor), esperávamos que a arquitetura procurasse revitalizar o clássico conto, ou ao menos recuperasse alguns de seus elementos; no final das contas, com exceção de uma direção de arte de tirar o fôlego e certos manejos técnicos aplaudíveis, toda a claustrofobia e as metáforas arquetípicas necessárias para Snowpiercer são jogadas no lixo e voltam-se para a zona de conforto das fórmulas.

Levando em conta que tivemos contato com apenas dois capítulos da primeira temporada, é bem provável que o ritmo e a personalidade dos personagens saia da crítica unilateralidade e ganhe outras camadas – talvez influenciando no seguimento do suspense e no jogo de gato-e-rato que se instaura desde os primeiros minutos. Mas, por enquanto, a série deixa de nos oferecer o que tem de melhor em prol de uma gritante conivência estética.

Snowpiercer – 01×01: First the Weather Changed / 01×02: Prepare to Brace (Idem, 2020 – EUA)

Criado por: Josh Friedman, Graeme Manson
Direção:James Hawes, Sam Miller
Roteiro: Josh Friedman, Graeme Manson, DonJosh Friedman, Graeme Manson, Donald Johald Joh
Elenco: Jennifer Connelly, Daveed Diggs, Mickey Sumner, Alison Wright, Iddo Goldberg, Susan Park, Sam Otto, Sheila Vand, Mike O'Malley
Emissora: TNT, Netflix
Gênero: Ficção científica, Drama, Suspense
Duração: 60 minutos aprox.


Crítica | The Eddy - Quando o Jazz Não É o Bastante

Com apenas 35 anos de idade, Damien Chazelle tornou-se um gigante do entretenimento e entregou algumas peças fílmicas de grande prestígio pelos adoradores da indústria e pelos cinéfilos de plantão. Apesar de ter feito sua estreia ainda em 2009, seu primeiro grande sucesso veio com Whiplash, drama que traz a música como um de seus principais personagens. Chazelle voltaria a prestar homenagens para seu background na Princeton High com La La Land: Cantando Estações, tragicomédia musical que o colocaria no topo do mundo e o transformaria na pessoa mais jovem a levar um Globo de Ouro e um Oscar de Melhor Direção para casa. Apesar dos deslizes de O Primeiro Homem, o cineasta continuaria trilhando um caminho de sucesso inigualável – até chegar em sua primeira colaboração com a Netflix com a minissérie The Eddy.

Composta por oito episódios de uma hora cada, Chazelle, que assina a direção e a produção da obra, abre espaço mais uma vez para o jazz seja louvado como merece – algo que pode parecer repetitivo, considerando que os longas anteriores já traziam na trilha sonora esse gênero tão clássico e tão envolvente. Seguindo os passos das investidas anteriores, a trilha sonora sai de seu recuo extradiegético e transforma-se num personagem que rege os relacionamentos tóxicos e conturbados dos protagonistas, principalmente de Elliot Udo (André Holland), dono do clube epônimo e pianista clássico que vê seu mundo desmoronar depois de eventos chocantes. O problema, entretanto, parece estar incrustado na confusa e monótona narrativa que parece andar a passos curtíssimos de um episódio para o outro – transformando uma ode parisiense em um melodrama arrastado e previsível.

Elliot, logo de cara, mostra que é o centro do universo e é reafirmado como tal pela condução dos capítulos. Em outras palavras, por mais que cada personagem tenha suas glórias, as consequências dos acontecimentos voltam a se curvar para sua personalidade facilmente irascível e controladora. Essa autoproteção estende-se para a filha, Julie (Amandla Stenberg), que sai de Nova York e se muda para a Cidade-Luz para tentar se reconectar com o pai afastado e tomado por um projeto dos sonhos. Mais do que isso, a presença de Elliot torna-se mais insuportável (propositalmente, diga-se de passagem), quando seu sócio e melhor amigo é assassinado e as investigações começam a indicá-lo como suspeito. Mais uma vez, percebe-se que o roteiro, buscando transformar a minissérie em uma espécie de análise antropológica e antológica das relações humanas, não sabe em que direção seguir e nem mesmo como oscilar o tom atmosférico.

A verdade é que a ambiência mais intimista e mórbida, arquitetada desde a primeira cena, é mais unilateral do que o necessário, recusando-se a abrir portas para uma multiplicidade reverberante; pelo contrário, essa pessoalidade, dialógica à experiência de seu criador, adquire uma camada cada vez mais mórbida, refletida de forma redundante na teor imagético. É quase óbvio esperar que as sequências mais dramáticas sejam envolvidas em um filtro azulado (clássico das produções da plataforma de streaming) – e Chazelle não foge à fórmula: cada frame parece mergulhado inúmeras vezes num tonel monocromático que contribui para que essa progressão fique mais lenta e menos envolvente (por vezes, me peguei desviando o olhar pela falta de algum elemento atraente o bastante).

De qualquer modo, não podemos tirar crédito da ousadia do time de diretores, principalmente em resgatar um espectro cinematográfico que há muito rendia-se ao convencionalismo ação-reação de qualquer drama de baixo orçamento. A técnica aqui utilizada permanece atual, abusando de planos-sequência que já foram explorados nos longas supracitados, mas não perde a chance de convidar a estética dinamarquesa do Dogma-95 em praticamente toda a criação – ganhando vida nos cortes bruscos e na câmera na mão. Em dado momento, o peso dramático é substituído pelo panfletarismo documental que encaixa forçosamente críticas sociais e uma representatividade minoritária crua demais para ser levada a sério – resultado, como já foi mencionado, de uma trama frágil demais.

É necessário conceder mérito do roteirista Jack Thorne em se afastar dos estereótipos europeus e promover uma espécie de “reparação histórica” para aqueles que primeiro se envolveram com o jazz. Porém, dentro desse universo politizado demais, a essência musical deixa de existir (com exceção de algumas leituras incríveis e emocionantes), ofuscada por eventos chocantes que, aqui e ali, almejam a um dinamismo que já não pode mais existir. As cenas do assassinato de Farid (Tahar Rahim) e do embate entre Elliot e Maja (Joanna Kulig) conseguem, por breves segundos, livrar o público de tantos deslizes; porém, não são o suficiente para mascarar o fato de que nenhum dos personagens é relacionável. Sim, seus demônios interiores ganham palanque premeditado desde o começo – mas valer-se apenas disso é como dar um tiro no próprio pé.

No geral, The Eddy é tecnicamente bem feito e, mais uma vez, mostra a paixão de Chazelle pelo que o jazz representa. Entretanto, nem mesmo as atribuições mais artísticas e irreverentes possíveis anulam narrativas circunstancias demais e figuras esquecíveis que tentam ser salvas por performances incríveis.

The Eddy (Idem, Estados Unidos, França – 2020)

Criado por: Damien Chazelle
Elenco: André Holland, Joanna Kulig, Tahar Rahim, Amandla Stenberg
Emissora: Netflix
Episódios: 08
Gênero: Drama, Musical
Duração: 60 min. aproximadamente


Crítica | O Vazio: 2ª Temporada - Das Questões Existenciais

Em 2018, a Netflix lançava sem muita divulgação a primeira temporada de uma animação em 2D que seguiria os passos de tantas outras produções da plataforma: The Hollow. Sem muitas informações aparentes e sem um elenco de peso que talvez atraísse o público, a série tornou-se uma das mais bem feitas da década passada ao misturar aventura, romance e metalinguagem em um único lugar: a história principal girava em torno de um grupo de jovens que acordava no lugar epônimo, recheado de figuras bizarras, perigos mortais – até descobrirem que estavam dentro de um videogame, competindo para conquistar o prêmio máximo de uma jogo de tecnologia de ponta. É claro que, com o final do ano de estreia, era de se esperar que o serviço de streaming mantivesse os planos abertos ou apenas transformasse a obra em uma minissérie.

Qual foi nossa surpresa quando a confirmação de uma nova iteração viralizou nas redes sociais, levando os telespectadores a pensar como a narrativa iria continuar? Os protagonistas retornariam para o Vazio para mais uma aventura? Ou a trama seria ambientada no mundo real? Felizmente, todas as nossas respostas (ou a maior parte delas) foram respondidas nos últimos dias, quando os novos episódios estrearam num baque surpreendente, multiplicando a complexidade de cada personagem em níveis estratosféricos – além de infundir as tramas e subtramas com questões existenciais nietzschianas que passam despercebidos por aqueles que querem apenas uma boa diversão no melhor estilo role-playing game.

Mais uma vez, começamos com Adam (Adrian Petriw) acordando abobado de um sono profundo. Dessa vez, ele está deitado em sua cama e, para surpresa de todos, voltou a um formato 2D. A princípio, ele acredita estar no jogo novamente, mas percebe que está dentro de sua casa: seu quarto é o mesmo, seu cachorro é o mesmo e até mesmo os seus pais são os mesmos. A vizinhança é idêntica ao da vida real (se é que aquela não é a real), exceto por um pequeno detalhe – os antigos valentões de quando era criança estão exatamente iguais. Não cresceram, não ficaram mais velhos, o que leva Adam a questionar sua sanidade e se o que está vendo é verdadeiro. Eventualmente, ele cruza caminho com Mira (Ashleigh Ball) e Kai (Connor Parnall), que também não entendem o que está acontecendo.

Depois de reunido, o trio tenta juntar informações para chegar a uma explicação plausível - a de que eles desbloquearam uma suposta fase adicional que deve ser mais complicada que a original. Entretanto, as coisas parecem complicadas demais: Gustaf (Mark Hildreth), o Cara Estranho que serve como guia e fornece dicas para que os jogadores sigam em frente, não atende aos seus clamores, e o grupo adversário não está em nenhum lugar aparente. Então, o que diabos está acontecendo?

A verdade é que, em comparação com a iteração predecessora, os primeiros capítulos parecem um tanto quanto desconexos, fazendo revelações inesperadas sobre a personalidade dos nossos heróis. Descobrimos que todos vivem na mesma comunidade e que Adam e Mira são amigos de infância; além disso, expulsaram Reeve (Alex Barima), um dos principais vilões da primeira temporada, de seu time original e entraram em contato com Kai, criando um organismo nada ortodoxo que provou ser bastante eficiente. Entretanto, o que mais destoa nessa amálgama de estranhezas e bizarrices é o fato de que ninguém parece conhecer o Vazio. Em se tratando da realidade, isso não faria o menor sentido; em se tratando do universo fictício do game, isso também não corresponderia ao esperado. Nenhuma criatura em vista, nenhum chefe de fase intransponível – e nenhum cavaleiro do Apocalipse os caçando.

Apesar dos óbvios deslizes, incluindo impalpáveis e coincidentes acasos, o ritmo mergulha numa frenética e incontrolável montanha-russa que esbarra em revelações chocantes, uma atrás da outra. Primeiro, descobrimos que Adam e seu time não está participando da nova versão do jogo. Eles permanecem com seus poderes e com memória de tudo que aconteceu, mas, ao que tudo indica, estão presos em uma espécie de bug sem precedentes – enfrentando a fúria de outros players insuportáveis e esquecíveis e seus nêmeses. O grande problema não é esse: eles também não tem a opção de morrer; caso percam a vida, não retornam para o mundo de onde vieram e nem ao menos como avatares.

Eventualmente, descobrimos que a série prefere seguir uma trajetória mais filosófica, esbarrando em elementos niilistas que são tratados com profundidade cuidadosa – e uma pitada de comédia que sempre é bem-vinda. Os protagonistas, na verdade, são clones digitais de seus verdadeiros eus, arquivados no banco de dados da empresa responsável pelo Vazio, Ishibo. Dotados de consciência e de emoções, a principal conquista da série é ampliar os diálogos sobre o que, de fato, existe ou não. Devemos levar em conta qualquer ser que tenha a capacidade de pensar e de sentir, ainda que sejam virtuais?

Abrindo inúmeras possibilidades de compreensão – e envolvendo-nos em um didático debate -, O Vazio retorna com força e mantém sua qualidade inegável, nos fazendo desejar por mais a cada capítulo.

O Vazio - 2ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2020)

Criado por: Josh Mepham, Vito Viscomi, Kathy Antonsen Rocchio, Greg Sullivan
Elenco: Connor Parnall, Mark Hildreth, Diana Kaarina, Alex Barima, Nicole Oliver, Brian Drummond, Peter Bundic, Lana Jalissa
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Fantasia, Ficção
Duração: 25 min. aproximadamente


Crítica | Eu Nunca... - 1ª Temporada: Uma das Melhores Comédias do Ano

Unindo comédia e drama com uma delicadeza apaixonante, Eu Nunca... é, sem sombra de dúvida, um dos presentes mais inesperados da Netflix para os fãs das rom-coms adolescentes dos anos 1990 – revitalizadas, é claro, para o panorama da sociedade contemporânea. A nova série da gigante do streaming, criada pela sagaz mente de Mindy Kaling (que volta para as telinhas depois de assinar o roteiro da interessante Late Night), é uma análise dinâmica para nos prender ao longo de dez breves episódios sobre a vida de uma descendente de indianos chamada Devi (Maitreyi Ramakrishnan). Ela não se encaixa em nenhum grupo de sua escola e sente-se alheia quanto à configuração de sua casa – principalmente depois que o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu -, decidindo fazer do segundo ano de seu ensino médio um divisor de águas: ou seja, ela decide arranjar um namorado e perder sua virgindade.

Obviamente, levando o teor cômico infundido no âmago da produção, as coisas não vão como o planejado – mas esse “errático” caminho que Devi acaba escolhendo, na verdade, é o que abre portas para tantas subtramas envolventes e reviravoltas chocantes que transformam o show em algo muito maior do que poderíamos imaginar. Através de uma narrativa inteligente e uma condução cênica que tenta ao máximo se afastar de tantas outras obras conterrâneas (não conseguindo por completo, mas ousando como consegue), Eu Nunca... cultiva um terreno fértil o bastante para discorrer sobre identidade cultural, herança religiosa, raça e orientação sexual sem cair em pedantismos panfletários e garantindo que os arcos de cada personagem sejam aproveitados ao máximo.

Kaling, supervisionando as instâncias dessa deliciosa peça seriada, procura desconstruir os estereótipos solidificados desde os anos 1990 pela esfera do entretenimento, transformando as personas em caracterizações humanas o suficiente para construir laços de afetividade com o público. A protagonista, Devi, é uma garota extremamente inteligente e comum que almeja tanto à sua entrada em Princeton quanto arranjar alguém para ter relações sexuais – e, nesse meio tempo, arrasta consigo as melhores amigas Eleanor (Ramona Young) e Fabiola (Lee Rodriguez), que a apoiam mais que tudo, apesar de terem planos próprios que realmente não incluem destinar parte de seus últimos anos no colégio para arranjar um parceiro. E, à medida que conhecemos um pouco mais sobre a conturbada vida de Devi, suas ramificações também ganham força de modo fluido e convincente.

Eleanor, por exemplo, é uma aspirante à atriz que foi “abandonada” pela mãe (também performer) e vive à sombra do que acredita ser uma carreira bem-sucedida, até descobrir que ela retornou de suas apresentações musicais após ser demitida e, agora, trabalha num restaurante mexicano, escondendo-se com vergonha de revelar o que aconteceu. Fabiola, por sua vez, percebe que está se interessando por uma colega de sala e luta para descobrir como vai dizer para seus pais perfeccionistas e para suas amigas que é lésbica – apenas para perceber que ela tem mais apoio do que imagina e que suas crises de ansiedade poderiam ser evitadas.

Eventualmente, a perspectiva se volta para as consequências dos atos de Devi: várias vezes, ela se prova uma jovem irresponsável que é movida por aquilo que idealiza em vez daquilo que tem. Ela parece acreditar num potencial relacionamento depois que convida o atleta garanhão e a princípio inalcançável Paxton (Darren Barnet) para transar – mas nada sai como o planejado e, entre algumas pequenas mentiras (que erguem-se em uma avalanche sem precedentes), os dois se tornam amigos improváveis. E isso não é tudo: no topo dessa ambiência polivalente e exuberante de possibilidades, ela lida com o trauma de ter visto seu pai morrer, tendo que viver com uma mãe superprotetora e por vezes dura demais (interpretada pela incrível Poorna Jagannathan), uma prima doutoranda em biologia de quem sente inveja (encarnada por Richa Moorjani) e sentimentos enterrados que vem à tona nos piores momentos imagináveis.

A série é ambiciosa por não ter medo de estampar o que precisa, exibindo suas mensagens com clareza imprescindível. Num nível similar, o time criativo por trás da obra corrobora com as ideologias minoritárias de Kaling e traz para as telinhas personagens que normalmente são ofuscados por figuras padronizadas, permitindo que atravessem todos os lados da adolescência com profundidade que ainda pode ser bastante explorada com os próximos ciclos. Ora, até mesmo a presença de Ben Gross (Jaren Lewison) como a cota heterossexual e branca é livre dos complexos de cavaleiro branco – inclusive quando resolve expressar seus sentimentos por Devi, de quem era um arqui-inimigo intelectual sem qualquer noção.

Guiada por narrações de Andy Samberg e do ex-tenista profissional John McEnroe, Eu Nunca... pode ter seus equívocos e deslizes óbvios (principalmente quando pensamos em concepções técnicas), mas cumpre o que promete, tornando-se uma adição aprazível e hilária ao catálogo da Netflix – mostrando que a plataforma ainda tem potencial o suficiente para trazer para os espectadores.

Eu Nunca... – 1ª Temporada (Never Have I Ever, EUA – 2020)

Criado por: Mindy Kaling
Direção: Tristram Shapeero, Anu Valia, Kabir Akhtar, Linda Mendoza
Roteiro: Mindy Kaling, Lang Fisher, Justin Noble, Amina Munir, Chris Schleicher, Akshara Sekar, Aaron Geary, Ben Steiner, Erica Oyama, Matt Warburton, Lang Fisher
Elenco: Maitreyi Ramakrishnan, Darren Barnet, Ramona Young, Lee Rodriguez, Richa Moorjani, Poorja Jagannathan, Jaren Lewison, John McEnroe
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Comédia
Duração: 30 min. aprox.


Crítica | Hollywood: 1ª Temporada - A História Reescrita

Apesar de ser conhecido pela antologia American Horror Story, Ryan Murphy sempre fez questão de mostrar sua paixão pela indústria cinematográfica – principalmente aos clássicos longas-metragens que lhe servem de inspiração até os dias de hoje. Seja com o musical adolescente Glee, seja com a temporada única de Feud, Murphy nunca deixou de prestar homenagens a nomes como Joan Crawford, Bette Davis, Marlene Dietrich e tantos outros artistas lendários cujo legado vive com força inigualável. E, dessa forma, surgiria Hollywood, nova colaboração desse prolífico realizador para a Netflix que, apesar das boas intenções, falha em lapidar as múltiplas coincidências e o teor novelesco de cada arco narrativo dos protagonistas.

Ambientada no final da década de 1940, a produção é uma reimaginação da Era de Ouro de Hollywood – uma das décadas mais controversas da história. No período pós-II Guerra Mundial, o sentimento de nacionalismo começava a tomar conta da sociedade norte-americana e, dessa forma, qualquer pessoa “diferente” era tratada com descaso, preconceito e até mesmo com violência (como era o caso das mulheres, dos negros e da comunidade queer). E, diferente do que se pode imaginar, essa premissa exala uma ambição bastante interessante que serve como base para uma transgressão formulaica: na verdade, são as minorias que ganham voz em um escopo totalmente utópico que reformula o cenário do entretenimento e o futuro de uma nação dividida e que já perdeu sua identidade. O grande problema é como convencer o público de um e se? que poderia ter acontecido sem cair nos comodismos de sempre.

O primeiro obstáculo a ser enfrentado é a quantidade quase convulsionada de personagens. Temos, por exemplo, o ex-veterano de guerra Jack Castello (David Corenswet) que foi atraído pelas artes performáticas e tenta de tudo para conseguir nem que seja uma ponta nos filmes dos estúdios Ace, um dos mais importantes do planeta; temos Camille Washington (Laura Harrier), uma atriz negra contratada para encarnar empregadas domésticas estereotipadas que cansou de fazer o mesmo papel várias vezes e deseja, mais que tudo, ser a protagonista de um sucesso; temos também Archie Coleman (Jeremy Pope), um aspirante a roteirista negro e gay que quer ver seu nomes nos letreiros e nas marquises de todo lugar e provar seu valor na cidade dos sonhos. E muitas outras figuras únicas que representam os diversos tipos sociais que despontavam em cada esquina daquele mágico e complicado lugar.

Apesar dos claros deslizes cultivados (e aparentemente imperceptíveis) desde o capítulo de estreia, a minissérie consegue brilhar em alguns momentos bastante interessantes, inclusive no tocante à dualidade geracional. O elenco jovem representa o frescor ingênuo e sonhador daqueles que ainda têm uma vida pela frente, cheia de credulidades quase impalpáveis sobre o futuro e prospectos de autorrealização; enquanto isso, temos a presença inigualável de veteranos da televisão e do cinema que já passaram por várias decepções e agora entendem a realidade com amargura e com arrependimentos: desde a presença radiante de Patti LuPone como a atriz aposentada Avis Amberg, que se envolve com escapadas românticas com garotos mais jovens à medida que seu casamento se deteriora, a adição charmosa de Dylan McDermott como o cafetão e frentista Ernie West (baseado com ironia adorável em Scotty Bowers) e até mesmo a inesperada e dramática rendição de Holland Taylor como Ellen Kincaid, produtora executiva e mentora de diversos novos talentos do estúdio no qual trabalha.

As performances, todavia, são pinceladas com diálogos um tanto quanto frouxos e melodramáticos demais para que os levemos a sério. É claro que um pouco de metalinguagem técnica, ainda mais em se tratando de uma série com o tema em questão, é mais que bem-vinda: mas boa parte das sequências parece infundida com um apreço inexplicável aos dramas teatrais que prezam pela ambiguidade e por atuações que de fato poderiam ser mais comedidas – e, dessa forma, bem mais expressivas. Nem mesmo o respaldo histórico acrescente elementos de credibilidade à obra, seja através do repentino resgate da trágica história de Anna May Wong (aqui encarnada por Michelle Krusiec), seja pela monumental aparição de Hattie McDaniel (Queen Latifah) – e, por mais que Murphy insista em reescrever uma história cruel para um mirabolante conto de fadas, a fantasia é grande demais para ser levada a sério.

Eventualmente, o time formado por esses personagens supracitados e por tantos outros nomes une-se para dar aval a um projeto revolucionário, que traria pela primeira vez uma mulher negra às telonas. Intitulado Meg, Camille acaba conseguindo o papel protagonista, com seu marido, Raymond (Darren Criss) comandando o projeto. O resultado, enfiado em um circinal último episódio, é digno de um romance romântico em que absolutamente tudo dá certo e os “mocinhos” encontram seu final feliz e podem seguir em frente sentindo-se mais que realizados – e talvez essa enérgica e fragmentada conclusão seja o maior crime do show.

Valendo-se muito mais de uma perfeita e irretocável estética imagética que até mesmo emula a condução de grandes joias do cinema, Hollywood é um didático (ainda que superficial) manual de como a complicada esfera fílmica funciona, perguntando-se principalmente como o mundo seria se as lutas das minorias tivessem se iniciado tantas décadas atrás. Ou então ainda: como seria o mundo se Rock Hudson tivesse assumido sua homossexualidade ainda quando jovem e perdido sua carreira como galã das telonas?

Hollywood – 1ª Temporada (Idem, EUA – 2020)

Criado por: Ryan Murphy, Ian Brennan
Direção: Ryan Murphy, Daniel Minahan, Michael Uppendahl, Janet Mock, Jessica Yu
Roteiro: Ryan Murphy, Ian Brennan, Janet Mock, Reilly Smith
Elenco: David Corenswet, Darren Criss, Laura Harrier, Joe Mantello, Dylan McDermott, Jake Picking, Jeremy Pope, Holland Taylor, Samara Weaving, Jim Parsons, Patti LuPone
Emissora: Netflix
Episódios: 07
Gênero: Drama
Duração: 50 min. aprox.


Crítica | Home Before Dark: 1ª Temporada - Arranhando a Superfície

Hilde Lysiak ganhou as manchetes de vários veículos de imprensa ainda em 2016 quando, com apenas nove anos de idade, utilizou o seu recém-fundado jornal caseiro Orange Street News para relatar um assassinato que havia ocorrido perto de sua casa – transformando-a na profissional investigativa mais jovem a fazer parte da associação de jornalistas, além de ter sido homenageada de diversas formas com o passar dos anos e lançado uma série de livros que logo caiu nas graças da Apple TV+. Em 2020, o serviço de streaming lançou as dez primeiras iterações de Home Before Dark, produção televisiva inspirada na heroína infante que, apesar das puras intenções, luta para encontrar um ritmo envolvente o bastante para nos segurar até o season finale.

Logo no episódio piloto, o público se depara com uma produção bastante modernizada que parece flertar com as clássicas narrativas de mistério de Nancy Drew, lançadas sete décadas atrás. Lysiak, aqui, ganha um alter-ego com Hilde Lisko (interpretada por uma irreconhecível Brooklynn Prince), uma menina que desde muito criança resolveu se aventurar com o pai jornalista em investigações criminais e desvendamento de casos não solucionados pela polícia, dando vida até mesmo a um pequeno periódico para o qual escrevia religiosamente. Mas as coisas mudam quando ela e sua família se mudam da fervorosa Nova York para a interiorana Erie Harbor, antigo lar de Matthew (Jim Sturgess) que resolveu enterrar ao se mudar para a cidade grande há trinta anos.

Como já é de se esperar – ainda mais pela premissa bastante familiar com que a produção brinca -, Hilde percebe que o calmo e pacífico semblante dos habitantes daquele local escondem segredos terríveis, incluindo uma tentativa até então com sucesso de esquecer o rapto de um menino e de seu subsequente desaparecimento, que foi resolvido às pressas por um corpo policial cego por justiça. A atmosfera unidimensional de Erie Harbor sofre no momento em que a protagonista descobre que uma das vizinhas morreu ao trocar a lâmpada de sua casa, cujo acidente apareceu nos laudos médicos como acidente. Entretanto, Hilde não se satisfaz com a grosseira explicação dos oficiais – e suas atitudes desnecessariamente paternalistas. Não é surpresa também que a menina comece a ser encarada com olhos tortos por aqueles que não desejavam reviver os trágicos dias de outrora – e com certeza não precisavam de mais problemas.

O pano de fundo da série exala potencial e poderia transformar essa história real em um thriller de suspense e coming-of-age que iria muito além de nossas expectativas. Afinal, lidamos com uma personagem principal irreverente e que não aceita as imposições etárias ou de gênero impostas – por ser uma criança que, desde sempre, postou-se ávida pelo conhecimento, pela verdade e pela justiça. Entretanto, por mais que as nuances de sua personalidade sejam trazidas para as telinhas, os outros imprescindíveis componentes são deixados de lado, confinados numa zona de conforto que não tem qualquer espaço nesse algibe artístico.

As criadoras Dana Fox e Dara Resnik parecem aglutinar inúmeros microcosmos em um mesmo lugar, procurando costurar uma leve comédia com reviravoltas detetivescas e dramas familiares – sem se preocuparem em lapidar as pontas soltas ou fornecer um pouco mais de credibilidade aos personagens. É claro que, no geral, a temporada de estreia cumpre o arco principal; porém, ele é pincelado por flancos abertos demais ou mal resolvidos (não por terem chegado a conclusões, e sim pelo caminho até essas resoluções ser tênue demais). Hilde é acompanhada por dois amigos que magicamente faz na escola, contratando-os para auxiliá-la na investigação do assassinato de sua vizinha e também no caso arquivado de Richie Fife (Kiefer O’Reilly), filho do prefeito Jack (Adrian Hough) que foi sequestrado quando criança e nunca mais reapareceu; em um outro paralelo, ela também ajuda seu pai a recuperar o fogo de sua profissão, enquanto luta para que a Tenente Mackenzie “Trip” Johnson (Aziza Scott) seja levada a sério na delegacia e consiga ajudá-la a ascender de cargo.

Ao longo dos dez capítulos, o roteiro se respalda em intervenções superficiais sobre diversos temas, como corrupção, sexismo e liberdade de expressão. Enquanto este metalinguístico tema é a vertente que receba mais atenção, os outros dois se ofuscam através de diálogos crus e teatrais demais para uma obra que preza pela verossimilhança. Eventualmente, é Prince quem a carrega nas costas, obrigando a si própria a alcançar um nível de amadurecimento performativo incrível depois de seus outros trabalhos (como Projeto Flórida ou o esquecível e incompreensível terror Os Órfãos). Joelle Carter, interpretando a diretora da escola local Kim Collins, é a próxima personagem a receber um tratamento mais cuidadoso – seu arco inclusive atravessa os extremos da autoconfiança para a derradeira desilusão, principalmente quando descobre a verdade sobre sua família.

Ainda que construa momentos de glória para o enredo e para as personas de Erie Harbor, que culminam em cliffhangers e revelações de tirar o fôlego, o time criativo perde a mão ao decidir, mesmo sem consciência, iniciar os capítulos com quebras de expectativas ou momentos mais leves que não recuperam o tom obscuro e intimista dos episódios anteriores. Nem mesmo a constante imagética neo-noir mantém-se sólida o bastante para que tracemos uma transição coesa entre começo e fim.

Home Before Dark é aprazível em certos momentos, mas seus ressoantes deslizes transformam a temporada em amálgama de tramas que previsíveis. Apesar dos erros, os espectadores são convidados a uma jornada interessante e divertida, por mais vago que seja – e por mais datada que esse mistério nos pareça.

Home Before Dark – 1ª Temporada (Idem, EUA – 2020)

Criado por: Dana Fox, Dara Resnik
Direção: Jon M. Chu, Rosemary Rodriguez, Kat Candler, Jim McKay, Kate Woods
Roteiro: Dana Fox, Dara Resnik, Garrett Lerner, Ann Cherkis, Carla Ching, Joe Hortua, Lucas O'Connor, Thembi L. Banks, Hillary Cunin, Russel Friend
Elenco: Brooklynn Prince, Jim Sturgess, Abby Miller, Louis Herthum, Kiefer O'Reilly, Michael Weston, Kylie Rogers, Joelle Carter, Aziza Scott
Emissora: Apple
Episódios: 10
Gênero: Mistério, Drama
Duração: 60 min. aprox.


Crítica | Little Fires Everywhere - Um Drama Ardente e Perigoso

Reese Witherspoon e Kerry Washington são dois nomes da indústria do entretenimento que despontaram nos holofotes nas últimas décadas por encarnarem personagens memoráveis e pavimentarem um caminho sólido o bastante para caírem nas graças do público e mostrarem sua versatilidade performática. Witherspoon, outrora restrita a comédias como Legalmente Loira e E se Fosse Verdade, levou para casa o Oscar por Johnny & June e rendeu-se a papéis aplaudíveis em Big Little Lies, Livre e The Morning Show; Washington, por sua vez, fez uma breve aparição em Quarteto Fantástico para depois estrelar o aclamado drama ‘Scandal’, além de ter atuado em Django Livre, American Son e Confirmation. E, agora, duas forças descomunais se unem para o novo vício do Hulu, intitulado Little Fires Everywhere.

Baseado no romance homônimo de Celeste Ng, a história gira em torno de duas protagonistas: uma delas é a socialite Elena Richardson (Witherspoon) que acaba cruzando com uma misteriosa mãe solteira e artista chamada Mia Warren (Washington) – dando início a um confronto de identidades que beira a explosão logo nos primeiros episódios. À medida que a narrativa vai se desenrolando, a plataforma de streaming prova que escolheu a dedo um dos melhores suspenses dramáticos dos últimos anos, entregando ao público três capítulos de uma saga enervante e narcótica por praticamente todos os motivos certos que ousa nos mostrar (desde seu elenco de ponta até sua competente e bem estruturada direção).

De fato, os grandes méritos são canalizados para o roteiro e para os personagens trazidos às telinhas. Mais do que isso, fica claro que o time criativo da produção mergulha de cabeça nos grandes manuais televisivos, arquitetando uma jornada palpável, apesar de formulaica; logo, o piloto é destinado a nos apresentar às personas que habitam a pequena e regrada cidade de Shaker Heights, Ohio, fazendo questão de mostrar suas gritantes diferenças. De um lado, Elena é uma poderosa e centrada mulher extremamente controladora que não aceita ser desafiada e sente que seu mundo irá desmoronar quando confrontada por um obstáculo intransponível – como a delineação rebelde de sua filha mais nova, Izzy (Megan Stott). Witherspoon até mesmo busca elementos explorados com Madeleine ou Bradley, mas aproveita para acrescentar alguns elementos interessantes que a transformam numa “descontruída” figura com complexo de cavaleiro branco.

O conflito principal emerge quando ela é colocada lado a lado com a impetuosa Mia, que é vista por Elena morando um carro com a filha, Pearl (Lexi Underwood). Entretanto, no momento em que partem para encontrar uma casa temporária nos arredores, são atendidas pela socialite (que é a dona da propriedade) e então começam a desenvolver um conturbado relacionamento que gradativamente se distorce em uma complexa inimizade. Afinal, fica claro que Mia não deseja caridade ou ajuda de pessoas que não conhece, ainda mais devido ao não revelado trauma que sofreu no passado; a necessidade de se autoafirmar como uma trabalhadora autônoma está relacionada com sua raça e as dificuldade que enfrenta até hoje, recusando-se a se tornar uma boneca ou num projeto social de pura egolatria. O problema é quando sua personalidade insiste em transmitir as frustrações para Pearl, cultivando na jovem um barril de pólvora em longo prazo.

Entre seus arcos pessoais, há um panorama infundido com mistério que circundam as pessoas e que culminam num incêndio criminoso que acomete o casarão de Elena. A princípio, somos levados a acreditar que Mia tem alguma coisa a ver com isso, mas o roteiro abre diversos caminhos que revelam um pequeno elemento comum a quem convive com a personagem de Witherspoon: cada um nutre de um ressentimento, por mais mínimo que seja, com a disciplina excessiva, com a capacidade irrevogável de influência que os transforma em marionetes contra a própria vontade – e, de alguma forma, não conseguem sair de suas condições. Na mesma medida, Elena não percebe que faz isso (o que explica seu malogro ilusório quando as coisas não saem como o planejado).

A showrunner Liz Tigelaar não se preocupou apenas com o enredo construído; na verdade, participando como uma das produtoras executivas, ela trouxe seu respaldo televisivo (visto em obras como Once Upon a Time e Nashville) e realizou homenagens para lendas da esfera audiovisual, acenando para nomes como Jean-Marc Vallée no tocante à desfiguração cênica e à montagem quase cubista – é notável, inclusive, como os diretores ousam se afastar do novelismo seriado presente com tanta força em dramas. Mesmo assim, Tigelaar opta por jogar, em grande parte, na zona de conforto, arriscando em outros espectros como a necessária temática racial, sexual e de gênero que inclusive ganha mais densidade quando em comparação ao livro original.

Little Fires Everywhere tem um glorioso início que arranca algumas das melhores atuações de seu elenco, não se esquecendo de garantir que todos tenham seu momento. Mesmo num ritmo menos acelerado e mais intimista, é imprescindível que as nuances reverberem mais cautela para que encontrem a aguardada catarse no momento certo.

Little Fires Everywhere – Primeiras Impressões (Idem, Estados Unidos – 2020)

Criado por: Liz Tigelaar
Direção: Lynn Shelton, Michael Weaver
Roteiro: Liz Tigelaar, Nancy Won, Raamla Mohamed, Attica Locke, Rosa Handelman, baseado no romance de Celeste Ng
Elenco: Kerry Washington, Reese Witherspoon, Joshua Jackson, Rosemarie DeWitt, Jade Pettyjohn, Lexi Underwood, Megan Stott, Gavin Lewis, Jordan Elsass
Emissora: Hulu
Episódios: 08
Gênero: Terror, Drama
Duração: 30 min. aprox.


Crítica | Coletivo Terror: 1ª Temporada - A Antologia da Loucura

Na última década, o estilo antológico destinado anteriormente à literatura parece ter encontrado espaço de sobra na esfera televisiva – e a preferência de vários realizadores e roteiristas está dando frutos: depois, na esfera mainstream, as duas grandes séries de Ryan Murphy (American Horror Story e American Crime Story), que estão no ar até os dias de hoje e já abarcaram uma legião inenarrável de fãs; temos a produção distópica Black Mirror, que vem sido utilizada como um pessimista reflexo da sociedade contemporânea e sua dependência complexa da tecnologia; e, agora, a Netflix nos presenteou com um interessante – apesar de um pouco áspero – show norueguês intitulado ‘Coletivo Terror’ (cuja primeira temporada tenta palatalizar o sobrenatural de Murphy em narrativas arrepiantes que podem muito bem acontecer).

Os seis breves episódios da meia hora cada são uma sólida adição ao catálogo da gigante do streaming e, mesmo com os claros erros de roteiro e de direção, nos prendem do começo ao fim em arcos bizarros com reviravoltas inesperadas. Mais do que isso, a representação nua e crua da psique humana é trazida à tona como uma das principais premissas – e, caso renovada, esperamos que essa análise ainda superficial não tenha medo de mergulhar de cabeça. A princípio, a escolha dos showrunners Kjetil Indregard e Atle Knudsen em jogar na zona de conforto é compreensível, preferindo valer-se de certas fórmulas para arrebatar os espectadores e prepará-los para algumas escolhas ousadas nos capítulos finais, explorando gêneros que oscilam desde a comédia dramática até o mistério.

O ciclo é bem estruturado e tem um forte início com “Ultimate Sacrifice”, viajando para o interior da Noruega e respaldando-se na cultura viking que ainda marca presença na atualidade. Aqui, Molly (Ine Marie Wilmann) é uma citadina mulher que está tendo dificuldades em se adaptar na sua nova casa, cuja mudança foi consequente à quase falência da família. E, para ajudar, ela lida com estranhos vizinhos que são extremamente apegados aos seus bichinhos de estimação – até descobrir que eles são acalentados e quase venerados por um motivo arrepiante: sacrifício. Na verdade, a cidade possui uma espécie de pedra mágica onde os habitantes fazem oferendas em troca de dinheiro, o que a transforma numa ambiciosa e inconsequente psicopata.

Ao longo dos episódios, percebemos que os breves enredos seguem a mesma linha de raciocínio chocante e surpreendente, refinando-se conforme nos aproximamos do season finale. Temos a história de um esquizofrênico rapaz que inventa em sua cabeça um arco de sequestro ao lado de dois irmãos que simplesmente não existem, culminando num sacrifício acidental que nos tira o fôlego. Logo depois, somos apresentados ao perfeito mundo de Olivia (Dagne Backer Johnsen), uma aspirante à escritora que começa a ser caçada por suas colegas de quarto até descobrir que está presa dentro de um conto (o que eventualmente não faz muito sentido pela forçada metalinguagem, mas logo explica-se com um cruel recomeço).

Coletivo Terror é uma ode à loucura e definitivamente não é guiada pela lógica; na verdade, o time criativo abraça e integra a si mesmo uma emoção gutural e impiedosa que acomete os mais diversos tipos de pessoas, sejam elas membros de uma companhia científica (como na tensão exacerbada de “Lab Rats”), seja numa festa de empresa que é o espaço perfeito para uma vingança (“The Elephant in the Room”, o melhor episódio da série sem sombra de dúvida). Eventualmente, percebemos que a delineação dos microcosmos almejam à originalidade, mas por vezes voltam-se à familiaridades conhecidas e batidas de produções de alto calibre: em “The Old School”, por exemplo, vemos uma recém-formada pedagoga que aceita trabalhar numa escola reaberta após décadas fechada e cruza caminho com um grupo de meninas assassinada que precisa de ajuda para seguir em frente (uma mistura de O Orfanato com Invocação do Mal que não dá muito certo por sua artificialidade).

Ademais, nota-se um apreço estético pelo drama seriado em sua mais pura forma: os enquadramentos e o jogo de campo-contracampo segue o estilo de tantos outras longas-metragens e séries que despontam na esfera audiovisual; mas não faço esse comentário de modo pejorativo. Pelo contrário, as escolhas artísticas auxiliam no entendimento das iterações e funcionam como um convite aberto para simples contos de terror que cumprem, na maior parte do tempo, o que prometem nos entregar desde o primeiro momento – e é isso que a torna um pouco diferente de obras adjacentes. Em outras palavras, não vemos muitos elementos do expressionismo ou arquiteturas excêntricas ou eventos preternaturais; temos a presença essencial do gore, sim, que faz alusão aos slasher dos anos 1980, e isso é tudo.

Coletivo Terror tem um início satisfatório o bastante para nos manter vidrados do começo ao fim e para nos fazer esquecer de seus deslizes; mais do que isso, a primeira temporada prepara um terreno mais que fértil para o futuro, cujas lapidação e cautela podem transformar essa mais nova antologia em uma das grandes séries da década.  

Coletivo Terror – 1ª Temporada (Bloodride, Noruega– 2020)

Criado por: Kjetil Indregard, Atle Knudsen
Direção: Geir Henning Hopland, Atle Knudsen
Roteiro: Kjetil Indregard, Atle Knudsen
Elenco: Stig R. Amdam, Anna Bache-Wiig, Ellen Bendu, Dagny Backer Johnsen, Henrik Rafaelsen, Trond Tiegen, Ine Marie Wilmann
Emissora: Netflix
Episódios: 06
Gênero: Terror, Drama
Duração: 30 min. aprox.